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Pesquisa na quarentena

“Temos 182 espécies de morcego conhecidas e cada uma delas pode ter mais de uma linhagem de coronavírus”

Especialistas em zoonoses, Luiz Gustavo Bentim Góes e Angélica Cristine de Almeida Campos conciliam pesquisas com vírus e atenção à filha pequena

A família chegou a Berlim em outubro, a tempo de presenciar o outono

Arquivo pessoal

Luiz Gustavo Bentim Góes – Eu trabalhava com coronavírus desde o doutorado, no laboratório do [virologista] Edison Durigon, no Departamento de Microbiologia do ICB-USP [Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo]. Pesquisamos a prevalência e fizemos a caracterização molecular dos coronavírus que causam resfriado comum. Só dois tipos de coronavírus humanos, entre os quatro conhecidos no mundo, tinham sido detectados no Brasil quando iniciamos o estudo. A ideia era verificar se tínhamos esses outros tipos e qual o seu papel na geração de doenças respiratórias, principalmente em crianças atendidas no Hospital Universitário da USP em amostras coletadas ao longo de 15 anos.

Posteriormente, tive uma bolsa de pós-doutorado pela FAPESP para pesquisar a ecoepidemiologia de coronavírus em morcegos no Brasil, entre 2013 e 2017. Foi uma linha que apareceu graças a um estágio que fiz na Universidade do Colorado, nos Estados Unidos, durante o doutorado, como parte da bolsa do CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico]. Uma vez que o Brasil tem uma das maiores diversidades de morcegos do mundo, minha ideia foi verificar quais tipos de coronavírus circulavam em morcegos do território nacional. Claro que não conseguimos abranger todas as espécies, foi uma primeira análise.

No início do ano passado já havia a suspeita do surgimento de um novo coronavírus, possivelmente ligado a morcegos na China, o que acendeu um sinal de alerta. Buscamos estabelecer contatos para obter controles positivos e o laboratório onde trabalho agora, na Charité [hospital universitário vinculado às universidades Humboldt e Livre de Berlim, na Alemanha], desenvolveu um dos primeiros testes de diagnóstico para o Sars-CoV-2. Alguns pesquisadores não acreditavam na entrada do novo vírus no país, pois contavam com o fato de o Brasil ser um país de clima quente com inverno leve, mas sempre acreditei que chegaria e se estabeleceria. No meu doutorado vi que, mesmo em meses de verão, os outros coronavírus humanos circulam muito bem.

Nos mobilizamos para implementar o diagnóstico na USP e minha pesquisa da diversidade viral em morcegos ficou prejudicada. Uma das preocupações seria a falta de reagentes para prestarmos auxílio de diagnóstico para hospitais e centros de pesquisa. Desenvolvi meu projeto por apenas três meses até migrar para a Plataforma Científica Pasteur-USP [SPPU].

Com o Edison Durigon e a [biomédica] Paola Minoprio, diretora do instituto, rapidamente preparamos os laboratórios de biossegurança 3 [NB3] para funcionar. Foi um momento de muito trabalho de organização, com a escrita de projetos e solicitação de verbas para um programa do Instituto Pasteur francês, a FAPESP e o CNPq para a resposta rápida à pandemia.

Do dia para a noite, todo o conhecimento que eu tinha passou a ser mais valorizado. Até então, os coronavírus humanos só causavam resfriado comum, ninguém dava muita importância. A epidemia de Sars, em 2002, causou cerca de 800 mortes e 8 mil casos, no mundo todo. Apenas 10 anos depois se achou um coronavírus extremamente similar em morcegos. O coronavírus causador da Mers [Síndrome Respiratória do Oriente Médio], identificado em 2012, é transmitido por camelos a humanos, mas teve origem em morcegos em algum ponto de sua história evolutiva.

Arquivo pessoal O trabalho em laboratório é constante para AngélicaArquivo pessoal

Apesar de ter detectado coronavírus do mesmo subgênero do Mers-CoV, para a nossa sorte, entre as cerca de mil amostras de várias espécies de morcegos de diferentes regiões do Brasil que analisei durante o pós-doutorado, não encontrei nenhum vírus similar ao Sars-CoV ou ao Sars-CoV-2. Mas é preciso pesquisar mais, porque temos 182 espécies de morcego conhecidas e cada uma delas pode ter mais de uma linhagem de coronavírus. O Brasil também está no mapa de locais potenciais para o surgimento de doenças emergentes devido a outros fatores, que chamamos de indutores: o desmatamento, uma agropecuária extremamente intensa, uma taxa elevada da perda da biodiversidade pelo impacto das queimadas, mineração ou outros fatores. Todos os quatro coronavírus que causam resfriado comum, assim como os coronavírus emergentes que causam doenças extremamente graves, tiveram origem zoonótica, provindos de maneira direta ou indireta de morcegos.

Angélica Cristine de Almeida Campos – E não são só os coronavírus, vou puxar a brasa para a minha sardinha. A última pandemia que tivemos antes da atual foi o vírus H1N1 oriundo de um rearranjo entre diferentes tipos de vírus influenza, que ocorreu em suínos e saltou para seres humanos em 2009. Para a nossa sorte, não era tão patogênico quanto o Sars-CoV-2 e havia tratamento disponível. O antiviral oseltamivir ajudava muito se administrado no início dos sintomas. Também havia um conhecimento importante de vacinas para influenza, então no ano seguinte bastou incluir o vírus pandêmico na vacinação habitual.

Gustavo e eu nos conhecemos no ICB. Quando ele chegou, em 2008, eu também estava começando meu doutorado. Ele não admite, mas só se interessou por morcegos porque eu já trabalhava com eles. São animais essenciais ao equilíbrio do ecossistema, mesmo nas cidades algumas plantas só florescem se há polinização por morcegos. É comum que as pessoas pensem em personagens como Drácula e outras bobagens, mas existem mais de 1.400 espécies no mundo e só três delas se alimentam de sangue. As outras comem insetos, frutos, plantas, peixes ou pequenos animais como sapos ou ratinhos. Quando dizemos que os vírus têm origem em morcegos, a primeira reação da maioria das pessoas é querer matá-los. Mas alguns vírus coevoluem há milhares de anos com esses animais, que funcionam como uma cortina, uma barreira: seguram os vírus na natureza. Quando degradamos o ambiente, invadimos a floresta e aumentamos o contato de gente com animais silvestres, os vírus que os morcegos aprisionam são libertados. A culpa é nossa, nós abrimos essa “caixa de Pandora”.

Quando começou a pandemia eu estava finalizando meu trabalho de pós-doutorado com vírus influenza em morcegos e precisei de uma prorrogação da bolsa da FAPESP por mais dois meses, para terminar a análise dos resultados e escrever o relatório final. Gustavo já estava montando o sistema de resposta à pandemia com a Paola Minoprio e fui trabalhar com eles. Naquele momento, a única possibilidade para trabalhar no laboratório era com coronavírus, então mudei meu foco.

A Paola me contratou para fazer a parte de resposta à pandemia. Fazíamos coleta de amostras da comunidade da USP, para auxiliar no diagnóstico e tentar fazer um monitoramento. Os laboratórios NB3 são de última geração e estavam prontinhos. A plataforma foi inaugurada em julho de 2019, mas muitos equipamentos só chegaram no início de 2020. Em março, pusemos tudo para funcionar.

[Gustavo] Nossa filha, Maria Laura, estava com 4 anos e estudava na creche da USP, que fechou por causa da pandemia em março. Isso causou um impacto muito grande para nós, não tínhamos família perto. Então a Paola separou um escritório em uma área ainda desocupada do prédio, e a Maria Laura ia conosco. Ficávamos isolados dos outros para evitar contágio e respeitar todas as normas de biossegurança preconizadas pelas leis e boas práticas de laboratório, apesar de fazermos constantemente vigilância de infecção pelo Sars-CoV-2 nos membros ativos da equipe. A Maria Laura fazia os testes semanais também. É desconfortável, ela chora muito.

Arquivo pessoal Maria Laura acompanha os pais em coleta de morcegos, na região de Araçatuba, interior paulista, mas precisa ficar fora da floresta por segurançaArquivo pessoal

[Angélica] Quando eu estava dentro do laboratório NB3 o Gustavo ficava com ela, depois invertíamos. Isso só foi possível porque estava começando. Hoje a plataforma está a todo vapor, com uma equipe de mais de 20 pessoas, não existe mais espaço ocioso.

[Gustavo] Com o virologista Felix Drexler, da Charité de Berlim, elaborei um projeto para fazer uma avaliação do potencial de infecção em mamíferos da grande diversidade de coronavírus que encontrei no Brasil, o que deu origem à bolsa CNPq que em outubro de 2020 nos trouxe para a Alemanha. Escolhemos uma metodologia e algumas linhagens para desenvolver um ensaio baseado principalmente na proteína da espícula, relacionada ao reconhecimento do receptor celular no início da infecção.

A preparação para a mudança foi tensa. Eu tinha um prazo para obter o visto e viajar, ou perderia a bolsa. A concorrência é muito grande, submeti o projeto seis vezes antes de conseguir. Mas o consulado estava fechado por causa da pandemia. Por meio de um processo on-line precisei explicar a importância de minha viagem à Alemanha e que, se não usufruísse da bolsa agora, a oportunidade de pesquisa e formação científica seria perdida.

[Angélica] Vim para Berlim sem bolsa, apenas como esposa, mas já com planos de desenvolver parte da minha linha de pesquisa. Já tinha trabalhado no grupo do Felix Drexler em 2017 como parte da minha bolsa de pós-doutorado pela FAPESP. Sequenciamos o vírus que eu estava estudando e até hoje é a única descrição de vírus influenza em morcegos no Brasil. Ao chegar, fui conversar com ele. Assim que recebi o visto, fui contratada e incorporada aos projetos da Charité como pesquisadora associada. Tenho trabalhado com outros vírus e pretendo retomar meu projeto anterior, avaliando o potencial zoonótico do vírus influenza que até agora só foi encontrado em morcegos. Por estudos in vitro sabemos que, sozinho, ele não consegue infectar outras células de mamíferos. Mas como o genoma do influenza tem oito segmentos, se um morcego estiver infectado com dois tipos devírus, pode acontecer um rearranjo e gerar um potencial candidato a vírus pandêmico. Os trabalhos de vigilância e ecoepidemiologia, às vezes, são vistos como dinheiro desperdiçado, mas é a partir deles que podemos traçar novas estratégias de como identificar rapidamente um novo vírus e formar estruturas de combate e controle de pandemias.

No futuro, penso implementar no Brasil as técnicas que estamos dominando aqui e montar nosso grupo de pesquisa. Essas técnicas de avaliação do potencial zoonótico, com construção de vírus quiméricos, são bastante novas.

Arquivo pessoal Enquanto a mãe, paramentada, se preparava para colher amostras para diagnóstico de Covid-19, na SPPU, a filha permanecia dentro do prédioArquivo pessoal

A Maria Laura vai à creche aqui em Berlim. A adaptação agora foi mais difícil do que na vez anterior, em que ela tinha 2 anos – idade em que as crianças estão começando a falar – e rapidamente passou a ser a única do grupo, que incluía crianças alemãs, a saber contar até 10 na língua local. Desta vez, nos primeiros meses pedia muito para não ir, reclamava que não entendia as pessoas nem elas a entendiam. Mas agora já fez amigos e percebe que meu alemão é pior que o dela – embora eu estude, por respeito ao país que me recebe. Em março dois professores do berçário tiveram resultado positivo nos testes semanais e também surgiram casos em algumas famílias. Comunicada, a prefeitura agiu rápido e decretou o fechamento da creche por duas semanas, o tempo para detectar se alguém foi contaminado. Felizmente não houve mais casos, o surto foi contido e a creche reaberta.

Preciso ir praticamente todos os dias ao laboratório, porque trabalho com cultura de células. Como moramos muito perto da Charité, no caminho deixo a Laura na creche. Volto para casa quando termina a parte de laboratório e fico trabalhando aqui, seguindo a recomendação daqui. Quando a creche esteve fechada, atuávamos em rodízio, entre trabalho remoto e laboratório.

[Gustavo] Quando estou sozinho com a Laura, ela brinca, assiste a seus desenhos e faz atividades de maneira bastante independente. Ela solicita mais a atenção da mãe, como a maioria das crianças. Vamos torcer para que a vacinação dos professores aconteça logo e os ensaios em crianças se mostrem seguros, porque o futuro é vacinar as crianças também. Nós já tomamos a primeira dose, da AstraZeneca. A meta da Charité é imunizar todos os funcionários.

As empresas estão privilegiando o trabalho remoto e a disponibilidade de transporte público é grande, então dificilmente encontramos ônibus cheios. Mesmo assim, o Felix comprou bicicletas para toda a equipe, para minimizar o uso de transporte público. Aqui em Berlim tem muitas ciclovias, muito respeito ao ciclista. É um modo de locomoção muito comum. No laboratório há um rodízio para controlar o número de pessoas dentro de cada espaço.

Na universidade também é obrigatório usar máscara N95, que é a mais segura – no Brasil se chama PFF2. O Instituto de Virologia nos dá duas dessas máscaras por dia e testes semanais. Não fomos informados de nenhuma positividade dentro do instituto até agora.

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