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As raízes do quadro Independência ou morte!

Historiadora identifica as obras francesas e italianas que inspiraram o pintor Pedro Américo

Com a mesma disposição de personagens, o 1807, Friedland, de Jean-Louis-Ernest Meissonier, pode ter sido o modelo geral de composição para o Independência ou Morte!

Metropolitan Museum of Art / Wikimedia Commons

O brado do Ipiranga, a declaração de Independência pelo então príncipe regente dom Pedro de Alcântara (1798-1834) em 7 de setembro de 1822, foi construído historicamente como um dos atos fundadores do Brasil, afirmam os estudiosos do período. Sua imagem mais emblemática é o quadro Independência ou morte!, de 4,15 metros (m) por 7,60 m, elaborada de 1886 a 1888 em Florença, Itália, que ocupa o salão nobre do Museu Paulista da Universidade de São Paulo (MP-USP). De acordo com os historiadores, seu autor, Pedro Américo de Figueiredo e Melo (1843-1905), um dos mais famosos pintores brasileiros do final do século XIX, não o concebeu como tentativa de representação fidedigna do ato, nem como fantasia desvinculada da realidade.

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A pintura expressa não só uma intensa pesquisa sobre a história e a cultura brasileiras, mas também uma marcante influência europeia, examinada pela historiadora Michelli Scapol Monteiro. Em 2019 e 2020, como parte de seu estágio de pós-doutorado no MP, ela visitou arquivos, bibliotecas e museus de Florença e de Paris para identificar as influências artísticas e políticas do quadro e as referências a outras obras e artistas, também chamadas de citações, procedimento comum em pinturas históricas da época.

“As citações eram uma forma de o artista mostrar erudição e conhecimento de seus predecessores e contemporâneos”, diz ela. “Serviam para mostrar deferência a pinturas que inspiraram a composição de uma tela.” Geralmente, citações são gestos de personagens, detalhes ou a disposição dos elementos de uma cena muito semelhantes aos das obras inspiradoras. Eram até mesmo esperadas e valorizadas, por mostrarem a capacidade de um artista de adaptar um elemento prévio a um novo contexto.

Museu Nacional de Belas Artes / Wikimedia CommonsEm Batalha do Avaí, de 1877, Pedro Américo atesta seu apego a detalhesMuseu Nacional de Belas Artes / Wikimedia Commons

Ainda que fosse uma procedimento característico da pintura acadêmica, resultou em acusações de plágio contra Pedro Américo, especialmente em comparação com o quadro 1807, Friedland, do francês Jean-Louis-Ernest Meissonier (1815-1891), que retrata uma vitória militar de Napoleão Bonaparte (1769-1821). Concluída em 1875, a obra exibe a mesma disposição de protagonistas, grupos e cavalarias. Monteiro reconhece o quadro de Meissonier como modelo geral de composição para o Independência ou morte!, além de detalhes que devem ter saído do 1807 e de outras obras de pintores franceses e italianos.

Os gestos de figuras próximas a dom Pedro I são muito semelhantes aos de personagens retratados em dois quadros do francês Horace Vernet (1789-1863), de 1828 e 1846, e uma pintura de Henri Philippoteaux (1815-1884), de 1844. As ações em meio à cavalaria são muito parecidas com as de pinturas de guerra italianas, datadas de 1855 e 1868, respectivamente de Giovanni Fattori (1825-1908) e de Vincenzo Giacomelli (1841-1890) (ver infográfico).

Em um discurso em Lyon, na França, em 1880, Pedro Américo argumentou que a citação não expressava cópia ou falta de originalidade, mas um contínuo progresso das expressões artísticas. Contudo, vanguardas antiacademicistas, como o impressionismo, em ascensão no final do século XIX, valorizavam a originalidade, em oposição às práticas tradicionais de citações e demonstração de erudição artística.

“Pedro Américo fez o Independência ou morte! em consonância com as convenções artísticas da época, pois também desejava ingressar no meio artístico europeu”, conta Monteiro. Florença, com sua miríade de estúdios de artistas, era um local privilegiado para esse fim. “No acervo pessoal de Pedro Américo, em posse de seu neto Giampaolo Montesi, em Florença, encontrei gravuras, fotografias de cavalos e informações sobre vestimentas históricas que serviram de referência para o quadro.”

“Havia claramente um esforço dele em encontrar a melhor forma de tornar o quadro realista, como vários outros artistas do período”, observa a historiadora. A atenção aos detalhes de pessoas, roupas e animais já havia marcado outras obras do pintor, como Batalha do Avaí, de 1877, representando um dos confrontos da Guerra do Paraguai, e manteve-se em Tiradentes esquartejado, de 1893, já no período republicano, que não agradou o novo establishment tanto quanto seu autor esperava.

Entrevista: Michelli Scapol Monteiro
00:00 / 18:54

Segundo Monteiro, Pedro Américo tinha bom trânsito na Corte de dom Pedro II (1825-1891) e correspondia-se com a princesa Isabel (1846-1921). Dom Pedro II  e a rainha Vitória (1819-1901), da Inglaterra, conheceram a pintura na Accademia Reale delle Belle Arti, de Florença, onde foi exposta pela primeira vez, em 1888. No Brasil, a tela só foi exibida em 1895, na inauguração do MP.

Pintura de história
Pedro Américo estava consciente de que produzia algo diferente de uma representação fiel da realidade. Sabe-se que a comitiva do príncipe não usava cavalos, mas mulas, mais apropriadas ao tipo de viagem que faziam, ao subir a serra do Mar. Nem havia tanta gente com ele. Tampouco vestiam roupas formais, inadequadas à natureza da viagem e do clima. “A realidade inspira, mas não escraviza o pintor”, defendia-se o artista.

Sem abdicar do realismo pictórico, Pedro Américo deu ao grito da Independência uma dimensão solene e grandiloquente. Seu quadro é um exemplo de pintura de história, gênero artístico do final do século XIX frequentemente atrelado aos movimentos de legitimação nacionalista. Nessa abordagem, o pintor deveria procurar elementos da realidade, como os retratos dos integrantes da comitiva de dom Pedro, mas também interpretar os fatos de acordo com sua imaginação artística.

Acervo Giampaolo Montesi / Michelli Scapol Monteiro MP-USPAteliê típico do final dos anos 1800 em Florença, provavelmente de Pedro AméricoAcervo Giampaolo Montesi / Michelli Scapol Monteiro MP-USP

O contexto político também era relevante: o quadro foi uma encomenda do governo paulista para decorar o edifício do Monumento do Ipiranga, erguido de 1885 a 1890 para marcar o lugar em que teria ocorrido a declaração de Independência. “O objetivo dos políticos de São Paulo era valorizar o solo paulista como o lugar de fundação nacional”, diz a historiadora do MP Cecília Helena de Salles Oliveira. “O edifício foi projetado para celebrar a memória do fundador do Império e a memória da monarquia, e o objetivo mais imediato do quadro encomendado a Pedro Américo era enaltecer a importância essencial da monarquia na construção da nacionalidade.”

A preferência estilística do artista não se chocava com a expectativa de quem encomendou a obra. “As orientações para a pintura partiram de políticos conservadores, que pretendiam uma obra de arte que respeitasse os princípios mais gerais da pintura de história”, aponta Oliveira.

Pedro Américo tentou expor o quadro na Feira Universal de Paris, em 1889, mas, por falta de verba e de transporte adequado, a comissão do monumento do Ipiranga não autorizou o envio. “Provavelmente ele queria mostrar o quadro para Meissonier, que era presidente do júri da seção de pintura e desenho da exposição”, supõe Monteiro.

Quatro anos depois, ele expôs o quadro no pavilhão brasileiro na feira em comemoração dos 400 anos da descoberta da América, em Chicago, nos Estados Unidos. Investigando a cobertura jornalística do evento, Monteiro descobriu que Independência ou morte! foi a obra de artistas brasileiros de maior destaque e foi reproduzida nos jornais de Chicago. Caipiras negaceando, de Almeida Junior, foi exposto no Palácio de Belas Artes da feira e premiado.

Moreaux versus Pedro Américo
“A imagem da declaração de independência mais difundida ao longo do século XIX foi a do francês François-René Moreaux [1807-1860], realizada em 1844, por encomenda do Senado”, diz a historiadora da arte Maraliz de Castro Vieira Christo, da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). “Com a fragmentação política do período regencial e o golpe da maioridade, foi fundamental afirmar a continuidade entre a Independência e o reinado do jovem dom Pedro II, que subira ao trono três anos antes.” Para tanto, segundo ela, “Moreaux optou por representar a Independência como confraternização e não como conflito, colocando os militares em último plano”.

Para Oliveira, o objetivo político da pintura de Moreaux era “perpetuar a imagem da monarquia como regime aclamado popularmente, aceito pela população por expressar os anseios de liberdade da sociedade”. Em contraste com o quadro de Moreaux, Pedro Américo produziu “uma imagem monumental idealizando o momento da fundação nacional”, afirma a historiadora, e seu objetivo era “imortalizar o lugar, a data de 7 de setembro e o protagonista”.

Museu Imperial / Wikimedia CommonsO quadro A proclamação da Independência, feito por François-René Moreaux em 1844, foi bastante difundido no século XIX, antes de ser suplantado pela obra de Pedro AméricoMuseu Imperial / Wikimedia Commons

Monteiro chama a atenção para uma diferença entre a figura de dom Pedro I nos dois quadros: no de Moreaux, sobre o príncipe aclamado por uma multidão há uma luz que remete a um ato divino na fundação do Brasil. No de Pedro Américo, “há uma atribuição de heroísmo, com ênfase na agência humana do ato, não divina, procurando mostrar como o monarca foi importante para a Independência do Brasil”.

Independência ou morte! se sobrepôs a seu antecessor e se tornou a imagem emblemática da Independência para os brasileiros, especialmente com sua ampla difusão a partir do centenário da Independência, em 1922. “Desse momento em diante, o quadro foi reproduzido nos mais variados suportes, como leques, tapeçarias, selos, medalhas. Passou a ser visto como uma imagem ‘real’ do fato e não uma representação”, afirma Christo.

Segundo Oliveira, a popularização da imagem ocorreu graças ao empenho de políticos do Partido Republicano paulista e intelectuais interessados em expandir a imagem da Independência em São Paulo. “São Paulo era apresentado como lugar de origem da nação e do novo regime republicano”, diz ela. “Com a expansão da educação pública e com os investimentos dos governos federal e estaduais na direção do atrelamento entre arte, cultura e propaganda política, a pintura ganhou uma repercussão enorme.” Durante décadas, foi a imagem predominante nos livros didáticos de história.

Um pintor decidido
Físicos encontram poucos detalhes indicando mudanças de ideia

“Pedro Américo foi muito preciso na composição, pois o quadro não tem muitos arrependimentos”, diz a física da USP Márcia Rizzutto.

Ela e o também físico Pedro de Campos examinaram os pigmentos do quadro por meio de três técnicas: a fluorescência de raios X e espectroscopia Ramanque, que distinguem os pigmentos originais de outros pigmentos adicionados em trabalhos posteriores de restauração, e a reflectografia de infravermelho, que identifica desenhos subjacentes e os chamados arrependimentos, detalhes apagados ou substituídos.

Eles verificaram que as mudanças entre o esboço e a pintura final se limitam a detalhes, como orelhas de cavalo e o seu cavaleiro, flores que desapareceram, patas de cavalo em posições diferentes e a assinatura, inicialmente no alto do quadro e depois transferida para uma região mais visível, próxima à moldura inferior.

Projeto
Independência ou morte!, de Pedro Américo: Concepção e circulação antes do ingresso no Monumento à Independência (nº 18/17682-0); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Pesquisador responsável Paulo César Garcez Marins (USP); Bolsista Michelli Cristine Scapol Monteiro; Investimento R$ 536.919,71.

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