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Boas práticas

Grupo propõe diretrizes para pesquisas com DNA antigo

Objetivo é aprimorar padrões éticos de estudos envolvendo material genético de remanescentes humanos

Restos mortais de criança de 10 mil anos encontrados na região de Lagoa Santa

Léo Ramos Chaves

Arqueólogos, antropólogos e geneticistas de 31 países, entre eles o Brasil, publicaram um artigo de perspectiva na quarta-feira (20/10) na revista Nature propondo cinco diretrizes que podem ajudar a aprimorar os padrões éticos de estudos envolvendo material genético de remanescentes humanos – restos mortais preservados, a partir dos quais os cientistas extraem amostras de DNA para análise. Segundo as recomendações, os pesquisadores devem seguir as leis e as regulamentações das regiões nas quais obtiveram os remanescentes, preparar um plano de manejo desses materiais, minimizar os danos causados em ossos humanos durante as análises e tornar disponível os dados de DNA antigo (aDNA) para reavaliação dos resultados pela comunidade científica. As diretrizes também os orientam a envolver outras partes interessadas, como grupos nativos que habitam o local de origem dos remanescentes, respeitando suas perspectivas e incorporando-as, quando possível, à dinâmica de pesquisa.

A discussão sobre ética em pesquisas com aDNA se dá em meio ao rápido aumento do número de publicações com dados de genomas de indivíduos antigos – em 2009 não havia nenhuma e em 2020 eram mais de 6 mil. Um ponto crítico desse debate diz respeito aos contextos histórico e cultural e às diretrizes institucionais e governamentais para se obter permissão para coletar e analisar restos mortais de seres humanos antigos: elas variam amplamente de uma região para outra no mundo. Nos Estados Unidos, as instituições que recebem recursos governamentais e mantêm remanescentes de americanos nativos em seus acervos respondem à Lei de Proteção e Repatriação de Sepulturas de Nativos Americanos, que exige, entre outras coisas, que elas consultem grupos indígenas a respeito do destino dos restos mortais de seus ancestrais.

A legislação norte-americana acabou moldando o modo como se faz ciência com remanescentes de humanos antigos no mundo. “O problema é que nem sempre é possível estabelecer uma conexão clara entre esses materiais e seus descendentes que existem atualmente”, informa a arqueóloga Mercedes Okumura, do Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP), uma das autoras do documento. “Imagine um pesquisador que esteja trabalhando com remanescentes de indivíduos antigos encontrados na Inglaterra. Quem são os povos nativos que ele deveria consultar nesse sentido?”, destaca a pesquisadora. Ao mesmo tempo, muitos cientistas deixam de cumprir regulamentações específicas em países que exigem o consentimento de grupos locais para a realização de projetos envolvendo sua herança cultural. “As diretrizes que propomos podem parecer genéricas ou óbvias, mas as elaboramos assim justamente para que possam ser aplicadas nesses e em outros contextos de pesquisa”, esclarece.

As cinco recomendações foram elaboradas durante encontros virtuais promovidos nos dias 4 e 5 de novembro de 2020. Em geral, elas foram bem recebidas pela comunidade científica. “São diretrizes legítimas, que abordam as necessidades de pesquisadores de diversos países que trabalham visando avançar o conhecimento sobre evolução humana sem ultrapassar barreiras éticas”, destaca o biólogo Celso Teixeira Mendes Junior, do Departamento de Química da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da USP. “De modo geral, elas podem ajudar a coibir o uso antiético de espécimes de localidades economicamente desprivilegiadas por pesquisadores estrangeiros e a proteger o patrimônio genético dessas comunidades.” E ele acrescenta: “Penso que haverá um esforço coletivo de pesquisadores e editores de periódicos científicos para que novos artigos nessa área se baseiem em pesquisas que tenham seguido tais diretrizes”.

O documento também desencadeou debates. Um deles envolve a orientação para que os pesquisadores disponibilizem os dados de DNA antigo após a publicação de seus resultados, de modo que outros colegas possam fazer reanálises críticas dos achados. Essa diretriz se enquadra no conceito de ciência aberta, movimento que estimula o compartilhamento de dados e a pesquisa cooperativa e em rede. Mas alguns pesquisadores temem que as comunidades relacionadas percam a oportunidade de determinar como os dados serão usados se quaisquer cientistas tiverem acesso ao material genético de seus ancestrais.

Léo Ramos Chaves Dentes obtidos de remanescentes de humanos antigosLéo Ramos Chaves

O geneticista Eduardo Tarazona, do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que estuda a ancestralidade dos brasileiros, reconhece a importância de padronizar algumas orientações para garantir mais ética em pesquisas com aDNA. Contudo, ele também faz críticas ao documento. “Ele foi elaborado por cientistas majoritariamente vinculados a instituições de pesquisa de países desenvolvidos, que estão dizendo como os colegas do resto do mundo devem estudar o material genético de remanescentes antigos”, comenta.

Ele ressalta que, dos mais de 60 autores que assinam o artigo de perspectiva, apenas dois são de instituições da África e seis da América Latina. “O documento reflete um fenômeno recente, no qual cientistas de países desenvolvidos se mostram preocupados com a ética em pesquisas feitas em outras regiões, mas, ao mesmo tempo, reproduzem uma prática de caráter colonialista”, afirma. “Não por acaso as diretrizes são óbvias. A primeira [a que estabelece que os pesquisadores devem seguir as leis e as regulamentações das regiões nas quais obtiveram suas amostras] significa, basicamente, que não se deve roubar materiais de países em desenvolvimento. É realmente necessária uma diretriz para isso?”

A geneticista Tábita Hünemeier, do IB-USP, compartilha dessa visão. “Respeitar as legislações dos países de origem das amostras é o mínimo que se pode esperar, já que não estamos mais no século XVI, saqueando as colônias”, ela diz. Segundo a pesquisadora, a questão é mais complexa. “As leis que regulam a coleta, a análise e o armazenamento de material biológico obtido de indivíduos antigos variam de um país para o outro, sendo que alguns nem sequer dispõem de uma legislação nesse sentido.” Hünemeier explica que a extração de material genético de indivíduos antigos é uma prática recente na ciência. “Seria mais produtivo discutir caminhos para fortalecer as legislações, de modo que elas sejam coerentes com a cultura de cada país e a comunidade universal”, ela destaca.

Na avaliação de Hünemeier, o documento falha ao não discutir em detalhes a posse das informações geradas a partir dessas amostras. “A quem pertenceriam as informações após elas serem armazenadas em bancos de dados? Aos pesquisadores, às instituições as quais eles são filiados ou às comunidades descendentes e populações relacionadas?”

Há casos também de pesquisadores, muitos deles indígenas, que se ressentem de não terem sido convidados para participar dos debates em torno das recomendações. “Os autores falam sobre a importância de envolver grupos locais nos estudos, mas não convidaram pesquisadores indígenas, que escreveram extensivamente sobre ética em pesquisa com DNA antigo, para participar dos debates”, disse a geneticista Nanibaa’ Garrison, da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, em entrevista ao jornal The New York Times. Okumura esclarece que foram convidados para esse primeiro encontro apenas pesquisadores que já colaboravam com o laboratório do geneticista norte-americano David Reich, da Universidade Harvard, um dos principais especialistas em DNA antigo no mundo, que também assina o documento publicado na Nature. “E, alguns deles, têm sim ancestralidade indígena”, ela afirma. A arqueóloga acrescenta ainda que os encontros promovidos em novembro representam apenas um primeiro passo no sentido de reconhecer a diversidade de contextos de pesquisa com aDNA. “Estamos trabalhando em mais dois encontros para que possamos envolver mais pesquisadores e grupos interessados”, completa.

Artigo científico
ALPASLAN ROODENBERG, S. et al. Ethics of DNA research on human remains: Five globally applicable guidelines. Nature. 20 out. 2021.

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