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Covid-19

Transparência de dados é essencial na pandemia

Entidades civis avaliam como governos municipais, estaduais e federal divulgam informações sobre o alastramento do novo coronavírus

Menos de 100 brasileiros haviam morrido por causa da Covid-19 quando, em março deste ano, pequenos batalhões, com menos de 10 pessoas cada um, começaram a se articular para abrir os olhos do país sobre a gravidade da pandemia do Sars-CoV-2. Separados pelo distanciamento social, juntaram-se para formar uma linha de frente tão importante quanto a dos hospitais. Só que em vez de médicos e enfermeiros, os batalhões eram formados por sociólogos, jornalistas, matemáticos e cientistas de dados, empenhados em entender e explicar como o vírus se espalha e se comporta num organismo de dimensões continentais como o Brasil. 

O objetivo desse modesto mas eficiente exército é administrar a transparência como remédio para conter o alastramento do vírus. E isso, segundo eles, depende da distribuição de amplas doses de informação por parte dos governos municipais, estaduais e federal, que devem prestar contas à população sobre as características do problema e como os recursos públicos têm sido empregados para enfrentá-lo. 

Duas importantes iniciativas em prol da transparência de dados para o combate à Covid-19 no Brasil são o Índice de Transparência da Covid-19, criado pela Open Knowledge Brasil (OKBR), e o Ranking de Transparência no Combate à Covid-19, iniciativa do capítulo brasileiro da Transparência Internacional – as duas entidades às quais o batalhão de profissionais estão associados.

O primeiro índice, lançado no início de abril, se propõe a avaliar a qualidade dos dados epidemiológicos e sanitários sobre a pandemia publicados pelos governos das capitais, dos estados e da União em seus portais oficiais. “A transparência é um requisito básico da administração pública”, diz Fernanda Campagnucci, diretora-executiva da OKBR. “Em um momento de crise como esse, ela torna-se mais urgente. Quando os dados estão abertos e acessíveis fica mais fácil construir políticas públicas efetivas, baseadas em evidências.”

Para montar seu índice, a OKBR avalia três dimensões dos dados: conteúdo, granularidade e formato. O foco do primeiro critério é se os entes públicos divulgam informações minuciosas dos pacientes confirmados, como idade, sexo e detalhes da hospitalização, além de dados sobre a infraestrutura de saúde, como ocupação de leitos e testes disponíveis e aplicados. Com relação à granularidade, a entidade analisa se os casos são informados de forma individualizada e anônima e qual é o grau de detalhamento de sua localização – por município, bairro etc. Por fim, quanto ao formato das informações, é mais bem avaliado quem publica painéis analíticos, planilhas em formato editável e séries históricas. Ao verificar o tipo e a qualidade das informações divulgadas, o índice atribui notas de 0 a 100, que representam o grau de transparência com que o governo daquela capital, estado ou da União trata as informações relacionadas à Covid-19.

“Esses dados orientam tomadas de decisão que vão desde o planejamento da oferta de leitos até a distribuição dos testes, dando clareza sobre quais lugares estão com o contágio acelerado ou cujas projeções indicam que isso vá acontecer”, explica Campagnucci. “Quando organizações da sociedade civil têm acesso aos dados, eles podem ser submetidos ao escrutínio público, ajudando a validar a confiabilidade e a consistência das informações oficiais”, completa.

Contas às claras
A equipe brasileira da Transparência Internacional foca sua avaliação, que começou a ser divulgada em maio, em outro tipo de informação: as contratações emergenciais de bens e serviços realizadas pela administração pública para combater a pandemia. Como estados, municípios e a própria União estão contratando com regras excepcionais, a transparência na divulgação dessas operações é fundamental para o controle dos gastos públicos. 

Maria Dominguez, uma das lideranças na elaboração do Ranking de Transparência no Combate à Covid-19, explica que com a publicação da Lei Federal nº 13.979, de 2020, que permite a compra de bens e serviços para o combate à Covid-19 com mecanismos simplificados, as compras de respiradores, máscaras e álcool em gel, entre outros itens, passaram a ser feitas com mais rapidez e menos controle. “Aí surge o risco de desvios e de corrupção, como já vimos ao longo da pandemia. Um dos principais remédios contra essas irregularidades é a transparência sobre essas compras”, diz Dominguez.

Antes mesmo de produzir o ranking, a organização elaborou, em parceria com o Tribunal de Contas da União (TCU), um guia de recomendações para transparência nas contratações, listando exemplos de boas práticas nacionais e internacionais. O material foi enviado aos administradores públicos e as recomendações contidas nele tornaram-se os indicadores de análise para a produção do ranking. 

Cada um dos 54 entes governamentais que recebeu o guia (26 estados, 26 capitais, Distrito Federal e União) é avaliado, com uma nota de 0 a 100, de acordo com critérios como o tipo de dados divulgado; se as informações são de fácil acesso e disponibilizadas em formatos favoráveis para análise; se há legislação específica para as contratações emergenciais nos governos avaliados; e se existem mecanismos de controle social. 

Dever de casa
Na versão mais recente do ranking da Transparência Internacional, divulgada este mês, se considerarmos apenas a União, os estados e o Distrito Federal, o governo federal ocuparia a 22ª posição da lista com 71 pontos de 100 possíveis, à frente somente de seis estados: Roraima, Santa Catarina, Sergipe, Rio de Janeiro, Piauí e Acre (veja infográfico abaixo).

Campagnucci, da OKBR, destaca que o Brasil tem a vantagem de ter uma estrutura, o Sistema Único de Saúde (SUS), com procedimentos estabelecidos para coleta de dados. “Por outro lado, não houve uma liderança e uma articulação do governo federal com os outros entes para promover essa política de transparência e abertura de dados.”

Essa desarticulação também se materializa na falta de uniformidade com que os dados são geridos pelas diferentes esferas do poder público. “Os sistemas que o Ministério da Saúde disponibiliza para as secretarias municipais e estaduais são pensados unicamente para coletar dados com fins estatísticos. Por isso, os gestores têm dificuldade para extrair relatórios e cruzar com outras bases”, explica Campagnucci.

Ela aponta que há uma fragmentação das ferramentas do próprio ministério, como no cômputo de casos leves e casos graves. “Com isso, estados e municípios têm criado sistemas próprios, deixando a informação inconsistente. Ao mesmo tempo que temos a vantagem de contar com o SUS, não dispomos de um sistema único de informação. As informações não estão integradas.”

A cobrança por transparência tem ajudado a aprimorar o trabalho dos governantes e demais gestores públicos. Dominguez relata que, ao longo da pandemia, 90% dos 54 entes governamentais entraram em contato com a Transparência Internacional para expor dificuldades locais, tirar dúvidas sobre os itens avaliados e buscar soluções.

“Tem sido um processo interessante e colaborativo. Houve muita abertura e vontade do poder público de entender a importância da transparência e como funcionam as avaliações. Tanto que a média de pontuação dos estados saltou de 59 na primeira avaliação, em maio, para 84 na quarta versão, divulgada este mês.” No Índice da OKBR, o salto foi ainda maior: entre abril e setembro, a média dos estados pulou de 29 para 87.

Apesar da melhora, tanto a OKBR como a Transparência Internacional defendem que a transparência ainda pode ser melhorada. Elas seguem aprimorando suas métricas de avaliação e acompanhando os indicadores que os governos têm mais dificuldade em cumprir. A coleta de dados sobre os casos, a ocupação e a disponibilidade de leitos e a testagem são, segundo Campagnucci, os itens com menor taxa de cumprimento de transparência. “Falta infraestrutura tecnológica para fazer a gestão do sistema de saúde no dia a dia. Um exemplo é a dificuldade em gerenciar os estoques de testes, avaliar a capacidade de realização desses diagnósticos e monitorar sua realização”, ressalta.

O trabalho de promover a transparência governamental com metodologias claras e constante aprimoramento dos indicadores pode ter efeito para além da pandemia. “Existe no país uma forte cultura de manter o sigilo dos dados de saúde, mesmo que eles sejam anônimos, sem exposição de informações pessoais”, ressalta Campagnucci. “O que temos ouvido dos secretários de planejamento e de gestores de transparência e controle é que essa crise mostrou que é possível abrir esses dados de forma segura – e não apenas os da saúde, mas também os da educação e de outras áreas – e instituir processos para tornar essa abertura mais permanente.”

Segundo a diretora-executiva da OKBR, a crise da Covid-19 também é uma oportunidade para melhorar os processos de gestão e de publicação de dados. “Ficou claro que basta vontade política para isso acontecer. Quando prefeitos e governadores dizem que querem ser a cidade ou estado mais transparente nos rankings, em duas semanas a divulgação de dados se resolve. O principal entrave para a transparência não é orçamentário ou tecnológico, mas político. Com a sociedade cobrando e acompanhando, as boas práticas devem permanecer como legado”, completa.

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