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Evolução

Esporões, uma defesa das aves terrestres

Espécies que voam raramente têm apêndices ósseos nas pernas ou asas

O tachã (Chauna torquata) é uma das espécies brasileiras com esporão nas asas

Bart van Dorp/FLICKR

Nas aves, a habilidade de voar parece ser incompatível com a de atacar e defender-se usando esporões, uma protuberância óssea que cresce continuamente na base das pernas ou na frente das asas. “Os esporões provavelmente foram perdidos por causa do voo”, concluiu o biólogo Alexandre Palaoro, especialista em lutas animais, atualmente em estágio de pós-doutorado na Universidade Clemson, na Carolina do Sul, Estados Unidos. “As estruturas usadas em brigas são pesadas e aumentariam o consumo de energia durante o voo, por si só uma atividade bastante custosa.”

Palaoro e o biólogo João Menezes, atualmente na Universidade de Massachusetts em Amherst, nos Estados Unidos, procuraram esporões em descrições de 9.993 espécies de aves, analisadas por modelagem matemática e testes evolutivos, e encontraram esporões em 171 delas (118 na perna e 53 na asa).

Léo Ramos Chaves Os avicultores às vezes retiram os esporões dos galos para evitar brigasLéo Ramos Chaves

A conclusão, apresentada em um artigo publicado hoje (24) na Ecology Letters, é de que as espécies que fazem voos longos, como as da ordem Passeriforme, não costumam ter esporão. “Entre as espécies vivas, as com esporão tendem a fazer voos curtos e ocasionais”, diz Menezes. É o caso, no Brasil, do quero-quero (Vanellus chilensis) e do jaçanã (Jacana jacana), cujos esporões, discretos, na ponta das asas, parecem mais um adorno do que um armamento.

Em outras três espécies brasileiras – o pato-corredor (Oressochen jubatus), o pato-de-crista (Sarkidiornis sylvicola) e a pomba-antártica (Chionis albus) –, os esporões estão sob a plumagem. As asas da anhuma (Anhima cornuta) têm protuberâncias de até 6,1 centímetros (cm), as maiores encontradas nesse levantamento.

Os apêndices ósseos de três espécies domésticas – galo (Gallus gallus), peru (Meleagris gallopavo) e pavão (Pavo cristatus) – e de perus, pavões e galos selvagens, com até 5 cm, são bastante usados em lutas entre eles e nem sempre bem-vindos. Os criadores de frangos, às vezes, os removem para evitar que os animais se machuquem.

O naturalista inglês Charles Darwin (1809-1882), autor da teoria da evolução, base da biologia moderna, também refletia sobre essas protuberâncias. “Darwin mencionou esporões de galos tanto na Origem das espécies, de 1859, quanto na Descendência do homem e seleção em relação ao sexo, de 1871”, comenta Menezes. “O esporão do galo e os chifres de veado foram os primeiros exemplos que ele usou quando lançou o conceito de seleção sexual, porque favorece a disputa entre os machos pelas fêmeas. Darwin dizia que um galo sem esporas teria poucas chances de deixar descendentes.”

Os esporões, com suas diferentes formas e tamanhos, refletem as estratégias de luta e, reforçando a conclusão de Darwin, são mais comuns em espécies polígamas, nas quais a luta pela parceira sexual é mais intensa, observou o biólogo britânico Geoffrey Davidson, do Centro Nacional de Biodiversidade, em Singapura, em um artigo publicado em 1985 na revista Journal of Zoology. Análises mais recentes, porém, questionaram a relação entre poligamia e esporões.

Wikimedia Solitário-de-rodrigues, com esporões, extinto no século XVIII, em desenho de 1907 de Frederick FrohawkWikimedia

Em sua busca, Menezes encontrou fora do Brasil espécies com cinco ou mais esporões em cada perna: a pintada-vulturina africana (Acryllium vulturinum), da mesma família taxonômica que a galinha-d’angola (Numida meleagris), trazida pelos portugueses ao Brasil; o faisão-sangue (Ithaginis cruentus), que vive na Índia e China; e o faisão-eperonier (Polyplectron bicalcaratum), ave nacional de Myanmar.

“As espécies que não têm esporão podem utilizar outras formas de defesa”, diz Palaoro. “Ao enfrentar um adversário, podem usar o canto mais forte ou os movimentos, pulando e dançando, ou as garras, se o confronto for inevitável. Não é comum brigarem com o bico, porque, se quebrar, a ave não tem como se alimentar. Uma espécie de beija-flor usa o bico para brigar, mas paga um preço, porque não bebe néctar tão bem quanto outras.”

Em um artigo de 1954 publicado no Willson Bulletin, do Museu de História Natural de Chicago, Estados Unidos, o zoólogo canadense Austin Rand (1905-1982) identificou, em 17 espécies de aves, esporões efetivamente usados como arma nas disputas por fêmeas.

Não basta ter esporões, porém, para sobreviver. “O solitário-de-rodrigues (Pezophaps solitaria), parente mais próximo do dodô (Raphus cucullatus), tinha esporões”, relata Menezes. “As duas espécies viviam exclusivamente em ilhas do oceano Índico e foram extintas com a chegada dos seres humanos porque, como não voavam, podiam ser caçadas com facilidade.”

Íntegra do texto publicado em versão reduzida na edição impressa, representada no pdf

Artigos científicos
MENEZES, J. C. T e PALAORO, A. V. Flight hampers the evolution of weapons in birds. Ecology Letters. On-line. 24 fev. 2022.
RAND, A. L. On the spurs on birds’ wingsThe Willson Bulletin. v. 66, n. 2, p.  127-34, 1954.
DAVIDSON, G. W. H. Avian spurs. Journal of Zoology. v. 206, n. 3, p. 353-66. jul. 1985.

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