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Biotecnologia

Terapia celular no radar

Empresa muda plano de negócios e passa a investir na medicina regenerativa em busca de cura para doenças ainda sem tratamento

Imagem montada a partir de fotos do coração de porco: as células do animal estão em verde e os cardiomiócitos humanos em rosa e vermelho (no detalhe)

Julliana Carvalho Campos-Oliveira e Antonio Fernando Ribeiro Júnior

Para todo pesquisador acadêmico, o empreendedorismo exige determinação, conhecimento dos riscos e boa dose de coragem para enfrentar os inúmeros percalços pelo caminho. Imagine, então, os obstáculos a serem superados quando se decide sair de um campo de atuação conhecido para investir em outro mais complexo e desafiador. Foi o que ocorreu com os criadores da empresa paulista Pluricell Biotech. Em 2014, menos de um ano após sua fundação, a startup de biotecnologia obtinha seu primeiro financiamento do Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe), da FAPESP, para um projeto que visava à produção de cardiomiócitos humanos. Seu objetivo, na ocasião, era oferecer essas células, responsáveis por fazer o músculo cardíaco pulsar, a pesquisadores acadêmicos para a realização de ensaios in vitro de novos fármacos.

Quase nove anos após sua criação, a startup mudou de rumo. Rebatizada de LizarBio Therapeutics, nome adotado ao iniciar seu processo de internacionalização, em abril de 2021, ela tem como foco avaliar o potencial de enxerto de cardiomiócitos para a regeneração de tecido cardíaco lesionado em vítimas de infarto, por exemplo. A meta da biotech agora é tentar desenvolver terapias celulares para doenças que ainda não têm cura pelos recursos atuais da medicina – um objetivo muito mais desafiador do que oferecer células para pesquisas de novos compostos. Um novo Pipe-FAPESP com esse escopo foi concedido em 2021.

Essa virada no plano de negócios é o que o dicionário corporativo chama de pivotar, termo que vem do inglês pivot, ou girar. Há quem compare essa mudança de estratégia ao movimento do pivô dos jogadores de basquete que, enquanto mantêm um dos pés no chão, como uma base fixa, giram o corpo em busca da melhor jogada. A base, no caso, foi o tema de estudo do biólogo Diogo Biagi, um dos criadores da Pluricell, em seu doutorado, realizado entre 2011 e 2014.

Para investigar as alterações ocorridas nas células cardíacas de indivíduos com cardiopatias, Biagi utilizou células da pele dos pacientes para gerar as células-tronco induzidas à pluripotência, semelhantes a células-tronco embrionárias, e depois as transformou  em cardiomiócitos. O doutoramento foi realizado com bolsa da FAPESP no Instituto do Coração (InCor) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FM-USP).

A tecnologia de produção das denominadas células-tronco de pluripotência induzida (iPSC) foi desenvolvida e publicada em 2007 pelo cientista japonês Shinya Yamanaka, que ganharia o Nobel de Medicina cinco anos depois. A principal aplicação dessa tecnologia, segundo Biagi, tem sido a modelagem de doenças e o desenvolvimento de novos fármacos. Células iPS obtidas dos pacientes tornam-se modelos experimentais que permitem ao cientista observar o comportamento do tecido celular doente e sua reação a novos compostos.

Assim, quando a Pluricell foi fundada por Biagi e dois colegas – o biólogo Marcos Valadares e o cardiologista Alexandre Pereira, que já não integra o negócio –, produzir células de pluripotência induzida para laboratórios de pesquisa brasileiros parecia ser a vocação natural da empresa. O orientador de Biagi no doutorado, o fisiologista José Eduardo Krieger, diretor do Laboratório de Genética e Cardiologia Molecular do InCor, suspeitou da decisão. “Achei estranho o modelo de negócio inicial. Eles queriam vender célula, mas não tinha mercado. Agora estão na área que acredito ser a mais correta, de regeneração”, comenta o pesquisador, um dos pioneiros no país no estudo de células-tronco para regeneração cardíaca, iniciado nos anos 2000.

Os sócios da startup, que hoje tem 10 pesquisadores, seis deles doutores, logo chegariam à mesma conclusão. “A decisão de pivotar surgiu no final de 2017, ao concluir que o mercado de pesquisa dessa área é pequeno e pulverizado, mesmo em âmbito mundial”, conta Valadares, CEO da LizarBio. “Percebemos que conseguiríamos agregar mais valor indo para a medicina, entregando produto para o paciente e não para o pesquisador.”

Léo Ramos Chaves Trabalho no laboratório: uma das pesquisadoras mostra lâminas histológicas de coração de porco…Léo Ramos Chaves

Ocorre que, com a alteração de rota, a startup deixou de oferecer produtos ao mercado de pesquisa médica – e perdeu sua única fonte de receita. Optou por se manter na linha de frente do incipiente campo da medicina regenerativa no Brasil, contando apenas com recursos obtidos de agências de fomento e investimentos do setor privado. Em 2019, recebeu US$ 1 milhão da empresa Libbs Farmacêutica para as pesquisas focadas na terapia celular regenerativa para doenças cardiovasculares, e em 2021 outros R$ 2 millhões de um escritório de investimentos cujo nome preferem não revelar. Da FAPESP, já obteve a aprovação de oito projetos Pipe, totalizando cerca de R$ 4,5 milhões.

A aposta na terapia celular para regeneração cardíaca foi seguida do processo de internacionalização da startup. Uma das parcerias foi estabelecida com o neurocientista brasileiro Alysson Muotri, da Universidade da Califórnia em San Diego, nos Estados Unidos, que utiliza células-tronco pluripotentes para o estudo da síndrome de Rett, doença neurológica causada por uma mutação genética que atinge principalmente meninas (ver Pesquisa FAPESP no 173).

“Crianças que sofrem da síndrome de Rett começam a apresentar sinais de atraso de desenvolvimento já nos primeiros anos de vida. Normalmente têm problemas motores e apresentam dificuldade de fala e comunicação”, conta a bióloga Estela Cruvinel, gerente de projeto da LizarBio. “É um quadro similar ao do autismo.”

A partir de iPSC, Muotri cria organoides cerebrais, modelos celulares tridimensionais do tamanho de ervilhas que mimetizam o comportamento do cérebro humano. Nesses minicérebros ele tem pesquisado drogas para a síndrome de Rett, que ainda não tem cura ou medicamento específico. “Conheci o pessoal da Pluricell há algum tempo e fiquei impressionado com a equipe. A ligação entre nós acabou sendo inevitável e a LizarBio foi criada em seguida, incorporando minha pesquisa com Rett e outras doenças neurológicas”, relata o neurocientista, que é cofundador da nova empresa.

De olho em uma potencial futura terapia para a síndrome de Rett, os pesquisadores estão diferenciando iPSC em células da glia – um conjunto variado de células encontradas no cérebro e em outros órgãos do sistema nervoso central, afetado pela doença. “Ensaios com células-tronco pluripotentes em camundongos foram iniciados no laboratório de Alysson. Os primeiros resultados devem sair nos próximos meses”, informa Cruvinel.

Gargalos e desafios
Incubada desde sua criação no Centro de Inovação, Empreendedorismo e Tecnologia (Cietec) da USP, a LizarBio pretende mudar em breve para uma sede própria. “A próxima rodada de investimentos tem como objetivo conseguir um lugar mais amplo”, afirma Valadares. Os novos recursos também serão empregados nos estudos para avaliar a capacidade de cardiomiócitos amenizarem a insuficiência cardíaca, que se encontram em estágio mais avançado do que os realizados com células do tecido nervoso.

De acordo com Biagi, o financiamento obtido do Pipe, fase 2, contempla a primeira etapa do projeto de avaliação do potencial de enxerto de cardiomiócitos no tecido cardíaco, que é a produção e a multiplicação das células em larga escala. “A etapa seguinte, que é a avaliação dos cardiomiócitos em porcos, ainda depende de investimentos, que esperamos obter em breve.” A empresa já fez testes iniciais para validar a metodologia que será usada nos testes pré-clínicos, que deverão contar com oito porcos, metade recebendo células-tronco e metade animais-controle.

Léo Ramos Chaves … enquanto outra observa células cardíacas humanas produzidas a partir das células iPSLéo Ramos Chaves

Nos testes realizados com ratos foram obtidos resultados promissores, descritos em artigo publicado no Journal of Personalized Medicine em abril de 2021. “As células injetadas promoveram melhora na função cardíaca, embora ainda não seja possível dizer quantos cardiomiócitos inseridos ficaram retidos no coração”, diz Biagi. Essa resposta ele espera obter no estudo com porcos, que têm o músculo cardíaco do tamanho similar ao do ser humano.

Segundo Krieger, esse é um dos principais gargalos na pesquisa com regeneração cardíaca. “Já conseguimos fazer cardiomiócito no laboratório. O problema é como entregar essas células para o coração de modo que elas se incorporem ao órgão e funcionem de maneira adequada.” O fisiologista explica que o cardiomiócito feito a partir das células-tronco ainda é uma célula imatura. Se oferece a vantagem de maior capacidade de proliferação – condição necessária para a regeneração do tecido cardíaco –, traz em contrapartida o risco de rejeição das células enxertadas ou ocorrência de arritmias. “O funcionamento cardíaco é rítmico; as células precisam trabalhar em conjunto”, explica Krieger.

Outro desafio é a quantidade de células que precisa ser produzida para o tratamento experimental. Enquanto na pesquisa com ratos foram injetados cerca de 10 milhões de cardiomiócitos, o teste em porco requer algo em torno de 1 bilhão. O número é similar ao que um ser humano perde quando sofre um infarto. A quantidade ideal de células enxertadas no tecido cardíaco ainda é investigada na LizarBio.

Para dominar a produção em escala, a empresa firmou parceria com o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), do governo paulista, por meio do Programa de Pós-graduação Interunidades em Biotecnologia da USP. Sob orientação da pesquisadora Patrícia Leo, do IPT, a bióloga Sirlene Rodrigues, da equipe da LizarBio, desenvolve em seu mestrado, financiado pela FAPESP, um projeto voltado a cultivo, multiplicação e diferenciação das células iPS em cardiomiócitos. O objetivo da parceria com o IPT é tentar dominar o novo processo de escalonamento produtivo, o que poderá levar à redução do custo de produção de cardiomiócitos.

No tocante à regulamentação do uso de células-tronco – outro entrave à medicina regenerativa –, houve um avanço importante nos últimos anos no país, destaca Valadares. “Até 2018 não havia arcabouço regulatório formal que permitisse o registro de produtos de terapia avançada”, diz. “Em fevereiro de 2020, a Agência Nacional de Viligância Sanitária [Anvisa] publicou a RDC [Resolução da Diretoria Colegiada] 338 que regulamenta o registro de produtos de terapias avançadas”, comemora.

No Japão, o governo permite desde 2013 ensaios clínicos com iPSC. Diversos grupos de pesquisa de outros países continuam na busca por uma terapia celular efetiva. “Os resultados animadores das pesquisas estão atraindo mais financiamento de empresas. Quando diminui o risco, entra o capital privado”, considera Krieger.

Não há, ainda, garantia de que a terapia regenerativa esteja disponível para tratamento em curto prazo. É a opinião da biomédica Marimelia Aparecida Porcionatto, professora de biologia molecular da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Medicina Regenerativa (INCT-Regenera), rede de pesquisa formada por 28 laboratórios associados de diferentes instituições. “Todo o processo de desenvolvimento pode durar 10 ou 20 anos, é difícil prever”, diz. “Houve muito progresso desde os anos 2000, quando os laboratórios começaram a estudar mais ativamente as células-tronco mesenquimais, isoladas de tecidos adultos. Achou-se que elas iriam consertar todos os males, mas isso não aconteceu.”

As células-tronco mesenquimais não se mostraram eficazes na regeneração cardíaca, por exemplo. “Hoje, a gente sabe que elas têm um papel mais de imunomodulação, reduzindo a inflamação no local”, destaca Porcionatto. Mesmo assim, elas podem vir a ter um papel importante na reparação do coração doente. Krieger concorda: “É uma técnica nova, com grande potencial de proporcionar melhora, mas não é milagrosa”.

Agora que as esperanças se voltam para as células-tronco de pluripotência induzida, os pesquisadores da LizarBio sabem que, além de enfrentar os desafios técnicos, econômicos e legais da pesquisa, ainda precisam lidar com a expectativa dos resultados. “Sabemos o tempo de desenvolvimento das coisas e estamos planejando bem cada etapa”, conclui Valadares.

Projetos
1. Avaliação do potencial de enxerto de células cardíacas humanas derivadas de iPSCs em porcos (nº 21/01413-3); Modalidade Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisadora responsável Estela Mitie Cruvinel (Pluricell); Investimento R$ 799.480,55.
2. Geração de células cardíacas humanas para uso em terapia celular (nº 18/22552-9); Modalidade Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisador responsável Diogo Gonçalves Biagi dos Santos (Pluricell); Investimento R$ 92.872,20.
3. Viabilização comercial de queratinócitos derivados de células-tronco pluripotentes induzidas e desenvolvimento de equivalente de pele (nº 16/50082-1); Modalidade Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Convênio Finep – Pipe/Pappe; Pesquisador responsável Estela Mitie Cruvinel (Pluricell); Investimento R$ 619.024,72.
4. Caracterização de cardiomiócitos derivados de células tronco de pluripotência induzida e padronização de ensaios celulares (nº 15/50224-8); Modalidade Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisador responsável Diogo Gonçalves Biagi dos Santos (Pluricell); Investimento R$ 1.020.338,16.
5. Geração de fibroblastos e queratinócitos a partir de células-tronco pluripotentes induzidas e sua caractereização para uso em testes de drogas (nº 14/50225-1); Modalidade Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisador responsável Estela Mitie Cruvinel (Pluricell); Investimento R$ 637.535,68.
6. Diferenciação de células-tronco pluripotentes induzidas em hepatócitos e sua caracterização para uso em testes de drogas (nº 13/50263-8); Modalidade Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisador responsável Marcos Costa Valadares (Pluricell); Investimento R$ 183.058,49.
7. Padronização de plataforma celular de cardiomiócitos humanos para teste de drogas in vitro (nº 13/50076-3); Modalidade Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisador responsável Diogo Gonçalves Biagi dos Santos (Pluricell); Investimento R$ 1.038.779,60.
8. Uso de células iPS (induced pluripotent stem) para compreensão de alterações em cardiomiócitos de pacientes com cardiomiopatias de base genética (nº 10/13426-8); Modalidade Bolsas de Doutorado; Pesquisador responsável Diogo Gonçalves Biagi dos Santos (Pluricell); Investimento R$ 118.557,73.
9. Produção biotecnológica e caracterização in vitro de cardiomiócitos em sistemas independentes de ancoragem a partir de células-tronco de pluripotência induzida para terapia celular (nº 20/06673-0); Modalidade Bolsas de Mestrado; Pesquisadora responsável Patrícia Leo (IPT); Investimento R$ 36.509,88.

Artigo científico
BIAGI, D. et al. In situ maturated early-stage human-induced pluripotent stem cell-derived cardiomyocytes improve cardiac function by enhancing segmental contraction in infarcted rats. Journal of Personalized Medicine. 4 mai. 2021.

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