Noventa projetos de pesquisa desenhados para enfrentar a pandemia do novo coronavírus (Sars-CoV-2) e suas consequências foram contemplados em um edital lançado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) em parceria com o Ministério da Saúde. A chamada, a maior lançada até agora pelo governo federal, destinou R$ 45,5 milhões a grupos interessados em desenvolver tratamentos, testes de diagnóstico e vacinas, além de criar tecnologias com impacto no Sistema Único de Saúde (SUS) e propor estratégias de prevenção e controle da doença. A quantidade de projetos apresentados surpreendeu o CNPq – foram 2.219 propostas – e tornou a tarefa de selecioná-los mais complexa do que o esperado. Por isso, os resultados finais foram divulgados em 7 de julho, três semanas depois do previsto no cronograma inicial. “A resposta da nossa comunidade científica foi bastante robusta e isso é fruto dos investimentos feitos na qualificação de grupos de pesquisa em todas as partes do país em anos anteriores”, diz Evaldo Vilela, presidente do CNPq.
A seleção envolveu um time de mais de mil assessores, que analisaram a qualidade e a viabilidade das propostas. Os projetos mais bem qualificados foram então submetidos ao escrutínio de dois comitês, que escolheram os 90 agraciados. Como o objetivo era dar respostas imediatas à pandemia, foram valorizadas iniciativas já maduras a ponto de render resultados de curto prazo.
– À procura de atalhos
– Para ganhar tempo
– Andar com as próprias pernas
– Cristiana Toscano: Esforço global inédito
– Convocação extraordinária
– O esforço de cada um
– Saída difícil
– O desafio de calcular o R
– Delicado retorno
– Violência amplificada
– Mudanças na intensidade das colaborações
Algumas propostas envolvem a utilização de recursos de inteligência artificial para melhorar a eficiência do atendimento às vítimas da Covid-19. Sob coordenação do economista Alexandre Chiavegatto Filho, da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP), pesquisadores de várias instituições pretendem iniciar os testes de um sistema capaz de estimar o risco de uma pessoa estar infectada com o novo coronavírus. A nova tecnologia baseia-se no cruzamento de informações sobre sexo e idade e dados clínicos de hemogramas. Quando um caso suspeito der entrada no hospital, o sistema mostrará de forma automática a probabilidade de ele estar contaminado. Se o risco for alto, o médico pode tomar as primeiras medidas de isolamento, enquanto colhe amostras para realizar um teste. “Também estamos trabalhando para fazer com que o sistema consiga estimar o risco de pacientes infectados evoluírem para quadros mais graves da doença”, diz Chiavegatto, que é diretor do Laboratório de Big Data e Análise Preditiva em Saúde (Labdaps). Com os recursos do edital, o grupo vai avaliar a eficácia do algoritmo em hospitais de diferentes regiões do país.
A equipe do médico José Geraldo Mill, do Departamento de Ciências Fisiológicas da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), busca uma estratégia de diagnóstico da Covid-19 mais rápida e barata. Ele aposta no uso de espectroscopia de infravermelho. A meta é desenvolver um sistema de inteligência artificial capaz de analisar variações no espectro dessa radiação quando a luz infravermelha atravessa as moléculas presentes na saliva de indivíduos com suspeita de infecção pelo novo coronavírus. A ferramenta está sendo desenvolvida a partir de amostras de pacientes atendidos em três hospitais da Região Metropolitana de Vitória e mais um no interior do estado. “A saliva de pacientes contaminados contém estruturas moleculares diferentes das amostras de indivíduos livres do vírus e, por isso, gera alterações distintas nas ondas de radiação infravermelha”, explica Mill. Os pesquisadores estimam que cada teste terá custo individual entre R$ 50 e R$ 75.
Em outra frente, pesquisadores de Santa Catarina vão analisar os caminhos bioquímicos envolvidos na resposta do organismo ao novo coronavírus. A proposta do projeto aprovado no edital do CNPq é montar um painel capaz de correlacionar dados clínicos usuais de indivíduos acometidos pela doença com os principais genes expressos pelos leucócitos, células do sistema imunológico envolvidas na resposta à infecção causada pelo Sars-CoV-2. “Queremos criar uma ferramenta capaz de determinar o risco de morte pela doença em cada indivíduo, bem como estimar as probabilidades de cada um deles precisar ser submetido à internação na UTI [Unidade de Terapia Intensiva]”, esclarece o médico Felipe Dal Pizzol, pesquisador do Departamento de Medicina da Universidade do Extremo Sul Catarinense (Unesc) e um dos coordenadores do projeto. “Dessa forma”, ele diz, “esperamos conseguir antecipar possíveis complicações e intervir com mais agilidade, internando mais cedo pacientes que ainda não apresentam sintomas graves da doença, mas que, de acordo com seus dados clínicos e reações químicas observadas em seu organismo, poderão evoluir para um estágio mais crítico”.
Dos 90 projetos selecionados, 48 se concentram na região Sudeste, sendo 25 deles em São Paulo. Outros 16 estão vinculados a instituições do Nordeste, 11 do Sul, 11 do Centro-Oeste e 4 do Norte. Mulheres são maioria entre os 90 contemplados: 51 projetos são liderados por pesquisadoras. A neurocientista Fernanda De Felice, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), por exemplo, propõe-se a identificar marcadores moleculares de infecção ou inflamação no sistema nervoso central causadas pelo Sars-CoV-2. O projeto é uma parceria entre o grupo liderado por De Felice e Fernanda Tovar-Moll, presidente do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino, mantido pela rede de hospitais privados D’Or São Luiz. Dados de 5 mil pacientes já foram coletados nos últimos meses nos hospitais. “O ponto de partida será a análise de amostras de sangue e também de líquor de pacientes com alterações neurológicas”, explica De Felice. O projeto vai avaliar não somente o impacto agudo do novo coronavírus no cérebro – estima-se que cerca de 40% dos indivíduos internados tenham alterações neurológicas –, mas também sequelas de longo prazo. Para tanto, pacientes serão avaliados três meses e um ano após a internação.
O grupo da química Gabriela Rodrigues Mendes Duarte, do Instituto de Química da Universidade Federal de Goiás (UFG), vai usar os recursos concedidos pelo CNPq para avançar no desenvolvimento de um kit de diagnóstico capaz de identificar a presença do vírus desde os primeiros dias de infecção. “Usamos amostras de saliva ou das vias aéreas obtidas do fundo do nariz ou garganta”, explica Duarte. “Elas são colocadas em um microchip e o resultado se dá por colorimetria. Se acusar a presença do vírus, o material testado fica com a cor verde fluorescente.” O resultado fica pronto em menos de duas horas. Uma vez comprovada, a tecnologia deverá ser transferida para uma empresa interessada em produzi-la em larga escala.
Uma das vertentes do edital, que apoia o desenvolvimento e o teste de vacinas, selecionou projetos com potencial para dar resultados a médio prazo – já que a corrida mundial por um imunizante capaz de neutralizar a infecção causada pelo Sars-CoV-2 não terminará a tempo de deter a primeira onda da pandemia. Um grupo de pesquisadores do Instituto Butantan, em São Paulo, vai mapear e testar diferentes tecnologias que poderiam ser usadas para desenvolver vacinas contra o novo coronavírus. O mapeamento balizará a estratégia do Butantan para criar plataformas tecnológicas capazes de produzir imunizantes, utilizando os especialistas do instituto. “Essas plataformas podem ser usadas para criar vacinas contra diferentes doenças, bastando modificar uma informação genética ou uma proteína para mudar o alvo. As poucas vacinas contra a Covid-19 que estão sendo testadas em humanos foram criadas a partir de plataformas já existentes”, diz o farmacêutico-bioquímico Renato Astray, do Laboratório Multipropósito do Instituto Butantan, que coordena o projeto. O esforço, ele explica, é voltado para desenvolver uma segunda geração de vacinas contra a Covid-19. “Não sabemos se as vacinas a serem testadas nos próximos meses serão eficientes ou se gerarão uma resposta imunológica duradoura. Possivelmente, será necessário continuar desenvolvendo vacinas mais efetivas e é nesse tipo de horizonte que o nosso projeto mira.”
No Distrito Federal, pesquisadores da Universidade de Brasília (UnB) se propõem a mapear a dispersão do vírus monitorando o esgoto. A expectativa é identificar precocemente novos focos de transmissão da doença. Há algum tempo o químico Fernando Fabriz Sodré, do Instituto de Química da UnB e coordenador do projeto aprovado no edital do CNPq, trabalha em parceria com a Companhia de Saneamento Ambiental do Distrito Federal (Caesb) e as polícias Civil e Federal no monitoramento de águas residuárias para a identificação da presença de drogas ilícitas e metabolitos, de modo a estimar a exposição da população a essas substâncias. “Com o surgimento da pandemia, decidimos adaptar nossa linha de pesquisa, com a ajuda de colegas de outros departamentos”, diz Sodré. Alguns trabalhos publicados no início de março chamam a atenção para o fato de que fragmentos do RNA do novo coronavírus foram detectados em amostras de fezes antes mesmo de aparecerem nas vias aéreas superiores dos pacientes. “O monitoramento do esgoto pode ajudar a antecipar possíveis curvas de dispersão viral”, afirma Sodré. Quase todo o esgoto de Brasília passa por estações de tratamento. São 15 no total, das quais 8 foram selecionadas para fornecer as amostras. A ideia é fazer uma coleta por semana nos próximos dois anos. “Será interessante medir o impacto das estratégias adotadas pelo governo a partir da análise de amostras do esgoto”, destaca o químico, que, no futuro, pretende ampliar a estratégia para o monitoramento da dispersão de outros vírus e contaminantes químicos.
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