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Resenha

Uma voluntária da pátria

Jovita Alves Feitosa: Voluntária da pátria, voluntária da morte | José Murilo de Carvalho | Chão Editora | 152 páginas | R$ 44,00

Poucos meses antes de completarem-se 150 anos do término da Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai (1864-1870), José Murilo de Carvalho trouxe a lume uma face menos conhecida do conflito: o lugar das mulheres. A publicação faz parte de iniciativa promissora da Chão Editora de dar voz aos documentos por seleção e recorte de um mediador-pesquisador que recompõe o momento histórico. O resultado, na obra de Carvalho, é a reconstituição da polissemia que caracterizou Jovita Alves Feitosa, uma cearense parda e pobre nascida em 1848, migrada para o Piauí e ainda cedo órfã, que se alistou no Exército com 17 anos, em 1865, e se suicidou pouco depois, em 1867.

O esboço biográfico de Jovita é narrado com larga ênfase no período em que transitou pelos quartéis. É o que autorizam as poucas fontes sobre a personagem. Mediando ofícios, poemas, retratos, interrogatórios e atestados, Carvalho descortina uma sertaneja que, indignada com as crueldades cometidas pelos paraguaios contra brasileiras em Mato Grosso, cortou os cabelos, escondeu os peitos em trajes masculinos e se apresentou à caserna em Teresina. De lá, após a inclusão no 2º Corpo de Voluntários, Jovita cruzou as principais capitais nordestinas e alcançou o Rio de Janeiro, para tornar-se um mito em 37 dias.

Os mais entusiasmados chamaram-na de Joana d’Arc brasileira e organizaram saraus e celebrações teatrais em consideração à jovem cearense. Os mais céticos não vislumbraram senão oportunidade. Movida pelo emprego, pelo pão e pela terra que o governo havia prometido, em janeiro de 1865, a todos os que se alistassem, Jovita, na voz dos conservadores, emergia como presa fácil para a propaganda militar. Buscaram sufocar o mito em constituição, e Jovita foi classificada como prostituta.

Não menos mítica, porque não se realizou, foi sua incorporação às frentes de combate. A principal expectativa dos 37 dias de glória foi frustrada numa canetada do ministro da Guerra, que recusou seu embarque. A partir daqui, desfazendo a ficção em benefício da história, Carvalho revela a materialidade social que, por trás da euforia dos primeiros meses de combate, permeou a rápida posteridade de Jovita. Mulher numa sociedade patriarcal, a quase heroína poderia no máximo, conforme o despacho do Exército, servir aos homens nos campos de batalha. Como enfermeira, no melhor dos casos.

Jovita negou a oferta por considerá-la aquém de suas possibilidades. Retornou a Teresina, onde redescobriu a rejeição do pai e do tio. Restou-lhe procurar amparo no anonimato. Usando os recursos daqueles que pouco antes haviam sido mecenas, Jovita voltou ao Rio em março de 1866. Agora pelo silêncio das fontes primárias, a aura misteriosa da cearense pareceu reabilitar-se. Os jornais noticiaram seu regresso à Corte, mas com partida de Montevidéu. Presumiu-se que se aproximara do teatro de operações para entreter-se com um amante piauiense. Se não isso, fora encontrar o irmão, que combatia o Paraguai. Naquela altura o recrutamento tornou-se cada vez mais forçado, incidindo nas camadas populares, das quais ela e seus próximos inegavelmente faziam parte.

A Jovita da capital tornou-se outra, cedeu lugar a “uma elegante do mundo equívoco”. Transformou-se, por profecia ou condição de classe, naquilo que os céticos, antes, quiseram dela. Amargurada e diante de amantes que a buscavam pela mística de voluntária, lamentava não ter disposto de educação para fugir do abismo no qual se encontrava. Teve um fim triste. Apaixonou-se pelo engenheiro galês William Noot, que deixou sem muitos remorsos uma nota em inglês quando voltou à Europa. A voluntária da morte tirou a própria vida. “Só dela e de Deus”, disse em nota de despedida, “eram conhecidas” as razões de seu suicídio.

Distinguindo fato e mito, Carvalho cumpre importante papel ao reabilitar, por meio de esboço biográfico, o lugar do gênero na história militar. A guerra contra o Paraguai não foi exceção numa época em que as mulheres tiveram função expressiva nos conflitos armados. Ratifica-o a Guerra da Crimeia (1853-1856) e a Guerra de Secessão (1861-1865), que, com a guerra no Prata, foram guerras totais. Mobilizaram populações inteiras e recursos orçamentários somente recuperados depois de anos ou décadas.

Rodrigo Goyena Soares é historiador e autor de Conde d’Eu: Diário do comandante em chefe das tropas brasileiras em operação na República do Paraguai (Paz & Terra, 2017)

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