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Obituário

Aldo Craievich foi um dos pioneiros no uso da luz síncrotron no Brasil

O físico argentino teve papel relevante na criação da comunidade de usuários dessa fonte luminosa no país e foi precursor das pesquisas em vidro

Acervo pessoal do Prof. Daniel UgarteO pesquisador foi o primeiro diretor científico do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), em Campinas, entre 1987 e 1997Acervo pessoal do Prof. Daniel Ugarte

A importância de um laboratório de pesquisa também se mede pela amplitude de sua comunidade de usuários. O Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), em Campinas, no interior paulista, responsável pela operação do maior e mais complexo projeto científico do país, o Sirius, reúne uma comunidade de mais de 6 mil usuários regulares. O Sirius é sucessor da primeira fonte de luz síncrotron do hemisfério Sul, o UVX, que se manteve ativa entre 1997 e 2019 e recebia por volta de 1,7 mil pesquisadores por ano. O início da formação dessa comunidade de pesquisadores em luz síncrotron, que reúne cientistas de toda a América Latina, está diretamente relacionado ao trabalho e à capacidade de articulação internacional do físico argentino Aldo Felix Craievich, morto em 24 de abril, aos 84 anos, em São Paulo.

“Em meados dos anos 1980, quando se iniciou o projeto do LNLS, era possível contar nos dedos de uma mão a quantidade de pessoas que conheciam luz síncrotron no Brasil. Craievich era uma delas”, testemunha a física Liu Lin, chefe da Divisão de Aceleradores do LNLS, unidade pertencente ao Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM). “Foi ele quem difundiu o uso da luz síncrotron no país e é um dos protagonistas da criação do laboratório.”

Natural da província argentina de Santa Fé, Craievich graduou-se e fez doutorado em física no Instituto Balseiro, em Bariloche, na Argentina, tendo desenvolvido seu trabalho de pesquisa na França, no Laboratoire de Physique des Solides da Universidade Paris-Sud, sob supervisão de André Guinier (1911-2000), um dos expoentes da cristalografia e das técnicas de caracterização por raios X. A cristalografia, área à qual Craievich dedicou sua carreira, é o estudo da estrutura dos materiais em nível atômico.

Em 1973, ele se mudou para o Brasil, onde assumiu um cargo de docente e pesquisador no então Instituto de Física e Química de São Carlos (IFQSC, dividido em dois institutos em 1994) da Universidade de São Paulo (USP). Ele veio a convite da física e química Yvonne Mascarenhas, uma das pioneiras da cristalografia no Brasil. “Conheci Craievich em uma reunião da Sociedade Ibero-americana de Cristalografia realizada no Chile em fins de 1971. Fiquei encantada com a qualidade de seu trabalho. Terminado o congresso, ele me ofereceu carona para retornar a Santiago em seu carro. Fizemos uma viagem adorável, de cerca de seis horas, durante as quais tive oportunidade de aprofundar a excelente impressão que já havia tido durante o evento. Reforcei o convite para que aceitasse trabalhar em São Carlos”, recorda-se Mascarenhas.

Em 1980, Craievich mudou-se para o Rio de Janeiro, onde trabalhou como pesquisador do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF). No ano seguinte, voltou para a França para um estágio de pós-doutorado em luz síncrotron no Laboratoire pour l’Utilisation du Rayonnement Electromagnétique (Lure), instalação em Orsay.

A luz síncrotron é uma radiação emitida por elétrons acelerados quase à velocidade da luz. É utilizada para a pesquisa da estrutura molecular e atômica dos mais diversos materiais (ver Pesquisa FAPESP nº 269). “É uma técnica que ganhou força nos anos 1970. Craievich estava em um dos principais centros de pesquisa que utilizava a técnica na época, na França, e foi um dos primeiros cientistas em atividade no Brasil a ter um contato prático, não apenas teórico, com a luz síncrotron”, conta o físico Glaucius Oliva, professor do IFSC-USP e coordenador do Centro de Pesquisa e Inovação em Biodiversidade e Fármacos, um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) da FAPESP.

De volta ao Brasil no começo dos anos 1980, o pesquisador argentino foi um dos idealizadores do LNLS e participou ativamente de sua implementação. Em colaboração com o físico Roberto Lobo, então diretor do CBPF, ele redigiu a “Proposta preliminar de estudo de viabilidade para a implantação de um Laboratório Nacional de Radiação Síncrotron”, documento aprovado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) em 1983.

Craievich tornou-se o primeiro diretor científico do LNLS, entre 1987 e 1997. Coordenou a implementação do laboratório em parceria com o engenheiro e físico Ricardo Rodrigues (1951-2020), primeiro diretor-técnico, e o físico Cylon Gonçalves da Silva, primeiro diretor-geral do LNLS.

Coube a Craievich fomentar entre a comunidade científica brasileira e latino-americana o uso da luz síncrotron para a pesquisa da estrutura molecular e atômica de materiais e estimular a formação de profissionais capazes de se tornarem os futuros usuários do laboratório. Para isso, elaborou em 1984 uma chamada para bolsas do CNPq de iniciação científica, mestrado, doutorado, pós-doutorado e pesquisa, em temas relacionados à construção da fonte e linhas de luz e suas aplicações.

“Ele era um entusiasta da pesquisa científica com luz síncrotron e estimulou muitos profissionais a conhecer e utilizar a técnica. Como não havia especialistas no país, organizou workshops com palestrantes estrangeiros, promoveu cursos e incentivou estudantes a se formarem fora do país”, recorda o físico Helio Tolentino, que foi colega de Lin na primeira turma do projeto de bolsistas do CNPq dentro do projeto síncrotron e é o atual chefe da Divisão de Matéria Heterogênea e Hierárquica do LNLS.

Craievich concebeu e promoveu as primeiras Reuniões Anuais de Usuários (RAU) do LNLS, com o objetivo de aperfeiçoar as técnicas de luz síncrotron e debater resultados e problemas do laboratório. A primeira reunião foi realizada em 1987, uma década antes de o laboratório entrar efetivamente em atividade. Ainda hoje esses encontros são realizados. “A comunidade de usuários é o que há de mais precioso no LNLS e o que dá vida ao laboratório. Não adianta ter um superequipamento de pesquisa, sem ter quem o utilize e saiba aproveitar os recursos disponíveis”, avalia Lin.

O físico liderou o planejamento e a implementação das primeiras linhas de luz do LNLS, ou seja, as estações de pesquisa que contam com focos específicos para seus objetos de estudo. Em 1997, transferiu-se para o Instituto de Física (IF) da USP, em São Paulo, no qual foi professor e ocupou a chefia do Departamento de Física Aplicada de 2002 a 2006. Mas não deixou de voltar regularmente ao LNLS para fazer pesquisas e visitar amigos. “Era uma pessoa muito séria no trabalho e muito agradável e engraçada pessoalmente”, descreve Oliva.

Pioneiro na pesquisa em vidros
Craievich também se dedicou às pesquisas em física da matéria condensada e nanomateriais, com ênfase em estudos de estruturas e transformações estruturais de sólidos e métodos cristalográficos. Publicou mais de 230 artigos em revistas científicas, com contribuições em estudos de diferentes materiais. Foi um dos pioneiros da pesquisa em vidros no Brasil.

Edgar Dutra Zanotto, fundador e atual coordenador do Laboratório de Materiais Vítreos (LaMaV) do Departamento de Engenharia de Materiais (DEMa) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), o primeiro centro de pesquisa em vidro do Brasil, atribui ao argentino influência decisiva em sua carreira.

Em 1972, Zanotto ingressou como aluno de graduação da terceira turma do curso de engenharia de materiais da UFSCar, o primeiro com essa especialização na América Latina. “Praticamente não existiam professores especializados no Brasil. Tínhamos aulas com docentes de física e química”, lembra o engenheiro. Um dos primeiros professores da disciplina de ciência dos materiais foi Craievich. “Ele era da USP de São Carlos, mas foi ‘emprestado’ à UFSCar para ministrar essa disciplina.”

A falta de professores especializados era tão grande que Zanotto, recém-formado em 1976 e ainda sem mestrado, foi contratado como professor auxiliar de ensino na UFSCar. No ano seguinte, iniciou o mestrado no IFQSC-USP sob orientação de Craievich, que tinha publicado dois artigos científicos sobre vidros, os únicos no Brasil até então.

Após um breve estágio de iniciação científica sob orientação do professor visitante Osgood J. Whittemore, foi Craievich quem iniciou Zanotto na pesquisa sobre esse material e depois o incentivou a fazer doutorado na Universidade de Sheffield, no Reino Unido, o principal centro mundial de pesquisa em vidro na época. “Craievich aplicou com maestria métodos cristalográficos avançados para desvendar detalhes das complexas estruturas de ligas metálicas, vidros, cimentos, géis, parafinas e proteínas”, destaca Zanotto.

Membro-fundador da Sociedade Brasileira de Pesquisa de Materiais (SBPMat), Craievich integrou a Associação Brasileira de Cristalografia (ABCr) e a Academia Brasileira de Ciências (ABC). Amante do cinema, apreciava música erudita e gostava de acompanhar, de preferência ao vivo, torneios de tênis e futebol. Era viúvo e deixa um filho.

Íntegra do texto publicado em versão reduzida na edição impressa, representada no pdf.

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