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Ficção

Tufos: Dez facínoras e uma bala

"McIntosh desviou os olhos da pilha de cadáveres e encarou o sol, que se punha vermelho no deserto. Sobrava uma bala. Tinha a vida inteira pela frente." (Will Toofalls)

Não há exagero em dizer que Tufos é hoje um mito internacional. Artista multimídia com trânsito e voz ativa nos mais fechados círculos do pós-conceitualismo europeu, nenhum outro brasileiro levou tão longe as investigações sobre o poder dos simulacros, a textura fugidia da identidade, a questão da representação como alicerce líquido do real. O que pouca gente sabe é que todos esses temas já estavam equacionados, embrionariamente, no início de sua trajetória. Pode-se afirmar que a obra-prima de Tufos é o próprio Tufos, como veremos.

Seus tufos nem eram tão vastos assim. Faziam dele um sujeito a meio caminho entre o careca e o cabeludo, mas projetavam-se de vontade própria para todos os lados em ângulos tão improváveis e pontudos, como num cartum japonês, que ninguém ao conhecê-lo pensaria que seu nome pudesse soar esquisito. Nome artístico, nome social, nome mesmo: Tufos, sabe o Tufos? Grande Tufos! O apelido de batismo, F.R.P., ficou enterrado no monturo de mistérios do personagem. Era como se Tufos não tivesse certidão de nascimento, carteira de motorista ou de identidade. Tudo isso ele tinha, só que ninguém queria saber seu nome, ou melhor, Tufos era um nome irretocável, e aí inventavam aquela história de mistério.

Quase tudo a seu respeito era inventado desde o início. Não pelo próprio Tufos, o que o tornaria um farsante total, mas pelos que o cercavam, artistas e “artistas” do ebuliente circuito alternativo do Rio de Janeiro naqueles anos 80 em que ele construiu um fulgurante prestígio como escritor e poeta performático. O tipo de cara para quem as menininhas bem-nascidas faziam questão de dar quando queriam parecer descoladas. O conviva sem o qual nenhuma festa de respeito jamais seria completa. É claro que tudo isso teve o incentivo das lacunas providenciais que o próprio Tufos pespegava em sua história, acabando por abranger a história quase inteira. Não era um farsante total, era um meio farsante. Poderia se defender perguntando quem não é.

Tinha vindo de Marechal Hermes, isso se sabia, não conseguira apagar tão fundo. Mas apagara o suburbano de anedota que tinha sido em seu primeiro mês de Faculdade de Comunicação com bolsa integral na PUC: encabulado, feio, camisa social de manga curta, sandálias franciscanas. Ah, sim, virgem também. Filho único de uma tristonha família de classe média baixa afundante, o pai um modesto funcionário público cuja única atividade semelhante ao lazer era botar uma cadeira na calçada e passar os fins de semana tomando cerveja e lendo um faroeste de banca de jornal atrás do outro. Não surpreende que a mãe, dona-de-casa, sofresse de depressão crônica.

Curiosamente, foram aqueles livrinhos baratos, que tinham nomes como Diligência para o inferno e Justiça se faz com chumbo, o primeiro trampolim de Tufos para a metamorfose que o campus cheio de árvores vetustas da Gávea, num piscar de olhos, viu acontecer. Em alguma coisa ele tinha que se apoiar. O bizarro apelido de infância dado por um primo e os faroestes do pai desempenharam esse papel. O resto de suas origens ele apagou literalmente, chegou a queimar fotos. Mais tarde, sua fama começando a se espalhar, os espaços vazios seriam preenchidos pelos boatos – todos descabelados – de que no caminho de Marechal Hermes para a Zona Sul ele tinha feito escala em Londres e ficado amigo de Joe Strummer, passado em Recife para tocar triângulo na primeira formação do Nação Zumbi, tomado porres fenomenais com Arrigo Barnabé na Lira Paulistana, posado nu para uma agressiva campanha contra a Aids que o governo engavetou porque era agressiva demais, enfim, todas as lendas e histórias mal contadas que foram se grudando magicamente no garoto suburbano para transformá-lo em Tufos, personagem maior que a vida. Mas tudo começou com Dez facínoras e uma bala.

Tufos também tinha lido nos fins de semana modorrentos do subúrbio a sua cota de Desfile de cadáveres, Profissão: matador, Desfiladeiro fatal, Poeira rubra de sangue. Os livrinhos estavam ali mesmo, depois de lê-los o pai já não lhes dava bola, largava-os em qualquer lugar, na cozinha, no banheiro. Assinavam as capas cartunescas nomes improváveis como Randy Dollars, Rip Comanche e Lucky Barr.

O título e o pseudônimo surgiram em sua cabeça ao mesmo tempo: Dez facínoras e uma bala, de Will Toofalls. Escreveu a história ao longo daquele primeiro mês de sandálias franciscanas na PUC, arquitetando em segredo a borboleta – no sentido másculo, se é que ele existe – em que seu estado lagartíssimo de então se dissolveria. Era um faroeste de arcabouço clássico, com um herói errante, uma linda viúva que tem seu rancho cobiçado por bandidões diante da complacência de um velho xerife corrupto, um índio bom e todas aquelas Colts vomitando fogo sob o sol de rachar. Um faroeste tão clássico e tão bem amarrado, com pitadas adicionais de ultraviolência e sexo expressionista para melhorar a receita, que a editora, uma espelunca no Estácio, ficou feliz em publicá-lo de graça. Como poderia saber que Will Toofalls fizera da história texana um espelho da vida no campus de uma universidade carioca?

A viúva, Mel Hopewell, era idêntica a Melanie, a presidente do Centro Acadêmico que a galera de uma certa “tendência” comunista mais barra-pesada tentava na época derrubar. O xerife pusilânime era o reitor. Funcionários, professores e alunos faziam pontas como personagens secundários. O índio era a única figura realmente fictícia do livro, mas o herói, Ned McIntosh, se confundia com o próprio Tufos.

— Mr. McIntosh, eu não sei como lhe agradecer — disse Mel Hopewell, dando um passo na direção de Ned.

O herói solitário hesitou. Não estava acostumado com mulheres alvas e cheirosas, frescas de banho, tão diferentes das criaturas de pele e olhos endurecidos com quem cruzava feito bicho em suas andanças pelo Velho Oeste, antes de cada um seguir o seu caminho. Olhou fundo nos olhos verdes da viúva como se encarasse seu opositor num duelo ao sol. Nada disse.

— Pelo menos — prosseguiu Mel Hopewell, abrindo um sorriso de dentes perfeitos e dando mais um passo — me mostre a arma abençoada que salvou a minha vida e o meu rancho, Mr. McIntosh.

— Pode me chamar de Ned.

— Está bem, Ned. É de cano longo?

Foi um furor. Em pouco tempo, os vinte exemplares que ele adquiriu com desconto na editora e distribuiu na universidade tinham circulado de mão em mão e virado itens de colecionador. As sandálias foram trocadas por um par de tênis roxos, a camisa social por camisetas do The Cure, os tufos começaram a crescer. Mais tarde é que viria o brinco de argola. Melanie gostou tanto da homenagem que fez com o autor a mesma coisa que Mel Hopewell fazia com Ned McIntosh. Tufos perdeu a virgindade graças à literatura, e o resto é história.

Sérgio Rodrigues, 44 anos, editor e colunista da revista eletrônica www.nominimo.com.br, é autor dos livros O homem que matou o escritor (contos) e What língua is esta? (crônicas). Seu primeiro romance, As sementes de Flowerville, sai este ano pela Editora Objetiva.

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