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Covid-19

A aposta da ButanVac

Nova candidata a vacina usa como antígeno versão mais estável da proteína spike

Ovos usados na fabricação da vacina da gripe do Instituto Butantan que podem ser utilizados para produzir a ButanVac

Luis Blanco / MCW

Uma segunda geração modificada da proteína spike do coronavírus Sars-CoV-2, causador da Covid-19, faz parte de uma nova candidata a vacina de baixo custo contra a doença que recentemente entrou em testes clínicos, em seres humanos, nos Estados Unidos, Vietnã e Tailândia. Denominado genericamente de NDV-HXP-S, esse imunizante foi concebido por uma cooperação internacional para ser produzido nas instalações de países em desenvolvimento, atualmente empregadas para fabricar a vacina da gripe em ovos embrionados, e armazenado nos mesmos sistemas convencionais de refrigeração usados para manter a maioria das vacinas de outras doenças.

Proteína de superfície do novo coronavírus, a spike é a responsável por se ligar a receptores na superfície de células humanas e desencadear a infecção pelo Sars-CoV-2. Por isso, tende a ser empregada nas vacinas contra Covid-19 como antígeno, ou seja, o elemento reconhecido como externo pelo sistema imunológico que serve de alvo para a produção de anticorpos especificamente voltados para combater um patógeno. A HexaPro, nome da segunda versão modificada da spike, é uma forma aprimorada da representação tridimensional dessa proteína. Segundo seus criadores, ela é mais estável e fácil de conservar do que sua versão anterior, a 2P.

No Brasil, a única vacina em desenvolvimento com a HexaPro é chamada de ButanVac e será produzida pelo Instituto Butantan, de São Paulo. No final de abril, o Butantan iniciou a fabricação de um lote de 1 milhão de doses do produto. Até 15 de junho, o instituto espera produzir 18 milhões de doses da ButanVac, que aguarda autorização da Anvisa para o início dos testes clínicos. A vacina contém uma variante modificada do vírus da doença aviária de Newcastle, que é praticamente inócua em seres humanos, e foi criada pela equipe de pesquisadores de Peter Palese, da Escola Icahn de Medicina da rede de hospitais Monte Sinai, de Nova York, para produzir a HexaPro (ver Pesquisa FAPESP nº 302).

Com exceção das vacinas que usam o coronavírus inteiro (inativado ou atenuado) como antígeno em suas formulações, como a CoronaVac utilizada no Brasil e produzida pelo Instituto Butantan, os demais imunizantes utilizam apenas a proteína spike como forma de estimular o sistema imunológico. As vacinas da Pfizer/BioNTech, Moderna e Janssen, as três aprovadas nos Estados Unidos, usam a 2P como antígeno, assim como o candidato a imunizante da empresa norte-americana Novavax. A história da 2P e da HexaPro começou no mesmo lugar.

Universidade do Texas em Austin Estrutura da proteína spike com destaque para a localização das modificações (esferas vermelhas e azuis), que a tornam mais estávelUniversidade do Texas em Austin

Em fevereiro do ano passado, ainda antes de a pandemia de Covid-19 ter chegado ao Ocidente, o biólogo estrutural norte-americano Jason McLellan, da Universidade do Texas, em Austin, descreveu, em artigo na revista Science, a primeira representação tridimensional estabilizada da spike do Sars-CoV-2, que viria a ser denominada 2P. “Essa proteína é muito instável antes de o vírus penetrar nas células humanas”, explica McLellan, em entrevista a Pesquisa FAPESP. “Temos de torná-la mais estável, por meio de modificações moleculares, para podermos usá-la como antígeno em uma vacina.”

A 2P apresenta duas dessas modificações (daí seu nome). Trata-se da adição de duas prolinas, um tipo de aminoácido que torna mais rígida a normalmente irrequieta estrutura tridimensional que a spike exibe antes de penetrar nas células de seu hospedeiro. As proteínas podem ser formadas por 20 diferentes aminoácidos. Tecidos conectivos, mais rígidos, como o colágeno, são ricos em prolinas. Os biólogos gostam de comparar o uso das prolinas para estabilizar proteínas ao emprego de grampos moleculares que tentam manter o composto em determinada conformação. No caso da HexaPro, cuja estrutura em 3D foi divulgada em julho de 2020 em outro artigo na Science, foram introduzidas seis prolinas. Com meia dúzia de grampos moleculares, essa versão da spike é mais estável, o que pode ser útil para gerar uma melhor resposta imunológica, além de permitir a conservação das vacinas que a empregam como antígeno a temperaturas entre 2 e 8 graus Celsius (ºC). “Conseguimos produzir rapidamente versões estabilizadas da spike do Sars-CoV-2 porque eu e meus colegas já trabalhávamos, antes da pandemia, com a geração de estruturas em 3D dessa proteína em outros coronavírus, como Mers [Síndrome Respiratória do Oriente Médio] e HKU1”, explica McLellan.

A união entre o trabalho da equipe de McLellan com a proteína spike do Sars-CoV-2 e os esforços dos colaboradores de Peter Palese, do Monte Sinai, na produção de uma versão modificada e de fácil cultivo do vírus de Newcastle, levou ao desenvolvimento da candidata a vacina NDV-HXP-S. A parceria foi fomentada pela Path, uma organização não governamental sediada em Seattle, nos Estados Unidos, que trabalha em prol do emprego de soluções inovadoras de saúde em países em desenvolvimento. Em razão da gravidade da pandemia, tanto o grupo de Austin como o de Nova York, que têm patentes sobre o desenvolvimento do imunizante, concordaram em fornecer licenças do produto sem a cobrança de royalties para um grupo de países de renda média e baixa, Brasil inclusive.

Segundo a assessoria de imprensa da Path, as versões da NDV-HXP-S que estão sendo fabricadas para testes em diferentes países são comparáveis. Elas usam os mesmos materiais de partida (banco de sementes de vírus), que foram propagados, purificados e inativados por métodos semelhantes e formulados em vacinas com o mesmo ensaio de potência. “Portanto, os dados de testes clínicos realizados com qualquer uma dessas três vacinas [referência às formulações de Tailândia, Vietnã e Brasil] devem indicar os resultados esperados para as outras duas vacinas”, afirma a assessoria, em e-mail a Pesquisa FAPESP.

“Altos e baixos fazem parte do desenvolvimento de vacinas”, observa o biólogo Ricardo Oliveira, diretor de Produção da Fundação Butantan (ver reportagem “Caminho sinuoso” no site de Pesquisa FAPESP). Mas, segundo Oliveira, “não deve haver grandes dificuldades em ampliar a escala de produção” da ButanVac caso seus testes clínicos sejam bem-sucedidos. Afinal, o imunizante contra a Covid-19 emprega uma tecnologia conhecida pelo Butantan e usada para produzir a vacina anual contra gripe disponibilizada na rede pública de saúde do Brasil.

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