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resenha

Uma cientista humanista e visionária

Niède Guidon: Uma arqueóloga no sertão | Adriana Abujamra | Rosa dos Tempos | 256 páginas | R$ 54,90

Niède Guidon: Uma arqueóloga no sertão integra a nova coleção Brasileiras coordenada por Joselia Aguiar, que, em bom tempo, traz as histórias de mulheres pioneiras, cada qual em sua área, como Lélia Gonzales e Conceição Evaristo. A história de como Niède Guidon ao longo de décadas defendeu com unhas e dentes um patrimônio arqueológico que hoje pertence à humanidade talvez seja já conhecida de toda uma geração que acompanhou pelos jornais sua saga para implantar o Parque Nacional da Serra da Capivara no Piauí. Hoje, o parque é o principal e um dos raros destinos turísticos no Brasil onde o atrativo são sítios arqueológicos e, no caso, suas pinturas rupestres milenares. Contudo, a trajetória que a biografia percorre vai além: fala de maneira sensível e bem-humorada de uma mulher aguerrida e intransigente, mas também humanista e visionária, que se dedicou não apenas à pesquisa e criação de um parque arqueológico, mas à preservação do ambiente de maneira geral, a melhorar a vida de comunidades da Caatinga nordestina, trazendo emprego, saúde e educação e ainda empoderando mulheres marcadas por uma cultura de violência de gênero.

A saga de Niède é um exemplo de como a ciência, no caso a arqueologia, muitas vezes vista como o estudo de um passado tão distante no tempo que pouco importa para o presente, pode fazer uma diferença efetiva na vida cotidiana das pessoas. Por isso a biógrafa escolheu falar não apenas da arqueóloga, mas também das pessoas com quem ela foi formando parcerias duradouras ou os inimigos que ela foi enfrentando. Fala de Nivaldo e Carmelita, ele, mateiro, seu primeiro guia nas prospecções de sítios; ela cuidava da comida e da saúde da equipe com suas mandingas e plantas medicinais locais. É também sobre dona Nenê, da comunidade do Zabelê, a qual teve seus moradores retirados da área do parque na época em que se pensava preservação ambiental e populações tradicionais como antagônicas, e depois contou com o apoio decisivo da pesquisadora ao longo do processo de regularização fundiária e indenização; ou sobre seu Nôca, antigo líder dos maniçobeiros que trabalhou como jardineiro, vigia e guia. O livro dá voz à dona Elenita e a Paula, moradoras do Sítio do Mocó, no sopé do parque, sobre os benefícios trazidos pela água das cisternas pelas quais Niède lutou, e fala de tantos outros cujas vidas foram afetadas pela arqueóloga.

Assim como muitos pesquisadores e intelectuais brasileiros, a arqueóloga deixou o país na ditadura. De nacionalidade franco-brasileira, doutorou-se em arqueologia pré-histórica pela Sorbonne (1975), orientada por André Leroi-Gourhan (1911-1986), um dos mais influentes antropólogos do século XX. Enquanto professora da École des Hautes Études en Sciences Sociales, conseguiu apoio financeiro do governo francês através de uma política diplomática que visa expandir sua influência pelo mundo por meio da arqueologia. São as famosas “missões” (diplomáticas) arqueológicas, que só podem ser coordenadas por pesquisadores franceses. Se a arqueologia é uma ciência que nasceu do colonialismo, Niède inverteu a flecha da geopolítica do imperialismo científico. Fez da “missão” do Piauí sua missão de vida, indo muito além da pesquisa arqueológica, com saldos positivos para toda uma região do Brasil. Ao contrário de outras missões arqueológicas francesas, nas quais os pesquisadores frequentam o país alguns meses por ano, Niède enraizou um longo e amplo programa de pesquisa criando a Fundação do Homem Americano (FUNDHAM), preservou os sítios usando a legislação vigente e aproveitou o apoio francês para conseguir outros recursos financeiros.

Por fim, é com primor que a polêmica sobre a antiguidade dos achados arqueológicos do Piauí é apresentada ao leitor, não só contextualizando e atualizando o debate sobre a antiguidade da ocupação humana nas Américas de forma correta e didática, mas mostrando a cruel dinâmica dos embates geopolíticos que permeiam a ciência. Niède colocou as datas antigas do território brasileiro no mapa, enfrentou a hegemonia norte-americana e o “fogo amigo” dos pesquisadores brasileiros, para hoje ver se multiplicarem datas igualmente antigas em outros sítios abaixo do Rio Grande e ser reconhecida como uma cientista muito à frente de seu tempo.

Cristiana Barreto é arqueóloga do Laboratório de Arqueologia dos Trópicos do MAE-USP e do Programa de Pós-graduação em Diversidade Sociocultural do Museu Paraense Emílio Goeldi.

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