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Biometria

Segurança na ponta dos dedos

Com tecnologia 100% brasileira, empresa de Curitiba coleta impressões digitais de recém-nascidos

Michaelblackburn / Getty Images e Zhengshun Tang / Getty Images

Imagine um mundo em que mais de 1 milhão de crianças desaparecem a cada ano. Somem de casa e de hospitais logo após o nascimento, sem deixar vestígios. Governos e órgãos de segurança e de controle de fronteiras são incapazes de solucionar o volume global de desaparecimentos. Este cenário está ocorrendo nesse instante. Apenas no Brasil, cerca de 500 bebês são trocados em maternidades a cada ano. Outras 50 mil crianças, segundo o Conselho Federal de Medicina (CFM), desaparecem anualmente, em média – sem contar os casos sem notificação. São quase seis crianças por hora no país.

Uma maneira de reduzir essas ocorrências é identificar os bebês, assim que nascem, por meio da coleta de impressões dos dedos, das palmas das mãos e das plantas dos pés. O procedimento já é indicado há 30 anos pela lei que instituiu o Estatuto da Criança e do Adolescente (ver Pesquisa FAPESP nº 296). Mais recentemente, em 2018, uma portaria do Ministério da Saúde tornou obrigatória a identificação palmar dos recém-nascidos brasileiros em conjunto com a identificação biométrica da mãe.

Não é sempre que a tecnologia acompanha a legislação. Ainda são poucas as maternidades nacionais que colhem impressões digitais, palmares ou plantares e, das que o fazem, a maioria usa tinta, carimbando as extremidades dos bebês em papéis. O registro é impreciso e não serve para muita coisa na hora de identificar uma criança e prevenir trocas ou desaparecimentos.

A startup paranaense Natosafe, criada em 2014, procura ajudar na reversão desse quadro. Com tecnologia 100% brasileira, a empresa desenvolveu um sistema destinado à identificação de crianças de 0 a 5 anos. A solução é formada por um escâner, batizado de NilmaOne, que coleta dados biométricos de bebês em alta resolução e opera integrado a uma plataforma de gerenciamento de dados. Denominada Infant.Id, ela permite que órgãos públicos emitam documentos, identifiquem e reconheçam indivíduos e fiscalizem os vínculos parentais entre eles, essencial para evitar desaparecimentos infantis.

“A tecnologia de escaneamento digital de bebês do NilmaOne oferece um detalhamento de imagem com qualidade até então inédita, fundamental para estabelecer o vínculo entre os dados biométricos da criança e da mãe e viabilizar o exame por peritos em papiloscopia”, explica Antonio Maciel Aguiar Filho, presidente da Federação Nacional dos Peritos Oficiais em Identificação (Fenappi).

A paulista Griaule, sediada em Campinas (SP), é outra empresa que oferece uma solução para cadastro biométrico de recém-nascidos. O GBS Baby, como é chamada a ferramenta, também é capaz de coletar as impressões digitais, palmares e plantares de bebês. “Para facilitar financeiramente a implantação pelas maternidades e hospitais no Brasil, a empresa tem adotado leitores de impressões digitais convencionais, amplamente disponíveis, focando na leitura de palmares”, explica o executivo Thiago Ribeiro, diretor da Griaule.

Segundo ele, o desenvolvimento do sistema teve início em 2016 quando a empresa fez uma parceria com o Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher (Caism), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), para realizar pesquisas sobre a identificação biométrica de bebês. Para fins de segurança hospitalar e evitar trocas e sequestros de recém-nascidos, a impressão palmar é suficiente. Para outras finalidades, como controle de fronteira e de vacinação de menores, há uma limitação porque os estados brasileiros trabalham somente com impressões digitais. A biometria neonatal também pode ser empregada para identificação de crianças em campos de refugiados.

A solução da Natosafe vem sendo instalada em Pernambuco, Mato Grosso, Rio de Janeiro e Goiás – este último estado foi o primeiro a emitir um registro geral (RG) com dados biométricos em alta resolução, em agosto deste ano. O sistema foi criado por um time com 15 profissionais, entre engenheiros de hardware e de software, cientistas de dados e da computação e designers de UX (experiência do usuário), apoiado por peritos papiloscopistas e profissionais da saúde.

“Queremos ser referência global em identificação biométrica de crianças”, afirma Eduardo Liebel, gerente de vendas da Natosafe. “Já estamos em contato para distribuir nossas soluções para países da América do Sul, Europa e Oriente Médio”, completa, destacando que o escâner criado pela empresa é certificado pelo FBI, a polícia federal dos Estados Unidos, uma espécie de chancela da qualidade do equipamento.

A história que deu origem à tecnologia da Natosafe teve início anos atrás, longe de Curitiba. Tudo começou quando a pernambucana Nilma da Silveira Azevedo prestou em 1985 um concurso público para a Polícia Civil de Recife (PE) e iniciou a carreira de papiloscopista no Instituto de Identificação Tavares Buril (IITB). Papiloscopia é o processo de identificação humana por meio de marcas individuais da pele das solas dos pés, das palmas das mãos e das digitais.

“Um dia, meu diretor pediu que eu comparasse as marcas identificadoras de uma criança com a Declaração de Nascido Vivo [DNV], documento que toda criança recebe ao nascer para poder ser registrada em cartório. Foi impossível fazer o trabalho por causa da coleta malfeita nos papéis que a mãe trouxe”, recorda-se Azevedo. “Como essa era uma situação recorrente, fui aprender a fazer coletas de recém-nascidos. Depois, passei a visitar maternidades ensinando as técnicas aos profissionais da saúde, além de alertá-los para a importância de fazer o registro corretamente.”

O passo seguinte foi estabelecer um prontuário de identificação para colher, ainda com tinta e papel, as digitais da mãe e as impressões dos pés do recém-nascido. Como as dificuldades para coletar imagens com qualidade satisfatória continuavam – não é incomum que elas sejam como borrões carimbados, impossíveis de identificar posteriormente –, a perita passou a procurar empresas interessadas em aliar a tecnologia à sua experiência na papiloscopia neonatal.

A Natosafe, que à época se chamava Akiyama, companhia focada no desenvolvimento de soluções biométricas em geral, topou a parceria. Em 2014, a empresa começou o desenvolvimento do escâner NilmaOne, batizado em homenagem à perita, e concluiu o projeto no ano passado. A máquina é portátil e multifuncional: um mesmo sensor colhe as digitais do bebê e as da mãe, bem como as marcas das plantas dos pés e das palmas das mãos da criança.

A coleta é feita nas primeiras horas de vida do recém-nascido. Um computador gerencia o escâner e captura as imagens automaticamente – o operador apenas posiciona os dedos e outras extremidades a serem escaneadas e o próprio aparelho faz o clique. O formato ergonômico do escâner facilita o trabalho de captura e também permite acessar incubadoras neonatais para realizar a biometria de prematuros.

Natosafe Técnico realiza coleta de impressão da planta do pé de recém-nascido com escâner da NatosafeNatosafe

Uma dificuldade para essa tarefa é que a pele das extremidades dos bebês é fina demais – em recém-nascidos, a espessura é de 0,21 milímetro, menos da metade da espessura da pele adulta. Assim, mesmo escâneres de ponta usados para colher impressões digitais de adultos não geram imagens com resolução satisfatória para a identificação de recém-nascidos.

“A solução que encontramos foi recorrer à inteligência artificial [IA], o que não só melhora o processamento das imagens, gerando um detalhamento minucioso das marcas de identificação, como também aciona a captura automaticamente no momento ideal para gerar a melhor definição”, detalha Liebel. Ele explica que o software é “treinado” com diversas imagens de impressões digitais neonatais. Por meio de técnicas de aprendizagem profunda (deep learning), o algoritmo que processa as imagens “aprende” a cada nova imagem inserida no banco de dados e fica mais refinado.  Assim, conforme acumula repertório, o software estabelece padrões mínimos de qualidade para a captura e determina se a imagem tem definição suficiente para individualizar o recém-nascido.

Os dados são criptografados e enviados para os institutos de identificação de cada estado, o que já atende a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). É nesse momento que entra em cena a plataforma Infant.Id, um banco de dados por meio do qual cada estado é capaz de gerenciar as imagens biométricas coletadas em suas maternidades. A Natosafe garante não ter acesso a essas informações, que ficam à disposição exclusiva do poder público para fins de investigação, identificação, confecção de documentos e monitoramento de fronteiras.

A empresa estima que cada coleta custe R$ 10 para os estados – não há estimativa para o custo da coleta feita atualmente. Trata-se de um investimento de longo prazo, já que os dados biométricos neonatais têm ampla durabilidade. “Os detalhes capturados nas digitais infantis podem ser comparados com as impressões de quando as crianças forem adultas”, explica Liebel.

Uma forma de avaliar o potencial da tecnologia brasileira é compará-la com o ION, um protótipo de escaneamento biométrico criado na Universidade da Califórnia em San Diego (UCSD), nos Estados Unidos. Em artigo publicado no fim de 2019, os pesquisadores da UCSD apontam dificuldades que foram superadas pela Natosafe. A primeira delas é contar com a imprevisível colaboração dos bebês para colocar o dedo no lugar correto e ficar imóveis até o operador do escâner disparar o botão de captura.

Ao contrário do protótipo californiano, que tem um espaço reduzido para encaixar o dedo da criança – com aberturas de vários tamanhos que podem ser trocadas para melhor ajuste –, o NilmaOne apresenta uma superfície lisa e ampla de escaneamento. O formato evita deformações na imagem, é mais confortável para apoiar o dedo do bebê e de crianças de variadas idades e oferece área suficiente para colher digitais da mãe e imagens da palma das mãos e da planta dos pés do bebê. O clique humano, por sua vez, é dispensável, uma vez que o software faz a leitura do momento ideal para a captura das imagens.

O artigo também aponta a importância de se empregar recursos de inteligência artificial que possibilitem identificar sutilezas das impressões digitais infantis. E destaca a necessidade de realização de testes de campo para acumular dados e aumentar o repertório do software. No caso da Natosafe, a maior parte da coleta de campo vem sendo feita em Recife em parceria com o IITB: mais de 6 mil crianças já tiveram seus dados biométricos colhidos. Com a expansão do NilmaOne por outros estados brasileiros, a tendência é refinar ainda mais a sensibilidade do software, aprimorando a qualidade das imagens e, por consequência, elevar a segurança da técnica.

Artigo científico
SAGGESE, S. et al. Biometric recognition of newborns and infants by non-contact fingerprinting: Lessons learned. Gates Open Research. 5 nov. 2019.

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