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NEUROCIÊNCIA

Brasileiros e franceses identificam uma nova possível causa biológica da depressão

Falha na reciclagem de componentes velhos ou defeituosos dos neurônios provoca em roedores sinais semelhantes aos da doença em seres humanos

Ao longo da vida, até 20% das pessoas apresentam um episódio de depressão, marcado pela tristeza prolongada e a perda de prazer

Klosfoto / Getty images

A depressão é um problema de saúde mental frequente e debilitante. Estimativas indicam que 5% das pessoas têm sinais atuais de depressão e que quase 20% podem apresentar ao longo da vida ao menos um episódio da doença, marcada pela tristeza prolongada e a perda de interesse e prazer em realizar atividades antes agradáveis, com prejuízos para o convívio social e o trabalho. Assim como outros transtornos mentais, a depressão tem causas múltiplas e complexas, que resultam da interação entre fatores ambientais (condições sociais, econômicas, psicológicas e culturais) e as características genéticas do indivíduo, que determinam a propensão a desenvolver o problema. Trabalhos realizados nos últimos anos já haviam identificado dois potenciais fatores biológicos que aumentam a predisposição à depressão: a baixa reposição das células cerebrais (em especial, os neurônios) e a redução das conexões entre essas células. Agora, em um artigo publicado em 2 de fevereiro na revista Nature Aging, um grupo de pesquisadores do Brasil e da França apresenta uma nova possível causa biológica do problema: a perda da capacidade dos neurônios de reciclar seus componentes velhos ou danificados.

Conhecido por um nome técnico algo assustador – autofagia, que, em grego, significa “devorar a si mesmo” –, esse mecanismo de destruição e reaproveitamento dos componentes, quando bem controlado, é fundamental para a saúde e o bom funcionamento das células. Sua conexão com a depressão foi identificada de maneira casual pela equipe do neurocientista francês Pierre-Marie Lledo, do Instituto Pasteur, em Paris, em parceria com o grupo do psiquiatra brasileiro Flávio Kapczinski, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Entrevista: Flávio Kapczinski
00:00 / 21:40

Alguns anos atrás, Kapczinski e Lledo iniciaram uma colaboração para investigar o efeito de uma proteína chamada fator de diferenciação do crescimento 11 – ou GDF11 – sobre a saúde dos neurônios. Essa proteína favorece o desenvolvimento do cérebro, dos vasos sanguíneos e de outros tecidos no embrião e é naturalmente produzida pelo organismo até a idade adulta. Nos seres humanos, sua síntese declina muito a partir dos 70 anos.

Havia tempos o pesquisador brasileiro reunia evidências, em testes com animais e seres humanos, de que episódios sucessivos de depressão causavam danos gradativos aos neurônios e outras células cerebrais, lembrando uma espécie de envelhecimento acelerado, fenômeno que Kapczinski denominou neuroprogressão (ver Pesquisa FAPESP nº 197). “Em uma conferência realizada em 2018 no Pasteur, apresentei a hipótese da neuroprogressão e soube que o grupo de Lledo tinha disponível uma molécula que funcionaria como um rejuvenescedor de neurônios”, conta Kapczinski, que integra o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Translacional em Medicina (INCT-TM), financiado pela FAPESP.

Essa molécula era o GDF11, cuja ação restauradora sobre o cérebro havia sido demonstrada pela neurocientista grega Lida Katsimpardi durante um estágio de pós-doutorado no grupo de Amy Wagers e Richard Lee, da Universidade Harvard, nos Estados Unidos. Em um artigo publicado em 2014 na revista Science, Katsimpardi comprovou que, em roedores, a proteína revertia o efeito do envelhecimento por promover a formação de novos neurônios (neurogênese). Agora pesquisadora do Pasteur, ela propôs avaliar o efeito do GDF11 sobre a depressão e um sintoma que a acompanha com frequência, a perda de memória, também comum no envelhecimento.

Katsimpardi, Lledo e Kapczinski planejaram uma longa série de experimentos com células cultivadas em laboratório e com camundongos. Apresentados na Nature Aging, os resultados mostraram que a administração por algumas semanas do GDF11 na corrente sanguínea dos roedores idosos, que naturalmente têm níveis mais baixos desse fator de crescimento, foi suficiente para evitar o declínio da memória e os sintomas característicos da depressão. Os animais tratados passaram a apresentar desempenho semelhante ao de camundongos jovens. Já nos roedores jovens, a proteína impediu que desenvolvessem os sinais da depressão induzida pela aplicação de corticosterona, o hormônio do estresse em roedores, mostraram os testes realizados no Pasteur.

Lida KatsimpardiNeurônio de roedor idoso tratado com GDF11 (amarelo) apresenta número de pontos de conexão (pequenas protuberâncias) semelhante ao da célula de animais jovens e saudáveis (azul)Lida Katsimpardi

Os pesquisadores também verificaram que, nos animais tratados com GDF11, o hipocampo, região cerebral associada à regulação do humor e à aquisição da memória, funcionava melhor, mas não pelo motivo que inicialmente supunham. “Pensávamos que o efeito do GDF11 fosse decorrente da neurogênese, que compensaria a perda dessas células observada na depressão e no envelhecimento”, conta Kapczinski.

Análises da ação do GDF11 sobre os neurônios, no entanto, mostraram que a melhora não se devia à neurogênese. Ou, ao menos, não só a ela. Quando é administrado na corrente sanguínea, o GDF11 até promove a formação de novos neurônios, mas, aparentemente, de forma indireta, por estimular a liberação de outros compostos que provocam a neurogênese. Injetado diretamente no cérebro, no entanto, ele não levou à proliferação de neurônios, apesar de continuar a promover melhora na memória e nos sintomas depressivos.

“Essa dissociação sugere que os efeitos comportamentais do GDF11 não são causalmente dependentes das propriedades neurogênicas do fator de crescimento, mas coincidem com sua capacidade de aumentar a autofagia”, escreveram Patrick Piantadosi e Andrew Holmes, pesquisadores do Laboratório de Neurociência Comportamental e Genômica dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH) dos Estados Unidos, em um comentário sobre o estudo publicado na mesma edição da revista.

O efeito benéfico do GDF11, constataram Katsimparti, Lledo e Kapczinski, foi consequência do aumento da autofagia, a reciclagem de componentes, que contribui para a eliminação de resíduos tóxicos nas células. Os neurônios cultivados em laboratório e tratados com esse fator de crescimento funcionavam melhor e faziam mais conexões com outros neurônios. A evidência de que esse resultado era provocado pela autofagia veio de outro experimento. Ao inativar geneticamente uma das proteínas envolvidas na autofagia ou bloqueá-la completamente por meio de compostos químicos, verificou-se que o efeito protetor se perdeu. Os neurônios se tornaram menos ativos e as conexões com outras células diminuíram.

“Descobrir esse papel do GDF11 avança nossa compreensão da conexão entre envelhecimento, memória e transtornos do humor e – talvez o mais emocionante – aumenta a perspectiva de usar o GDF11 como um meio de melhorar o diagnóstico e o tratamento desses problemas”, afirmaram Piantadosi e Holmes.

“Esse trabalho é relevante por três motivos”, afirma a psiquiatra brasileira Elisa Brietzke, da Queen’s University, no Canadá, que não participou desse estudo. “Por mostrar que há múltiplos mecanismos envolvidos na depressão, que, já sabemos, não é explicada apenas pela falta de neurotransmissores, como a serotonina. Por indicar que esse transtorno mental não causa alterações apenas no cérebro, mas no corpo todo. E por criar a perspectiva de que algum dia um tratamento que aumente os níveis de GDF11 possa combater tanto a depressão quanto as queixas de memória, que são comuns nessa doença, mas não melhoram com os antidepressivos atuais”, explica a pesquisadora, que é especialista em transtorno bipolar e verificou anos atrás que os episódios de depressão e mania característicos da doença causam o envelhecimento precoce do sistema de defesa.

Embora Kapczinski e sua equipe tenham observado que os níveis de GDF11 estão reduzidos no sangue de pessoas com depressão, ainda é longo o caminho antes que se chegue a uma terapia que aumente seus níveis no organismo. “Proteínas como o GDF11 agem em diferentes órgãos e tecidos e, quando administradas diretamente, podem produzir efeitos benéficos em alguns e deletérios em outros. Além disso, por aumentar a sobrevida das células, há o risco de que promova o crescimento de tumores”, alerta Brietzke. No entanto, segundo a pesquisadora, entender como o GDF11 age nas células pode permitir o desenvolvimento de compostos que atuem nos mesmos alvos moleculares e, além de eficazes, também sejam seguros e bem tolerados. Seria algo bastante desejável, uma vez que os antidepressivos tradicionais, que promovem o aumento de neurotransmissores como a serotonina, não funcionam em cerca de 30% dos casos de depressão.

Artigo científico
MOIGNEU, C. et al. Systemic GDF11 attenuates depression-like phenotype in aged mice via stimulation of neuronal autophagy. Nature Aging. 2 fev. 2023.

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