Em um artigo clássico, escrito originalmente na França em 1970 e traduzido para o português oito anos mais tarde, o crítico literário Roberto Schwarz afirma que, “apesar da ditadura da direita, há relativa hegemonia cultural de esquerda no país” entre 1964 e 1969. Dos anos 1970 até o fim da ditadura em 1985, quando o regime reprimiu, censurou e se fechou ainda mais antes de começar sua lenta e gradual abertura, o tom da produção artística nacional, em linhas gerais, continuou exprimindo esse aparente paradoxo. Os estudos sobre a produção cultural nos anos da ditadura versam, em sua maioria, sobre movimentos e artistas que, de forma mais ou menos explícita, seja em produções mais alternativas ou dentro da chamada lógica do mercado, contestaram o regime. Esse tema se tornou um campo fértil de pesquisas nas duas últimas décadas. “Minha geração se interessa pela política por meio do contato com obras culturais que falam da ditadura”, afirma Marcelo Ridenti, 55 anos, professor do Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH-Unicamp).
O golpe para além das imagens
Braços civis de uma intervenção militar
Marcas profundas
O impacto na academia
O passado no presente
De onde vem a informação
Arquivos britânicos e o golpe de 1964
Ridenti é um dos autores que mais pesquisaram as relações da produção cultural e da política durante o regime militar. Seus trabalhos cobrem desde os anos 1950, período anterior ao golpe em que o Partido Comunista Brasileiro (PCB) era um ator importante no impulso às artes (engajadas), passam pela efervescência dos anos 1960 e a repressão mais barra pesada dos 1970 e se estendem até meados da década de 1980, com o processo de redemocratização do país. Uma das expressões usadas por Ridenti para descrever a relação entre a política e a esfera cultural do pós-Segunda Guerra Mundial até os primeiros anos posteriores ao golpe — que bebera na fonte das relações entre os artistas e o PCB e os Centros Populares de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE) — é o sentimento de “brasilidade revolucionária” (ver edição 206 de Pesquisa FAPESP). Esse, aliás, é o título de um livro seu, lançado em 2010, em que explora um certo romantismo de artistas comunistas, como o escritor Jorge Amado, o cineasta Nelson Pereira dos Santos ou o dramaturgo Dias Gomes, que produzem obras alimentadas por um sentimento de construção de um novo país.
Talvez o estudo de maior fôlego de Ridenti seja o livro Em busca do povo brasileiro – Artistas da revolução, do CPC à era da TV (Editora Unesp), originalmente editado no ano 2000, mas que foi revisto, ampliado e relançado neste ano por ocasião dos 50 anos do golpe. Como sugere seu título, a obra não se fixa na trajetória de um grupo de artistas ou de um setor cultural (cinema, teatro, música, literatura ou TV), mas, sim, no quadro mais geral do setor. O sociólogo pensou em reescrever inteiramente o livro, mas acabou optando por fazer revisões tópicas, atualizar as referências bibliográficas e acrescentar um posfácio. As atualizações fazem um mapeamento de boa parte da produção acadêmica que pesquisou algum aspecto da produção cultural na ditadura militar. “Houve muitas novidades em termos de estudos depois dos anos 2000”, diz Ridenti.
Uma das contribuições mais importantes são os trabalhos do historiador Marcos Napolitano, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), que tem esmiuçado com especial destaque os caminhos da música popular brasileira, e em menor escala da produção audiovisual, durante o regime autoritário. Em 2011, ele defendeu sua tese de livre-docência, na qual tratou dos dilemas e da contradições das políticas culturais originadas ou desenvolvidas em oposição à ditadura entre 1964 e 1968 por quatro correntes distintas: comunistas, católicos, liberais e movimentos contraculturais (como o tropicalismo). Todos eram contrários à ditadura, mas cada segmento tinha particularidades e visões diferentes do que deveria ser a arte. “A própria ideia de oposição alimentava a produção cultural do período, bastante rica”, diz Napolitano. “Mas, enquanto a produção da esquerda católica exprimia uma cultura basista, amadora e comunitária, a da contracultura era, por exemplo, sectária, experimental e transgressora.”
Uma quantidade significativa de trabalhos mais específicos, que enfocam basicamente a produção de um setor artístico durante a ditadura, tem sido produzida por uma nova geração de pesquisadores da área de humanidades. Miliandre Garcia, 38 anos, hoje professora de história da Universidade Estadual de Londrina (UEL), analisou o funcionamento da censura teatral, cujos documentos estão armazenados no Arquivo Nacional, em Brasília. O material inclui informações sobre cerca de 22 mil peças e 702 processos de censura a montagens teatrais que foram em algum momento proibidas de serem encenadas. O estudo resultou em sua tese de doutorado defendida em 2008 na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), “Ou vocês mudam ou acabam”: teatro e censura na ditadura militar (1964-1985). “As peças que a censura analisava iam desde montagens amadoras até produções de grupos profissionais, e as proibições podiam ser por questões ideológicas ou simplesmente porque o censor achava que a montagem ia contra a moral e os bons costumes”, diz Miliandre.
Dependendo da época (depois do AI-5, em dezembro de 1968, a censura política se acentua), das “instruções superiores” e, às vezes, até do humor do censor de plantão, a mesma peça podia ser proibida numa ocasião e liberada em outra. E não eram vetadas apenas as peças de autores considerados como de oposição, como Liberdade, liberdade, de Millôr Fernandes e Flávio Rangel, ou “pornográficos”, caso de Toda nudez será castigada, de Nelson Rodrigues. Um texto como Golias em circuito fechado, de autoria de Marcos César, Luiz Carlos Miele e Ronaldo Bôscoli e protagonizado pelo comediante Ronald Golias, nem de longe um crítico do regime, podia (e foi) interditado em certos momentos pela censura, que associava a suposta “degradação moral” da montagem a “planos de subversão”.
O historiador Flamarion Maués, que hoje faz pós-doutorado com bolsa da FAPESP na Escola de Comunicações e Artes (Eca) da USP, trabalha com as relações do mundo editorial e a ditadura. No mestrado e doutorado, ambos defendidos no Departamento de História da FFLCH ao longo da última década, estudou o papel de editoras “políticas” ou de oposição, respectivamente, no Brasil e em Portugal. No Brasil, analisou editoras como a Brasiliense e a Marco Zero, que atuaram durante o período de abertura política no país. Seu trabalho de mestrado virou recentemente o título Livros contra a ditadura: editoras de oposição no Brasil, 1974-1984 (Publisher Brasil, 2013). Agora, no pós-doutorado, continua no tema e realiza um estudo comparativo entre a atuação de editoras políticas no Brasil e em Portugal em momentos de transição de regime. O contexto brasileiro é o mesmo de seus estudos anteriores, a abertura política iniciada na última fase dos governos militares. Em Portugal, o momento de passagem escolhido é o da Revolução dos Cravos (1974-1975), movimento de caráter democrático, anticolonial e socialista, liderado por oficiais de média patente, que pôs fim a décadas de ditadura de Salazar e de seus sucessores. “Identifiquei 140 editoras políticas em Portugal, um número muito alto para um país tão pequeno”, diz Maués. No Brasil, ele havia mapeado apenas 45 editoras de perfil semelhante.
Um conjunto de 74 filmes lançados entre 1979 e 2009 que retrataram a ditadura foi alvo de uma dissertação de mestrado apresentada em 2011 pela socióloga Caroline Gomes Leme no IFCH-Unicamp. Além de comentar todos esses filmes, o trabalho – que virou no ano passado o livro Ditadura em imagem e som: trinta anos de produções cinematográficas sobre o regime militar brasileiro (Editora Unesp) e foi eleito o melhor mestrado de 2012 pela Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs) – deteve-se na análise pormenorizada de cinco produções: Nunca fomos tão felizes, de Murilo Salles, de 1984; Corpo em delito, de Nuno Cesar Abreu, de 1990; Ação entre amigos, de Beto Brant, de 1998; A terceira morte de Joaquim Bolívar, de Flávio Cândido, de 2000; e Zuzu Angel, de Sérgio Rezende, de 2006. “A partir da abertura, notadamente após a Lei da Anistia de 1979, o cinema pôde falar de maneira mais direta sobre a ditadura militar que estava se esvaindo, afirma Caroline. “O processo é ainda um tanto ‘cauteloso’. Os filmes evitam, por exemplo, creditar a tortura abertamente aos militares, mas situam explicitamente suas tramas no período do regime militar e expõem a opressão desse contexto histórico específico.”
No mestrado, Caroline evitou trabalhar com a produção cinematográfica do Cinema Novo de Glauber Rocha ou de Nelson Pereira do Santos e do Cinema Marginal de Rogério Sganzerla ou Julio Bressane. As fitas desses dois movimentos foram feitas entre os anos 1960 e 1970 e a socióloga as considera como filmes rodados sob a ditadura, que sentiam mais diretamente os impactos do golpe e da censura e, por vezes, recorriam a alegorias ou outros recursos estéticos para se referir ao regime autoritário. Já as produções dos anos 1980 começavam a usufruir de alguma liberdade para tratar do golpe e dos governos militares. No doutorado, a socióloga está estudando o cinema paulista dos anos 1960 e 1970.
Trabalhando no campo das artes plásticas, o historiador Artur Freitas, professor da Universidade Estadual do Paraná (Unespar), lançou em 2013 o livro Arte de guerrilha: vanguarda e conceitualismo no Brasil (Edusp). No estudo, que expande uma pesquisa feita para seu doutorado defendido na década passada, Freitas analisa em detalhes seis obras ou intervenções de três artistas plásticos (Cildo Meireles, Artur Barrio e Antonio Manuel) durante o regime militar. “Essa arte de vanguarda mostra-se crítica à ditadura, mas é mais conceitual: baseia-se em objetos e performances e estimula o espectador a participar da obra”, afirma Freitas. Uma das performances estudadas é a obra Tiradentes: totem-monumento ao preso político, exposta em abril de 1970 durante a Semana da Inconfidência, em Belo Horizonte, na qual Cildo Meireles queima 10 galinhas vivas amarradas a uma estaca, em um alusão mais do que direta às práticas repressivas da ditadura.
Como o artista plástico pôde publicamente questionar, já num período posterior ao AI-5, o regime autoritário sem ter sido censurado? “As artes plásticas tinham uma inserção social mais reduzida que as artes de espetáculo e os censores se preocupavam mais com a produção musical, teatral e cinematográfica, que atingiam um público mais amplo”, diz Freitas. O historiador destaca um ponto interessante que ocorreu com Meireles e outros artistas de vanguarda, como Hélio Oiticica e Lygia Clark: com o passar do tempo, ainda durante a ditadura, mas sobretudo após o seu final, esses artistas alternativos se tornaram os principais expoentes de seu setor no país e suas obras foram muito valorizadas.
Essa questão se insere em um dos debates ainda atuais entre os pesquisadores, que discutem como se deu essa hegemonia cultural de esquerda na história recente do país. Uma corrente significativa de estudiosos advoga a ideia de que esse domínio se deu, em grande medida, via mercado, embora o regime militar tenha adotado algumas iniciativas na área cultural, como a criação da Embrafilme em 1969, que tinham o objetivo de trazer para seu campo de influência a produção de alguns setores. O apoio ao estabelecimento de uma rede nacional privada de televisão, no caso a Rede Globo, também em 1969, fez parte de um projeto dos militares de integrar o país e também influir no campo da cultura. “O regime militar investiu muito em infraestrutura para televisão”, afirma Esther Hamburger, da ECA-USP, que pesquisa a produção televisiva e de cinema no país. “Mas nos anos 1970 e 1980 a programação de TV nem sempre era o que os militares queriam.” Estudos recentes de Esther destacam o papel das telenovelas em criar uma representação mais próxima da realidade nacional ainda em plena ditadura (ver Pesquisa FAPESP edição 186).
Ser de oposição à ditadura também era uma postura que encontrava reconhecimento entre uma parcela considerável dos consumidores de uma cultura de esquerda. “Alguns escritores, como Carlos Heitor Cony, não eram de esquerda, mas acabaram escrevendo obras associadas à luta contra a ditadura e foram reconhecidos como tal pelo mercado”, diz Rodrigo Czajka, sociólogo da Unesp de Marília, que realizou estudos sobre intelectuais e a imprensa comunista no Brasil. “Esse foi o caso do romance Pessach, de Cony, que descreve a crise existencial de um intelectual em aderir ou não à luta armada.” O pesquisador também tem analisado os Inquéritos Policiais-Militares (IPMs) em que foi investigada a ação de inúmeros intelectuais ligados à resistência contra o regime militar. Czajka, aliás, é o organizador do colóquio “A cultura e as artes no regime militar: 50 anos do golpe” entre 22 e 25 deste mês na Unesp de Marília, em que a produção cultural nos anos da ditadura será debatida por duas dezenas de estudiosos.
Projetos
1. Formação do intelectual e da indústria cultural no Brasil (nº 2008/55377-3); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Sérgio Miceli – Unicamp; Investimento R$ 534.463,00 (FAPESP).
2. Cinema e sociedade: sobre a ditadura militar no Brasil (nº 2009/04093-8); Modalidade Bolsa de Mestrado; Pesquisador responsável Marcelo Ridenti – (IFCH-Unicamp); Bolsista Caroline Gomes Leme; Investimento R$ 18.385,94 (FAPESP).
3. A edição política no Brasil e em Portugal: ação editorial e engajamento político no combate às ditaduras (nº 2013/08668-0); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Pesquisador responsável Sandra Reimão – Eca-USP; Bolsista Flamarion Maués; Investimento R$ 163.082,88 (FAPESP).