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Resenha

Tradições inventadas

Pensar os museus: Mito, história, tradição | Bruno Brulon Soares | Nau Editora | 200 páginas | R$ 49,90

Nascida em Nápoles, a imperatriz Teresa Cristina (1822-1889) é uma personagem importante do livro Pensar os museus: Mito, história, tradição, do museólogo e antropólogo Bruno Brulon Soares. Sua educação clássica e seu gosto pelo colecionismo de bens arqueológicos a fizeram uma embaixadora do mundo clássico greco-romano em nosso país. A partir de sua chegada ao Brasil, em 1843, Teresa Cristina ajudou a constituir uma importante coleção composta por mais de 700 peças provenientes de distintos sítios arqueológicos da Itália.

A predileção da imperatriz pela arqueologia integrava um processo histórico amplo que vigorava desde o século anterior. Soares enfatiza que a coleção constituída pela monarca, uma vez musealizada, fortaleceu duas “instituições-conceito” coadunadas no Brasil: o passado clássico e o museu histórico. A coleção, inclusive, tornou-se parte da história da primeira instituição de pesquisa científica do país, o Museu Nacional, vitimado pelo incêndio de 2018.

O livro pontua a participação dos museus na construção da “antiguidade clássica”, especialmente por meio de suas coleções e pelas abordagens oferecidas sobre esse passado mítico. Esse é um ponto crucial: na ausência de universidades ou de sociedades independentes, os museus foram os fomentadores desse passado clássico no chamado “Novo Mundo”. Como o antigo não se inventa do nada, pois cada objeto é um pedaço de um passado específico, coleções como a de Teresa Cristina ajudaram as elites coloniais a constituírem uma ligação com o universo greco-romano imaginado e, portanto, a participarem da universalidade prometida pela civilização ocidental. É a própria ideia de “ocidente”, explicita o autor, que se buscou importar.

Afinal, qual o sentido de uma jarra de bronze utilizada em Pompeia ser exposta em um museu nacional brasileiro? O livro lança esse e outros questionamentos e os responde com franca habilidade ao debater como o processo de construção do passado clássico envolveu a constituição do Estado ocidental moderno enquanto herdeiro desse mesmo passado. Isso acarretou a defesa da superioridade do clássico mítico em relação às demais formas de civilização, o que implicava um passado comum e hierarquizado, no qual o ocidente europeu ocupava a vanguarda das civilizações. O recurso narcisista nos parece óbvio, mas nem sempre é perceptível, como mostra a pesquisa de Soares.

Aos museus coube a naturalização desses processos, por meio da sua condensação a partir da arqueologia e da história, e da sua visibilização aos visitantes. Assim, os museus operavam no preenchimento de lacunas sobre o passado, apresentando precisão onde havia registros imprecisos, gerando um misto de fantasia e realidade. Porém essa qualidade ficcional não significou automaticamente impostura, pelo contrário, era uma característica da narrativa moderna que buscou um efeito de integralidade e, por consequência, de “voz da verdade” performada pelos museus históricos até hoje. Em suma, o livro nos guia pelos campos das “tradições inventadas” e das metodologias herdadas da arqueologia, ajudando-nos a desmistificar o próprio passado do museu, este “templo sagrado” da modernidade.

Filiado ao pensamento museológico contemporâneo, o livro nos ensina que museus não musealizam objetos ou coleções, mas sim os sistemas de valores e de critérios que sustentam a conservação e a perpetuação de tais objetos.

Em um período no qual os programas e debates decoloniais nos são mais pertinentes, o livro tem a coragem de retomar uma discussão que explicita o funcionamento dos museus históricos e a sua importância nos dias atuais. Ao trazer em sua bagagem algumas peças oriundas das escavações promovidas em Herculano e em Pompeia, Teresa Cristina ofereceu à nação a concretude experimentável de um passado alheio, conectando-nos a ele. Tal elo se fortaleceu com os enunciados do museu que permanecem atuantes na encenação da nação por meio da antiguidade imaginada. Graças ao seu papel político de produzir e performar a história, museus são atacados diretamente, tanto aqui quanto no exterior – o autor nos lembra, por exemplo, dos assaltos ao Museu Egípcio, no Cairo, em 2011  –, justamente porque sua autoridade, em diferentes geografias, é capaz de presentificar a crença em uma “história nacional” anterior à própria nação. Eis o poder do mito.

Emerson Dionisio Gomes de Oliveira é historiador da arte e professor do Departamento de Artes Visuais da Universidade de Brasília (UnB).

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