Imprimir Republicar

Paleontologia

Fósseis podem trazer respostas sobre a formação dos continentes e da camada pré-sal

Parte do material de 120 milhões de anos encontrado no interior da Bahia é de espécies que devem ter habitado antigo mar do Cretáceo

Quando morrem por alterações no pH da água, os peixes ficam retorcidos

Cibele Gasparelo Voltani / Unesp

Em busca de fósseis de dinossauros, o paleontólogo Luiz Eduardo Anelli, da Universidade de São Paulo (USP), viajou até o interior da Bahia ao lado de uma equipe de colegas. A expectativa naquele inverno de 2015 era encontrar mais pistas sobre a Era Mesozoica sul-americana. Os achados não foram bem o que Anelli esperava: tudo o que o grupo conseguiu coletar, nos quatro dias na região do município de Amargosa, foram fósseis muito bem conservados de pequenos animais marinhos, como peixes (a maioria deles com até 3 centímetros), camarões e outros crustáceos. O material encontrado, no entanto, abriu uma fresta para espiar como era o Brasil no período do Cretáceo (última fase da Era Mesozoica), cerca de 120 milhões de anos atrás.

Quando os continentes eram apenas dois – Gondwana, ao sul, e Laurásia, ao norte –, havia um mar entre eles chamado Tétis, nomeado em homenagem à figura da ninfa do mar na mitologia grega. Parte do material encontrado no interior baiano é de espécies que podem ter habitado as águas daquele mar antigo. Foram coletadas 138 amostras contendo 919 espécimes de fósseis, incluindo 483 de crustáceos spinicaudados (conhecidos como conchostráceos), que se parecem com pequenos camarões com concha, 140 de peixes, 34 camarões, 9 plantas e 253 restos de alimentação regurgitados fossilizados. Ao contrário de fósseis de grandes animais, que ficam mais visíveis, os de Amargosa foram encontrados compactados como se fossem pinturas em rochas, em uma camada sedimentar que foi batizada de Camada Amargosa, em homenagem à vila próxima ao município de Euclides da Cunha. Em julho deste ano, a equipe publicou um artigo na revista científica Cretaceous Research com algumas respostas sobre o processo de fossilização daqueles pequenos animais.

Cibele Gasparelo Voltani / UnespVista ventral de camarão, com pouco mais de 1 centímetro de comprimentoCibele Gasparelo Voltani / Unesp

O local explorado pela equipe é conhecido por paleontólogos e pesquisadores de áreas correlatas desde os anos 1930. Recentemente, a região foi classificada como um sítio com preservação excepcional de fósseis, um Lagerstatt, termo alemão aplicado a essa particularidade. “Boas condições de preservação são associadas a ambientes calmos, onde não tem agitação nem correnteza constante de água de forma intensa”, afirma Thomas Rich Fairchild, geólogo e colaborador sênior do Instituto de Geociências da USP, que não assina o artigo. Já tinham sido encontrados peixes e camarões por ali, mas, dessa vez, a quantidade de amostras e de espécies era muito maior e em excelente estado de conservação, o que ajudou a entender as condições ambientais em que os organismos viveram – e, principalmente, como morreram.

Nem sempre as águas ao redor de Amargosa foram calmas. Há mais de 100 milhões anos, a América do Sul estava no início do processo de separação do continente africano, o que formou entre os dois continentes um golfo que foi ficando cada vez mais largo em direção ao sul. O que unia os dois blocos continentais era a ponta de onde hoje é o estado de Pernambuco. Ao norte, avançava o oceano Atlântico, cujas águas se misturavam com as de Tétis. Variações no nível do mar durante o Cretáceo teriam gerado invasões marinhas no interior do nordeste brasileiro, levando consigo organismos “tetianos” ao longo do caminho por onde passava um grande rio, um ancestral do atual rio São Francisco.

Cibele Gasparelo Voltani / UnespAlimentos regurgitados também são preservados no registro fóssilCibele Gasparelo Voltani / Unesp

“Esse rio provavelmente vinha mais do interior do continente fazendo um caminho que pode ter sido parecido com o do atual São Francisco”, diz o geólogo Bernardo Tavares de Freitas, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que ajudou a definir e nomear a camada Amargosa, onde os fósseis do Cretáceo foram encontrados. “Nosso grupo de pesquisa infere que, durante as subidas do nível do mar no Cretáceo, as águas tetianas vindas do norte teriam passado pelo estreito entre a América do Sul e a África, próximo do atual Pernambuco, e adentrado para o interior do nordeste pelo vale de um grande rio que fluía da bacia do Araripe pelas bacias do Tucano e do Recôncavo até desembocar no tal golfo proto-Atlântico”, explica.

A geografia da região teria afetado os organismos que ali viviam. “Provavelmente os peixes e camarões morreram por causa de algum choque de alcalinidade e salinidade”, conta a bióloga Cibele Gasparelo Voltani, especialista em peixes, pesquisadora do Instituto de Geociências da USP e primeira autora do artigo da Cretaceous Research. A equipe conseguiu identificar a causa mortis graças ao formato dos fósseis: quando morrem por alterações de salinidade e pH, os peixes sofrem uma torção, afundam mais rápido e tendem a ter estruturas ósseas mais preservadas. No caso dos camarões, a disposição das carapaças em formato da letra C indica alterações químicas da água, explica Voltani. As mudanças na água, segundo ela, podem ter sido causadas por variações sazonais na interface entre águas mais doces e mais salgadas.

Cibele Gasparelo Voltani / UnespUm conchostráceo (seta vermelha) e um ostracode (seta preta): integrantes da diminuta faunaCibele Gasparelo Voltani / Unesp

Apesar de a amostra de fósseis vegetais ter sido pequena, as evidências apontam para uma paisagem de clima árido e semiárido dominado por plantas das famílias dos cactos e suculentas, as xerófitas. “Não seria absurdo interpretar que aquele ambiente seria parecido com o do atual rio Nilo, que vem de uma área úmida, mas atravessa uma grande área seca”, sugere Freitas. “O que aconteceu foi como se o mar Mediterrâneo tivesse subido e afogasse o Nilo por algumas centenas de quilômetros e a química da água fosse alterada.”

Outro detalhe que indica a predominância de um clima seco são os conchostráceos. “Eles costumam viver em poças de água efêmeras e produzem, antes do ressecamento, ovos que resistem anos sem chuva”, afirma a geóloga Rosemarie Rohn, do campus de Rio Claro da Universidade Estadual Paulista (Unesp), especialista nesses animais que avaliou as amostras de Amargosa e colaborou com o artigo coordenado por Voltani.

No trabalho recém-publicado, os 13 autores abordaram o processo de fossilização desses organismos de forma integrada. É a primeira vez, de acordo com Fairchild, que fósseis brasileiros desse tipo são analisados de modo tão interdisciplinar para entender o ambiente em que a fossilização aconteceu. A complexidade desse tipo de trabalho justifica o tamanho da equipe responsável pelo estudo, diz ele.

Para identificar os minerais presentes nos fósseis foi preciso utilizar técnicas de absorção de raios X que permitissem ampliar as pequenas amostras para enxergar detalhes dos organismos. A equipe utilizou a infraestrutura do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron, do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (LNLS-CNPEM), em Campinas.

Luiz Eduardo Anelli / USPNa escavação que começou como uma busca por fósseis de dinossauros, apareceu uma profusão de pequenos organismosLuiz Eduardo Anelli / USP

Com esse maquinário foi possível obter imagens detalhadas que permitiram a identificação dos elementos químicos dos fósseis. “É preciso uma fonte luminosa muito intensa para medir os sinais dos elementos químicos, que são muito fracos por estar em concentrações baixas nas amostras”, explica o astrobiólogo Douglas Galante, do LNLS e associado ao Núcleo de Pesquisa em Astrobiologia da USP.

“É algo que não dá para ser feito com um microscópio eletrônico convencional”, afirma Galante. Os mapas químicos e imagens dos elementos permitem aos pesquisadores interpretar o passado dos fósseis e saber tanto a composição química original quanto as alterações que sofreram ao longo do tempo.

As análises também podem apontar tendências futuras. “Vai ser interessante ver como essas ideias sobre o passado casarão com estudos recentes sobre o papel do fornecimento de água na formação do sal que recobre o petróleo na bacia de Santos e em outros lugares”, avalia Fairchild. “A hipótese apresentada por esses pesquisadores certamente será discutida em outros trabalhos sobre o grande problema que é desvendar a formação dos continentes sul-americano e africano, e da camada pré-sal”, completa.

Artigos científicos
VOLTANI, C. G. et al. Taphonomy of fish, invertebrates and plant remains in the first Tethyan-South Atlantic marine ingression along Cretaceous rift systems in NE-Brazil. Cretaceous Research. On-line. jul. 2023.
SOUZA, T. G. L. et al. High-resolution taphonomy of the Lower Cretaceous “Amargosa Biota”, Central Tucano Sub-Basin, Bahia, Brazil: Implications for the paleoenvironmental dynamics of a new Konservat-Lagerstätte. Palaeogeography, Palaeoclimatology, Palaeoecology. On-line. 15 abr. 2022.

Republicar