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Saúde coletiva

Uma agenda para as doenças esquecidas

A OMS apresenta um roteiro de desafios para mudar até 2030 o panorama das moléstias tropicais negligenciadas

Atendimento médico a uma família em Uagadugu, Burkina Faso: distribuição de remédios e novas estratégias terapêuticas livraram 600 milhões de pessoas do espectro das doenças tropicais negligenciadas desde 2012

Olympia de Maismont / AFP via Getty Images

Para enfrentar a emergência sanitária do novo coronavírus, governos e cientistas conseguiram desenvolver em menos de um ano um portfólio de vacinas baseado em diferentes tecnologias e começaram a aplicar sete formulações de imunizantes. A prioridade clamorosa da Covid-19 contrasta com a sina de um grupo de doenças infecciosas que atinge a humanidade há muito tempo, sem que a pesquisa científica e políticas públicas consigam articular esforços para extingui-las ou neutralizá-las. Um relatório lançado em janeiro pela Organização Mundial da Saúde (OMS) atualizou a situação de 20 dessas moléstias, chamadas de doenças tropicais negligenciadas (ver quadro). Em comum, elas atingem predominantemente pessoas e países pobres – o que ajuda a explicar os investimentos insuficientes em prevenção, diagnóstico e tratamento.

Resultado do trabalho de mais de 50 técnicos e especialistas, o documento mostra um conjunto de avanços no combate a essas doenças desde uma reunião ocorrida em Londres, na Inglaterra, em 2012 – na ocasião, representantes de governos, das empresas farmacêuticas, do Banco Mundial, da OMS e da Fundação Bill & Melinda Gates estabeleceram um roteiro para enfrentá-las. O resultado foi que, nesses oito anos, 600 milhões de pessoas saíram da zona de suscetibilidade às doenças negligenciadas e 42 países conseguiram se livrar de pelo menos uma delas.

Entrevista: Rosa Castália Ribeiro Soares
00:00 / 21:24

Os avanços foram possíveis graças a doações feitas por 11 empresas farmacêuticas de 3 bilhões de comprimidos de medicamentos por ano e da adoção de novas estratégias de prevenção e tratamento nas áreas mais afetadas. Em certos casos, o controle não envolvia medidas complexas. Um exemplo é o da dracunculíase, que provoca ferimentos nos pés e pernas; em 1986 chegou a vitimar 3,6 milhões de africanos. Em 2019, houve apenas 54 registros da infecção, graças sobretudo à oferta de água potável em áreas endêmicas.

Liba Taylor / OMS Distribuição de água potável no Zimbábue nos anos 1990 para prevenir disseminação da dracunculíaseLiba Taylor / OMS

Em outras situações, a estratégia foi aplicar novas terapias. O número de casos de tripanossomíase africana, conhecida como doença do sono, caiu de 7 mil em 2012 para menos de mil em 2019. Isso foi consequência do desenvolvimento de um medicamento oral, o fexinidazol, por um consórcio de instituições coordenado pela Iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDi), organização sediada em Genebra, na Suíça. Os cinco remédios disponíveis até então precisavam ser administrados por injeção. O fexinidazol foi sintetizado nos anos 1970, mas só há uma década se descobriu seu potencial contra a enfermidade.

Apesar dos progressos, a OMS estima que 1,74 bilhão de pessoas ainda sofra com tais doenças, que são responsáveis por 500 mil mortes anuais. Por isso, o relatório da OMS estabeleceu um novo roteiro de metas para 2030, alinhadas com os Objetivos do Milênio para o Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações Unidas, que preveem acabar com epidemias dessas moléstias no mundo nos próximos 10 anos. O propósito, como definiu o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanon Ghebreyesus, é “libertar mais de 1 bilhão de pessoas que hoje precisam de intervenções contra as doenças tropicais negligenciadas”.

Christopher Black / OMS Centro de tratamento de leishmanioses em Cabul, AfeganistãoChristopher Black / OMS

Naturalmente, não se espera que as ambições para 2030 sejam integralmente alcançadas. “Essas metas em geral são utópicas, mas ajudam a orientar a aplicação de recursos e podem ser efetivas nos países mais organizados”, afirma o infectologista Marcos Boulos, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP), um dos representantes do Brasil no grupo técnico consultivo que definiu e sumarizou as recomendações do relatório da OMS. “É comum que surjam outras prioridades e desviem a atenção das metas. Agora, o mundo todo está mobilizado para enfrentar a Covid.”

As novas metas para as doenças negligenciadas propõem ações integradas para combatê-las e identificação de lideranças espalhadas pelo planeta para trabalhar de perto nos problemas. “Integração significa destinar recursos para cuidados de saúde com abordagens mais holísticas. Profissionais de saúde treinados para testar a doença do sono também devem estar preparados para buscar outros males prevalentes em sua região”, explicou a médica francesa Nathalie Strub-Wourgaft, diretora de doenças tropicais negligenciadas da DNDi, em entrevista ao site da organização.

Fabio Teixeira / Agência Anadolu / Getty Images Paciente internado no Hospital Curupaiti, antiga colônia de tratamento de hanseníase no Rio de Janeiro, em imagem de 2016Fabio Teixeira / Agência Anadolu / Getty Images

Um dos principais desafios será obter recursos. Um levantamento da organização G-Finder, que monitora investimentos em pesquisa e desenvolvimento (P&D) em saúde, mostrou que o financiamento global para combater essas enfermidades alcançou US$ 4,05 bilhões em 2018, 7% a mais do que no ano anterior. O problema é que o G-Finder considera como negligenciadas doenças que não são mais classificadas assim pela OMS, como malária, Aids e tuberculose, e foram elas o alvo da maioria dos recursos. Em um grupo de seis moléstias que historicamente recebe poucos recursos, entre as quais hanseníase, tracoma e úlcera de Burili, houve queda nos investimentos em 2018. A malária é um exemplo de doença com alta prevalência em países pobres que passou a ser vista como prioridade. Em 2018, a Fundação Bill & Melinda Gates destinou US$ 1 bilhão ao programa de combate à malária da OMS e encomendou um estudo que resultou em um roteiro de ações em prevenção e pesquisa para erradicá-la até 2050.

Parte significativa da agenda para combater as doenças negligenciadas depende de colaborações científicas e do desenvolvimento de novos tratamentos. Os desafios para pesquisadores estão em múltiplas frentes. No caso do micetoma, causado por fungos ou bactérias, ainda não existem testes capazes de detectar a infecção em seus estágios iniciais, o que é essencial para evitar formação de deformidades na pele. Em muitos casos, já faria muita diferença aperfeiçoar os tratamentos existentes. Um consórcio de centros de pesquisa, que inclui a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), está concluindo os estudos clínicos de fase 3 de um antiparasitário já indicado para o tratamento da esquistossomose, o prazinquantel, mas com uma formulação para crianças de 3 meses a 6 anos. “A apresentação existente não pode ser usada por crianças menores de 4 anos de idade. Trata-se de um comprimido extremamente amargo, que pode provocar vômitos quando mastigado, limitando muito o tratamento”, explica a médica baiana Rosa Castália Ribeiro Soares, coordenadora do Programa Nacional de Hanseníase e Doenças em Eliminação do Ministério da Saúde entre 2004 e 2007 e de 2011 a 2016. Ela também faz parte do grupo técnico que ajudou a elaborar o relatório e o roteiro da OMS. Transmitida pelo contato com água contaminada com parasitas, a esquistossomose é endêmica em vários países da África. No Brasil, era um grande problema de saúde pública até a década de 1970 e foi combatida com o acesso a saneamento, educação em saúde, tratamento de comunidades afetadas, além da eliminação dos caramujos hospedeiros.

A indústria farmacêutica tem demonstrado interesse limitado em desenvolver medicamentos contra as doenças negligenciadas. Como atingem populações muito pobres, tais remédios têm um potencial restrito de exploração econômica. Um levantamento feito em 2018 por pesquisadores da Universidade de Fudan, na China, mostrou que, entre 2000 e 2011, apenas 5 dos 850 medicamentos que obtiveram registro nos Estados Unidos e na Europa eram destinados a moléstias da pobreza – em todos os casos, tratava-se de novas aplicações de fármacos já existentes. “No século XXI, ainda não foi produzido nenhum medicamento inovador para as 20 doenças tropicais negligenciadas”, afirma o químico Adriano Andricopulo, do Instituto de Física de São Carlos da USP, que trabalha no desenvolvimento de fármacos contra Chagas e leishmaniose.

Fernando G. Revilla / OMS Aplicação de inseticida para matar insetos transmissores da doença de Chagas na vila de Palmarito, na BolíviaFernando G. Revilla / OMS

No caso dessas duas enfermidades, causadas por uma mesma família de protozoários patogênicos, os tripanossomatídeos, o desafio é desenvolver medicamentos novos. Os principais fármacos para combater a leishmaniose visceral são os medicamentos antimoniais, considerados muito tóxicos. Já o mais utilizado contra a doença de Chagas é o benznidazol, eficaz só em casos detectados na chamada fase aguda. Estudos em genômica e proteômica têm investigado os processos relacionados à capacidade de esses parasitas sobreviverem nos hospedeiros, em busca de fármacos capazes de evitar a infecção.

Em São Paulo, três grupos dedicados a essa frente de investigação se reuniram no ano passado para organizar um evento internacional, a Escola São Paulo de Ciência Avançada em tripanossomatídeos patogênicos, financiada pela FAPESP. Trata-se de um curso de curta duração, com a participação de pesquisadores e jovens doutores do Brasil e de outros países para discutir os avanços nesse tópico de pesquisa. O evento, programado para o final de 2020, foi adiado para o segundo semestre de 2022. “Cogitamos fazer a escola on-line, mas a interação que esse tipo de curso propicia depende muito do contato presencial”, afirma Angela Kaysel Cruz, pesquisadora da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP e organizadora da escola.

Cruz trabalha com ciência básica, analisando os mecanismos moleculares pelos quais os parasitas Leishmania sofrem reprogramação genética durante seus ciclos de vida em busca de alvos para novos medicamentos. Coordena também o projeto temático Centro Brasil-Reino Unido para Estudo da Leishmaniose, financiado pela FAPESP e por instituições britânicas como a agência UK Research and Innovation e o Fundo Newton, executado em parceria com o parasitologista Jeremy Mottram, da Universidade de York. “A parceria com o Reino Unido inclui desde perguntas básicas de genética molecular, para compreender como o parasito Leishmania funciona e regula sua expressão gênica, e passa pelo estudo da fisiopatologia da doença”, afirma. Isso se complementa com a expertise dos colaboradores, que analisam estruturas de moléculas e procuram inibidores de proteínas.

Os outros dois grupos também têm parcerias com equipes do Reino Unido. O bioquímico Ariel Silber, do Instituto de Ciências Biomédicas da USP, trabalha com pesquisadores da Universidade de Glasgow, em busca de compreensão de como o metabolismo afeta a proliferação do parasita. Já Adriano Andricopulo trabalha com colegas da Universidade de Dundee. Seus estudos procuram alvos para novos medicamentos em moléculas inovadoras a partir de produtos naturais da biodiversidade brasileira.

Coordenador de transferência de tecnologia do Centro de Pesquisa e Inovação em Biodiversidade e Fármacos (CIBFar), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) apoiados pela FAPESP, Andricopulo estuda 10 moléculas candidatas a medicamentos contra Chagas e 20 para leishmaniose. Entre os mais promissores, destaca-se a classe de inibidores de uma enzima cruzaína envolvida em todos os estágios de desenvolvimento e diferenciação do parasita Trypanosoma cruzi. O grupo de São Carlos participa de um consórcio internacional criado em 2019 para desenvolver medicamentos contra doença de Chagas, leishmaniose visceral e malária. Liderada por Luiz Carlos Dias, do Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a iniciativa receberá investimentos de R$ 43,5 milhões da FAPESP e das organizações internacionais DNDi e Medicines for Malaria Venture (MMV).

LQMC / IFSC Laboratório de Química Medicinal e Computacional do Centro de Pesquisa e Inovação em Biodiversidade e Fármacos, que busca novos medicamentos para Chagas e leishmaniose, em São Carlos (SP)LQMC / IFSC

O combate à hanseníase também inspira esforços de ciência básica para criar novos remédios. Na Fiocruz, no Rio de Janeiro, o microbiologista Flavio Alves Lara elucidou em 2016 como Mycobacterium leprae altera o metabolismo das células que recobrem os axônios, responsáveis pelo transporte de impulsos elétricos nervosos, e assume o controle de seu metabolismo para obter energia. “O metabolismo da célula infectada, em vez de abastecer o axônio, passa a fornecer glicose e gordura para o invasor”, explica. Lara trabalha agora na busca de uma molécula que bloqueie esse processo. “Parece uma meta desnecessária, porque é possível matar a bactéria com antibióticos. Mas alguns pacientes continuam desenvolvendo neuropatias durante o tratamento e alguns até pioram em um primeiro momento. Seria importante ter uma droga complementar que protegesse os nervos ao longo da terapia, que pode durar um ano”, diz. Atualmente, ele testa essa possibilidade em ensaios in vitro com um composto que, por ser muito tóxico, não poderia ser utilizado clinicamente. “A ideia é produzir uma prova de conceito para procurar moléculas mais viáveis”, explica.

Há ainda um grande espaço para a contribuição de epidemiologistas. A esquistossomose ainda depende de estratégias de vigilância, como o monitoramento da presença dos caramujos em rios. Em um estudo publicado em 2018 na revista Epidemiologia e Estudos de Saúde, o médico Omar dos Santos Carvalho, do Instituto René Rachou, da Fiocruz de Minas Gerais, fez uma análise detalhada da distribuição geográfica dos caramujos hospedeiros do verme Schistosoma mansoni em Pernambuco, Paraná, Minas Gerais, Bahia e Rio Grande do Norte. As informações levantadas alimentaram as bases de dados das equipes de vigilância sanitária que trabalham com a prevenção. Foram encontrados os moluscos em 300 dos 427 municípios estudados. Em 53 deles, havia simultaneamente duas espécies.

Andy Craggs / OMS Moscas tsé-tsé, transmissoras da tripanossomíase humana africana, coletadas em zona rural da TanzâniaAndy Craggs / OMS

O Brasil obteve grandes avanços no controle de doenças negligenciadas, como Chagas e esquistossomose. Para Rosa Castália, os resultados positivos devem ser atribuídos também ao trabalho descentralizado do Sistema Único de Saúde (SUS). “Nos últimos 15 anos, o treinamento de profissionais em Atenção Básica de Saúde ampliou a capacidade de oferecer diagnóstico e tratamento”, afirma. Ela menciona o exemplo da hanseníase, cujos registros não têm diminuído nos últimos anos mesmo com a ampliação do atendimento. “Na medida em que se aperfeiçoa a vigilância e se amplia o acesso ao diagnóstico, é natural que surjam mais casos porque há uma busca ativa de indivíduos contaminados e melhor notificação”, diz. “No entanto, condições sanitárias e fatores associados à transmissão ainda pouco conhecidos também são importantes na manutenção dos níveis endêmicos.” O Brasil só é superado pela Índia em registros de doença. Em 2018, foram 27 mil novos casos.

Para Flavio Alves Lara, da Fiocruz, a subnotificação não explica sozinha a persistência da hanseníase. “Provavelmente, há diversos reservatórios da bactéria na natureza – os tatus são reservatórios conhecidos – e não estamos fazendo um esforço eficiente para identificá-los”, afirma. Ele observa que a maioria dos casos está em fronteiras agrícolas, como no arco do desmatamento na Amazônia. “A hanseníase não é uma doença tropical nem urbana. Era predominante em toda a Europa, mas sua transmissão local foi interrompida de forma concomitante aos processos de industrialização e urbanização na  região ao longo do tempo. Acredito que os reservatórios naturais europeus tenham desaparecido durante a revolução industrial ou ao menos reduzido sua interação com o homem. Os esquilos vermelhos, que tinham seus rabos utilizados na confecção de adornos e chapéus femininos, ainda povoam a Inglaterra e foram somente agora identificados como reservatórios naturais da doença.”

Simon Lim / OMS Caramujos dissecados para verificar contaminação pelo parasita da esquistossomose em Xangai, ChinaSimon Lim / OMS

Quando participou da elaboração do relatório da OMS, o infectologista Marcos Boulos encontrou dificuldades para sensibilizar os outros membros do painel sobre os problemas enfrentados no Brasil. “Em geral, o alvo das preocupações e dos recursos da organização é a África, que concentra boa parte das doenças.” Mas o Brasil ocupa uma posição pouco confortável no panorama de incidência das 20 moléstias negligenciadas. Só duas delas comprovadamente não estão presentes aqui: a dracunculíase e a tripanossomíase africana. É certo que o Brasil está perto de se livrar de algumas delas. A oncocercose, doença parasitária que pode causar cegueira, ainda tem um foco no país, em Roraima, na fronteira com a Venezuela, no território habitado pelos Ianomâmi. “Os agentes de saúde e os médicos têm de entrar na mata e ver onde os indígenas estão, pois muitos são nômades. Há evidências de que não tem ocorrido mais transmissão, mas isso precisa ser confirmado com protocolos definidos pela OMS”, afirma Rosa Castália. A filariose linfática, que causa inchaço nas pernas, desapareceu nos estados da Bahia, de Alagoas e do Pará, mas ainda está em processo de certificação da eliminação em Pernambuco, onde havia focos ativos até poucos anos atrás.

A ciência dispõe de um arsenal de estratégias para eliminar ou controlar doenças infecciosas. As vacinas, quando disponíveis, são a principal solução. Graças a elas, a varíola foi erradicada e outras enfermidades são mantidas sob controle por meio de imunizações periódicas. O advento dos antibióticos igualmente transformou antigos flagelos em infecções tratáveis, caso da cólera ou da peste bubônica – a oferta de saneamento básico também ajudou a eliminá-las. Segundo a OMS, há perspectiva de erradicação completa para poucas doenças negligenciadas nos próximos anos, como a dracunculíase ou a bouba. Para as demais, o desafio é mantê-las em um patamar administrável.

Instituto Butantan Etapa de produção da vacina liofilizada contra a dengue em desenvolvimento no Instituto ButantanInstituto Butantan

No rol das doenças negligenciadas, as mais preocupantes no Brasil atualmente são a dengue e a leishmaniose visceral. “Vamos continuar convivendo com epidemias anuais de dengue e de chikungunya, porque não tivemos competência de tirar o Aedes aegypti da casa da gente”, diz Marcos Boulos. “Doenças que dependem da eliminação de mosquitos são difíceis de erradicar.” O desenvolvimento de uma vacina poderia mudar esse panorama. Há 12 anos, o Instituto Butantan, em São Paulo, trabalha no desenvolvimento de um imunizante (ver Pesquisa FAPESP nº 291). No ano passado, foram registrados perto de 1 milhão de casos de dengue no Brasil, com pouco mais de 500 mortes.

Outro desafio é combater a leishmaniose visceral, doença rural e restrita à região Nordeste até a década de 1980, que nos últimos anos vem avançando rumo a centros urbanos, incluindo cidades paulistas. Ela é causada pelo protozoário Leishmania infantum chagasi e transmitida pelas picadas das fêmeas de insetos Lutzomyia longipalpis. Um reservatório do parasita são cães contaminados. “Os insetos não são urbanos. Vivem em matas próximas às cidades e é muito difícil combatê-los. Precisamos produzir mais conhecimento sobre como ela está se espalhando. Em 2019, duas crianças morreram de leishmaniose na cidade de Guarujá [SP] e não conseguimos até hoje rastrear onde estavam os focos de contaminação”, explica Boulos. Não faltam alvos de pesquisa para quem puder investigar as doenças negligenciadas.

As doenças e a pobreza
O status e a incidência das 20 moléstias tropicais classificadas como negligenciadas pela Organização Mundial da Saúde

Passíveis de erradicação
Dracunculíase
Causada por parasita conhecido como verme-da-guiné, produz úlceras principalmente nas pernas. É transmitida por água contaminada. Há casos em países como Angola, Chade e Sudão do Sul

Bouba
Infecção da pele e articulações originada pela bactéria Treponema pallidum pertenue, pode provocar deformidades físicas. Ainda é endêmica em 15 países, como Costa do Marfim, Gana, Papua Nova Guiné, Togo e Filipinas

Passíveis de interrupção da transmissão
Hanseníase
Gerada pelo bacilo Mycobacterium leprae, atinge os nervos periféricos, a pele e o trato respiratório. Se não for tratada, causa deformidades; 80% dos novos casos estão na Índia, Brasil e Indonésia

Oncocercose
Provocada pelo parasita Onchocerca volvulus e transmitida por uma mosca, é a segunda maior causa de cegueira infecciosa no mundo. Atinge 20 milhões de pessoas, principalmente na África mas também em regiões tropicais da América

Tripanossomíase africana humana
Conhecida como doença do sono, é causada por dois tipos de tripanossomas e transmitida pela mosca tsé-tsé. Compromete o sistema nervoso e pode ser letal. Presente no sudeste e centro da África, teve cerca de mil casos em 2019

Passíveis de eliminação como problema de saúde pública
Leishmaniose
Causada por protozoários, provoca lesões em órgãos internos (visceral) ou na pele (cutânea). É transmitida por insetos. Cães contaminados são reservatório de protozoários. Maioria dos casos está na Índia, Brasil e África

Doença de Chagas
É transmitida por fezes de barbeiros contaminados com o Trypanosoma cruzi. Sem tratamento, pode levar à insuficiência cardíaca. Incidência maior é em países da América Latina. Matou 10 mil em 2017

Filariose linfática
Transmitidas por mosquitos, suas larvas migram para as vias linfáticas. Provoca inchaço nas pernas e também pode comprometer a saúde mental. Há 50 milhões de infectados, principalmente no centro da África e sul da Ásia

Esquistossomose
Infecção gerada por vermes da família Schistosoma, é transmitida pelo contato com água doce contaminada, provocando sintomas como febre e diarreia. Maioria dos casos está na África. Ainda é presente no Brasil

Raiva humana
Zoonose que ocasiona encefalite viral, é transmitida por saliva de morcegos e mordida de cães infectados. Está presente em 89 países, na maioria da África e Ásia. A doença foi responsável por 59 mil mortes no mundo em 2015

Tracoma
Conjuntivite motivada pela bactéria Chlamydia trachomatis, é a maior causa de cegueira evitável do mundo. Está presente na África, América do Sul e Índia. Em 2019, 2,5 milhões de vítimas da doença necessitavam de cirurgia

Helmintíases
Doenças causadas por parasitas intestinais presentes no solo, como a ascaridíase, a ancilostomíase e a estrongiloidíase. Maior incidência está na Índia, centro da África e América Latina. Causaram 6,3 mil mortes em 2016

Passíveis de controle
Úlcera de buruli
Causada por Mycobacterium ulcerans, produz lesões ulcerativas na pele, pode atingir os ossos e gerar incapacitação. Houve 2,2 mil casos em 2019, concentrados no centro da África, América Latina e oeste da Ásia

Dengue
Ocasionada por quatro tipos de flavivírus e transmitida por mosquito, produz febre alta e dores. Pode desencadear febre hemorrágica. Em 2017, houve 100 milhões de casos e 40 mil mortes na América Latina, África e sul da Ásia

Equinococose
Infecção originada por larvas, produz desconforto abdominal e cistos no fígado e nos pulmões. Concentra-se no norte da África, sul da Europa, América do Sul. Houve 1 milhão de casos e 19 mil mortes em 2016

Trematodíases
Doenças geradas por parasitas trematódeos, são disseminadas por alimentos contaminados. Com cerca de 200 mil casos por ano e 7 mil mortes, são endêmicas em 92 países em todos os continentes

Micetoma e cromoblastomicose
Infecções na pele, tecido muscular e ossos provocadas por fungos ou bactérias. Se não forem tratadas, podem gerar deformidades e deficiência física. Casos se concentram em regiões tropicais da América Latina e África

Sarna
A escabiose e parasitoses do gênero são motivadas por ácaros que penetram a pele, gerando coceira e irrupções. Duzentos milhões de pessoas são infectadas anualmente, com destaque para Austrália, Brasil e centro da África

Envenenamento por picada de cobra
Reação a toxinas introduzidas no organismo após picada de cobras venenosas, é mais prevalente em áreas rurais da América do Sul, África, China e Índia. A cada ano, 2,7 milhões de pessoas são picadas e 8 mil morrem

Teníase e cisticercose
Causadas pela ingestão de carne com ovos do parasita tênia. A teníase é uma infecção intestinal e a cisticercose pode atingir o sistema nervoso; 28 mil morreram em 2015, principalmente na África, América Latina e Ásia

Projetos
1. Escola São Paulo de Ciência Avançada em Tripanossomatídeos Patogênicos: da biologia à patogênese e novas terapias (nº 19/17546-2); Modalidade Organização de Reunião Científica – Escola São Paulo de Ciência Avançada; Pesquisadora responsável Angela Kaysel Cruz (FMRP-USP); Investimento R$ 547.889,14
2. Descoberta de fármacos baseada na estrutura do receptor e do ligante para a Leishmaniose e a Doença de Chagas a partir de produtos naturais bioativos (nº 18/14268-9); Modalidade Projeto Temático; Acordo MRC-UKRI, Newton Fund; Pesquisador responsável Adriano Defini Andricopulo (IFSC-USP); Investimento R$ 1.170.839,28
3. Centro Reino-Unido-Brasil para o Estudo da Leishmaniose (JCPiL) (nº 18/14398-0); Modalidade Projeto Temático; Acordo MRC-UKRI, Newton Fund; Pesquisadora responsável Angela Kaysel Cruz (FMRP-USP); Investimento R$ 2.114.545,47
4. Uma rede para uma biologia integrativa em doenças negligenciadas: conectando a epigenética, o metabolismo e a biologia celular em tripanossomatídeos patogênicos (nº 18/14432-3); Modalidade Projeto Temático; Acordo MRC-UKRI, Newton Fund; Pesquisador responsável Ariel Mariano Silber (ICB-USP); Investimento R$ 3.046.521,44
5. Consórcio FAPESP/MMV/DNDI/UNICAMP/USP para descobrir novos medicamentos para o tratamento de doenças parasitárias tropicais (nº 15/50655-9); Modalidade Parceria para Inovação Tecnológica – PITE;  Pesquisador responsável Luiz Carlos Dias (IQ-Unicamp); Investimento R$ 2.950.388,31
6. CIBFar – Centro de Inovação em Biodiversidade e Fármacos (nº 13/07600-3); Modalidade Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid); Pesquisador responsável Glaucius Oliva (IFSC-USP); Investimento R$ 32.164.849,87

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