Podcast: Orangel Aguilera
Os autores do trabalho examinaram mais de 6 mil fragmentos ósseos, dentes e otólitos (cálculos calcários formados no ouvido interno) de peixes encontrados em 13 sambaquis da costa do Rio de Janeiro. Os sítios se localizam entre as baías da Ilha Grande, em Angra dos Reis, e da Ilha do Cabo Frio, em Arraial do Cabo, com idade de 5.600 a 700 anos (ver mapa). A análise desse material, que faz parte do acervo arqueológico do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (MN-UFRJ), levou-os a ter uma ideia aproximada da quantidade e do tamanho dos exemplares capturados ao longo de alguns milhares de anos. Também serviu de base para concluírem que a captura de peixes era uma atividade muito desenvolvida e diversificada antes da chegada dos europeus ao Brasil. No acervo, foram identificadas 97 espécies de peixe. “Esse número representa 37% de todas as espécies de peixe registradas até hoje naquele trecho do litoral fluminense”, comenta o paleontólogo marinho Orangel Aguilera, da Universidade Federal Fluminense (UFF), de Niterói, coordenador do estudo, publicado em 29 de julho no periódico Plos One. “Os sambaquieiros realmente dominavam a arte da pesca.”
As características do registro arqueológico de algumas espécies marinhas comumente encontradas em sambaquis indicam que certos tipos de peixe teriam sido capturados em excesso ou na forma de exemplares muito jovens, pescados, às vezes, em áreas que funcionavam como berçários desses animais. Essa prática teria inaugurado o processo de vulnerabilidade ou até de diminuição das populações costeiras de alguns peixes. Segundo Aguilera, os povos concheiros, também denominados sambaquieiros, pescavam em distintos ambientes marinhos, rasos e mais profundos, desde praias arenosas coladas à costa até o leito rochoso do oceano repleto de peixes. Apesar de haver registros arqueológicos de que o homem pesca há pelo menos 40 mil anos, existem poucos estudos sobre eventuais impactos ambientais da captura de peixes na pré-história. Um raro trabalho, feito em 2010 pelo Centro de Investigaciones Pesqueras de Cuba, sugere até que os ameríndios não disporiam da tecnologia necessária para explorar a maior parte dos estoques de seres marinhos do Caribe — conclusão agora refutada pelo pesquisador da UFF.
Os vestígios marinhos recuperados nos sambaquis fluminenses atestam que a pesca era uma atividade dominante naquela região. A espécie com maior número de registros, e provavelmente a mais intensamente capturada pelos pescadores-coletores do litoral fluminense, é a corvina (Micropogonias furnieri). Foram estudados 5.532 otólitos da espécie, que habita fundos lodosos e arenosos de águas costeiras ou de estuários e pode chegar a 70 centímetros (cm) de comprimento. “A corvina é atualmente a segunda espécie mais pescada no litoral brasileiro, atrás apenas da sardinha”, informa o oceanógrafo Acácio Tomás, pesquisador do Instituto de Pesca de Santos, coautor do estudo. “Os povos ancestrais também devem ter pescado sardinhas, mas infelizmente não temos registros da espécie no material coletado nos sambaquis fluminenses”, explica Tomás. Onze dos 13 sítios arqueológicos estudados apresentavam vestígios de M. furnieri. A ubiquidade da espécie nos sambaquis possibilitou estimar o impacto causado pela pesca nos estoques de corvina nos últimos 5 mil anos. Segundo os cálculos dos pesquisadores, houve uma redução de 28% no tamanho médio das corvinas desde aquela época até hoje, em razão da exploração continuada da espécie.
A presença marcante de vestígios de tubarões adultos e de filhotes, sobretudo de algumas espécies de ocorrência oceânica (longe da costa), também chamou a atenção de Aguilera e seus colaboradores. Eles examinaram 660 vértebras fossilizadas, além de dentes e ossos do crânio, de mais de 20 espécies diferentes desse peixe, como o tubarão-branco (Carcharodon carcharias), a mangona (Carcharias taurus), o tubarão-tigre (Galeocerdo cuvier) e o tubarão-martelo (Sphyrna lewini). A abundância de registros é interpretada pelos autores do trabalho como um indício de que as populações dos sambaquis tinham uma grande capacidade de pesca.
De acordo com estimativas dos pesquisadores, os ossos estudados pertenceram a exemplares cujo comprimento variava de 30 cm, no caso de filhotes, a 2,5 m, entre os espécimes maduros. Os tubarões capturados pelos sambaquieiros eram quase sempre menores do que o tamanho médio estimado atualmente para essas mesmas espécies, consideradas hoje vulneráveis ou em risco de extinção. Eles provavelmente são fruto de uma pesca excessiva em áreas de berçário, importante para a manutenção da capacidade reprodutiva dos animais. Entre os resquícios de arraias presentes nos sambaquis, os mais abundantes foram da arraia-pintada (Aetobatus narinari).
Canoas e redes de pesca?
A localização dos sítios arqueológicos é um indicador de que os ameríndios não se instalaram por acaso nessas latitudes. Os 13 sambaquis se espalham por uma faixa de cerca de 270 quilômetros do litoral fluminense conhecida por ser uma área de ressurgência, em que águas mais profundas, ricas em nutrientes, afloram. Nos pontos do litoral onde ocorre esse fenômeno oceanográfico tende a haver maiores concentrações de peixes. “Os sambaquieiros eram grandes coletores de mariscos, mas esse alimento não era suficiente para alimentá-los. Eram os peixes que basicamente os sustentavam”, diz a arqueóloga Tania Andrade Lima, do MN-UFRJ, outra coautora do estudo. “Eles conheciam bem o ambiente marinho e pescavam tanto na costa como perto do alto-mar.” Além de serem a base da dieta dos sambaquieiros, os seres marinhos capturados também podiam ser usados em rituais funerários, como as conchas enterradas com os mortos, ou na confecção de objetos decorativos. Dentes de tubarão eram perfurados e usados como peças de colares, um tipo de adorno comumente encontrado em sambaquis.
Embora todos os sambaquis analisados no estudo se situem sob a influência de uma zona de ressurgência, os sítios podem ser agrupados de acordo com algumas particularidades geográficas. O sambaqui de Acaiá se situa na Ilha Grande. Os sítios do Algodão, Major, Bigode, Caieira e Peri ficam em ilhotas ou em áreas costeiras rochosas da baía do Ribeira, em Angra dos Reis. Camboinhas se encontra em uma planície arenosa costeira dominada por lagoas na região oceânica de Niterói. Os sambaquis de Saquarema, Beirada, Manitiba e Ponte do Girau ocupam uma parte da planície arenosa, também pontuada por lagoas costeiras, da região de Saquarema. Por fim, a Ilha do Cabo Frio, no município de Arraial do Cabo, abriga dois sítios: Usiminas, em um assentamento rochoso, e o homônimo Ilha do Cabo Frio, em área de dunas.
Para explorar essa diversidade de ambientes marinhos, os pesquisadores sustentam a hipótese de que os povos do passado desenvolveram estratégias e ferramentas de pesca. A captura de seres marinhos se beneficiava provavelmente do emprego de linhas e redes de espera (emalhe) feitas de fibras vegetais, anzóis e arpões confeccionados com ossos de animais. A busca por espécies que viviam longe da costa ou por ilhas estratégicas para a pesca em mar aberto requeria o emprego de alguma forma de embarcação. “Não temos registros arqueológicos de canoas ou redes, que eram feitas de madeira e fibras vegetais que não se preservam com o tempo”, explica Aguilera, que contou com o apoio de duas alunas da pós-graduação da UFF na produção do artigo, Mariana Lopes e Thayse Bertucci. No entanto, há evidências indiretas de que os ameríndios eram bons de pesca: projéteis feitos de ossos, encontrados em sambaquis, parecem ter sido usados para dar o golpe final em espécimes de grande porte; artefatos de pedra, também presentes em alguns sítios, podem ter sido empregados na confecção de canoas.
Estudioso dos sambaquis da costa brasileira, em especial os de Santa Catarina, o arqueólogo Paulo DeBlasis, do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP), elogia o trabalho de Aguilera e seus colegas. “O artigo adota uma abordagem muito interessante sobre a relação dos sambaquieiros com a pesca marinha”, afirma. Segundo o arqueólogo do MAE, ainda hoje alguns pesquisadores mais tradicionalistas acreditam que, devido à abundância de conchas nos sambaquis, a base da dieta dos habitantes pré-históricos do litoral eram frutos do mar. “Em Santa Catarina, também há sítios arqueológicos em ilhas. Há tempos, temos a percepção de que eles eram grandes pescadores, além de caçar mamíferos marinhos e terrestres.”
Não se sabe até que ponto plantas e cultivos agrícolas também fizeram parte do cardápio dos ameríndios da beira-mar. Cinco anos atrás, a bioantropóloga Sabine Eggers, do Instituto de Biociências (IB) da USP, reconstituiu a dieta de Luzio, um ameríndio que habitou há aproximadamente 10 mil anos em um sambaqui de rio do Vale do Ribeira (SP), distante cerca de 100 quilômetros da costa atual. O resultado do estudo foi surpreendente: Luzio comia carne de caça, tubérculos, frutas e quase nenhum peixe ou crustáceo, seja de água doce ou marinha. Mas, a julgar pelo novo trabalho feito com material dos sambaquis do Rio de Janeiro, os povos antigos da costa fluminense gostavam mesmo era de um bom pescado.
Artigo científico
LOPES, M. S. et al. The path towards endangered species: Prehistoric fisheries in Southeastern Brazil. Plos One. 29 jun. 2016.