Imprimir Republicar

Guardando a memória e escrevendo a história do Brasil

Em atividade ininterrupta há 184 anos, o Instituto Histórico Geográfico Brasileiro nasceu para pensar o país e sua unidade nacional no pós-Independência

Feito de papel pintado e varetas por volta de 1825, leque comemora o reconhecimento da Independência do Brasil

Acervo pertencente ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro | Foto: Jaime Acioli

Na cerimônia de inauguração do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), em 1838, no Rio de Janeiro, o cônego Januário da Cunha Barbosa (1780-1846) lamentou em discurso que os estudos históricos sobre o Brasil estivessem nas mãos de autores estrangeiros. Segundo o religioso, um dos idealizadores da instituição ao lado do marechal Raimundo da Cunha Mattos (1776-1839), era necessário “purificar” essa produção, repleta de tantas “inexatidões” que deveriam ser “imediatamente corrigidas”, inclusive aquelas acerca dos “modernos fatos de nossa gloriosa Independência”, ocorridos “16 anos atrás”. Meses mais tarde, Eusébio de Queirós (1812-1868), outro integrante da instituição, que seria ministro da Justiça do Império, propôs que a direção da casa convocasse não apenas Barbosa, mas também outros dois sócios do instituto, o jornalista Joaquim Gonçalves Ledo (1781-1847) e o político José Clemente Pereira (1787-1854), para formarem uma comissão que se debruçaria sobre o processo de Independência do Brasil. Entretanto, o trio jamais se reuniu com tal propósito.

Acervo pertencente ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro | Foto: Jaime AcioliBusto de Minerva, escultura em bronze de Auguste Marie Taunay (1768-1824), que participou da Missão Artística Francesa de 1816Acervo pertencente ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro | Foto: Jaime Acioli

“O absenteísmo desses três ativos participantes das jornadas de 1822 é compreensível. Como existiram vários projetos de Independência do Brasil, que geraram muitos conflitos entre os participantes do processo, a comissão precisaria lidar com assuntos espinhosos tanto para os sócios do IHGB quanto para o governo imperial”, diz a historiadora Lucia Maria Paschoal Guimarães, professora aposentada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). “Em 1838, quando o regime monárquico e a unidade do Brasil não estavam plenamente consolidados, parecia mais prudente não revolver fatos do passado recente que pudessem tumultuar ainda mais aquele cenário político”, prossegue Guimarães, atual primeira secretária da instituição.

Escrever a história do Brasil era uma das metas do IHGB. Para tanto, os sócios se propunham a reunir, publicar ou arquivar documentos relacionados à trajetória da Colônia que se transformara em Império. Outro objetivo era promover a abertura de filiais por todas as províncias do território, o que logo começou a acontecer (ver Pesquisa FAPESP nº 219), bem como manter intercâmbio científico com associações estrangeiras similares. “O IHGB nasceu para ajudar a construir a identidade nacional e a consolidar entre nós o perfil do Estado-nação, tendência ideológica predominante no mundo após a Revolução Francesa [1789-1799]”, conta o historiador Arno Wehling, professor aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que presidiu a instituição entre 1995 e 2019.

Instituto Histórico de Paris, fundado em 1834, inspirou a criação do IHGB. “A relação dos 27 fundadores mescla três gerações de homens públicos, cujo denominador comum era a proximidade com o Império”, diz Guimarães, autora do livro Debaixo da imediata proteção imperial. Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838-1889) (Annablume, 2011), resultado da tese de doutorado que defendeu na Universidade de São Paulo (USP). Era o caso do próprio cônego Barbosa, primeiro secretário do IHGB. “Ele foi o primeiro pregador real, função religiosa também conhecida como sermonista, ainda na época de dom João VI [1767-1826]. Com Gonçalves Ledo, esteve à frente do jornal Revérbero Constitucional Fluminense [1821-1822], que defendia ideias liberais e a permanência da monarquia”, conta Wehling, autor de livros como De formigas, aranhas e abelhas – Reflexões sobre o IHGB, editado pela própria instituição em 2016.

Cânone literário
Em 1840, com a declaração de sua maioridade, dom Pedro II (1825-1891) ordenou que a sede do instituto fosse transferida do Museu Nacional para o Paço Imperial, onde ficou até 1849, quando então se mudou para o edifício vizinho, o Convento do Carmo. “Dom Pedro II foi patrono do IHGB por 50 anos, até ser deposto do cargo de imperador em 15 de novembro de 1889. Ele presidiu 506 sessões e, entre outras coisas, financiou as atividades do instituto, o que incluía viagens dos sócios ao exterior em busca de documentos relativos ao Brasil”, relata Wehling.

Acervo pertencente ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro | Foto: Jaime AcioliPartitura original do Hino da Independência, composto em 1823 por D. Pedro IAcervo pertencente ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro | Foto: Jaime Acioli

A produção dos sócios nos primórdios do IHGB sinalizou o surgimento de uma nova especialidade intelectual no Brasil: a figura do historiador que organiza a narrativa do passado valendo-se de metodologia. “O IHGB é um marco da institucionalização da pesquisa e da escrita da história no Brasil. Os sócios se propunham a fazer ciência, mas em nenhum momento essa preocupação deixava de ter uma dimensão política. Era a história oficial escrita por quem estava no poder”, observa a historiadora Maria da Gloria de Oliveira, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).

A Revista IHGB, criada em 1839, era o escoadouro dessa produção. “É uma das publicações mais antigas em circulação no mundo”, diz a historiadora Lucia Maria Bastos Pereira das Neves, da Uerj, e editora do periódico entre 2017 e 2021. A pauta era diversa: trazia artigos sobre o território nacional, acidentes geográficos, relações internacionais, entre outros assuntos. “Alguns desses artigos eram assinados por escritores do romantismo, como Gonçalves Dias [1823-1864], membro do IHGB. Embora o viés fosse político, histórico e geográfico, a publicação também contribuiu para a historiografia literária”, constata Ana Beatriz Demarchi Barel, da Universidade Estadual de Goiás (UEG).

Durante pesquisa de pós-doutorado na Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB), a especialista em literatura brasileira analisou, entre as décadas de 1830 e 1850, dois periódicos: o do IHGB e Nitheroy: Revista Brasiliense, lançada em 1836. Depois de um seminário internacional na FCRB, em 2014, o estudo resultou no livro Cultura e poder entre o Império e a República – Estudos sobre os imaginários brasileiros (1822-1930) (Alameda, 2018). “Para salvaguardar a memória literária do Brasil, a Revista IHGB estabeleceu um cânone literário ao definir uma lista de autores que incluía Gregório de Matos [1636-1696], padre Antônio Vieira [1608-1697] e Claudio Manuel da Costa [1729-1789]”, explica.

Acervo pertencente ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro | Foto: Jaime AcioliObras de arte integram o acervo que o IHGB vem amealhando desde o século XIX. É o caso do Retrato de Ana de Sá Barbosa, baronesa de Ribeirão, com uma das filhas (1860), óleo sobre tela do pintor alemão radicado no Brasil Emil Bauch (1823-1874)Acervo pertencente ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro | Foto: Jaime Acioli

Isso acontecia por meio da seção “Biographia dos brasileiros distinctos por letras, armas, virtudes, etc”. “A primeira geração de sócios incorporou a biografia ao projeto de escrita da história nacional: até 1899 podem ser contabilizados 154 trabalhos sob a rubrica de biografia ou de apontamentos biográficos na revista”, informa Oliveira, da UFRRJ. “O objetivo era compor um grande mosaico de figuras representativas da nação por meio de textos laudatórios. A grande maioria dessas personagens é do período colonial, pois os sócios tinham como princípio metodológico escrever com distanciamento histórico, mas também não queriam correr o risco de retratar figuras contemporâneas que pudessem desagradar ao Império.”

O olhar idealizado de autores românticos sobre a questão indígena, presente em obras como O guarani (1851), de José de Alencar (1829-1877), reverberava em estudos com ambição científica do IHGB, como aponta a historiadora da ciência Kaori Kodama, da Casa de Oswaldo Cruz da Fundação Oswaldo Cruz (COC-Fiocruz). “Os povos indígenas eram vistos como emblemas nacionais, um equivalente ao passado greco-romano para as nações europeias, muito embora seu extermínio tivesse como causa a própria colonização”, diz Kodama, autora de Os índios no Império do Brasil: A etnografia do IHGB entre as décadas de 1840 e 1860 (Fiocruz e Edusp, 2009), resultado de sua tese de doutorado, defendida na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). “Mas era uma visão ambígua, que entendia essas etnias em determinados momentos como pacíficas e extintas e em outros como selvagens que precisavam ser aldeadas e catequizadas. Havia também a crença de que os indígenas deveriam ser incorporados à ‘civilização’ e assim desapareceriam para formar a grande nação brasileira.”

O conteúdo, de maneira geral, não podia escapar de controle. “Em vez de uma junta de censores, como acontecia nas academias de letrados, existiam comissões no IHGB”, observa a historiadora Isadora Tavares Maleval, da Universidade Federal Fluminense (UFF). Em 1847 um dos sócios, Francisco Freire Allemão e Cysneiro (1797-1874), médico de dom Pedro II, propôs que a entidade criasse uma espécie de arca do sigilo. “O objetivo era fazer um depósito temporário para escritos que pudessem comprometer a tranquilidade do Império, mas a coisa não foi adiante”, diz Maleval, autora de tese sobre o tema, defendida na Uerj em 2015. “Esse objeto em si nunca existiu, porém o projeto de criar uma arca voltaria um pouco mais tarde, no final do século XIX, durante a República, para resguardar a integridade do IHGB, visto como entidade monarquista. Mas, de novo, a ideia não vingou, pelo menos não enquanto um cofre-forte. De qualquer forma, o instituto não destruía esse material; deixava guardado de maneira reservada para os historiadores do futuro.”

Acervo incontornável
Esses documentos podem ser encontrados hoje no IHGB que, ao longo do tempo, amealhou um acervo com milhares de itens distribuídos entre obras de arte, livros e impressos, documentos manuscritos, cartografia, fotografia, entre outros gêneros. No museu, com cerca de 7 mil peças, está um crânio pré-histórico, encontrado em Lagoa Santa (MG) durante explorações em cavernas realizadas entre 1835 e 1845 pelo naturalista dinamarquês Peter Lund (1801-1880), que se tornou sócio honorário do IHGB em 1839. No caso da biblioteca, com cerca de 70 mil títulos, o grande doador foi dom Pedro II. No exílio ele destinou à instituição parte de sua biblioteca pessoal, que foi batizada de Teresa Cristina, mulher do monarca. Antes dessa doação, ele adquiriu para o IHGB a biblioteca americana com mais de 400 volumes do naturalista alemão Karl Friedrich Philipp von Martius (1794-1868), também sócio do instituto. Além disso, o arquivo da instituição reúne documentos históricos significativos. “É um acervo rico, variado e incontornável para quem faz pesquisa histórica”, comenta Lucia Bastos, sócia titular do IHGB desde 2018. “Há panfletos políticos da época da Independência que só se encontram no acervo do IHGB, bem como documentos sobre o tráfico de escravizados entre Angola e Brasil”, exemplifica.

Acervo pertencente ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro | Foto: Jaime AcioliDentre os cerca de sete mil itens do museu do IHGB está um crânio pré-histórico encontrado em Lagoa Santa (MG), no século XIX, pelo naturalista dinamarquês Peter Lund (1801-1880), sócio da instituição​Acervo pertencente ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro | Foto: Jaime Acioli

Embora o IHGB seja uma instituição particular, seu acervo pode ser consultado de forma gratuita. Como apenas 5% está digitalizado, as consultas costumam ser presenciais. Entretanto, em virtude da pandemia de Covid-19, há mais de dois anos as visitas estão suspensas. A pandemia também contribuiu para agravar a saúde financeira da instituição, que vinha enfrentando dificuldades de caixa desde 2019. “O IHGB vive praticamente de seu patrimônio imobiliário”, diz o historiador Paulo Knauss, professor da UFF e vice-presidente do instituto, referindo-se à atual sede da instituição, um prédio de 12 andares situado no centro carioca, cuja construção se arrastou entre as décadas de 1950 e 1970. Inaugurado em 1972, o edifício foi finalizado graças a empréstimo da Caixa Econômica Federal, obtido com apoio do general Emílio Garrastazu Médici (1905-1985), terceiro presidente da ditadura militar (1964-1985). Desde então, o IHGB ocupa quatro pavimentos e aluga o restante. “Com a operação Lava-Jato e a crise da Petrobrás, perdemos inquilinos. Depois veio a pandemia que esvaziou os escritórios com o home-office. Sem contar a degradação do centro do Rio, que vem se aprofundando nos últimos anos, e o atual desmantelamento da política cultural, que penaliza instituições como a nossa”, conta Knauss.

No momento, o IHGB conta com  a contribuição regular dos sócios para complementar os custos de manutenção do prédio e para pagar os salários de 12 funcionários – antes da pandemia eram  cerca de 20. A última edição da revista, prevista para o início deste ano, ainda não foi publicada. Segundo o atual editor, Gustavo Siqueira, coordenador do programa de pós-graduação da Faculdade de Direito da Uerj, o atraso se deve à implementação do Open Journal System (OJS), novo sistema de gestão on-line da publicação – todas as 487 edições anteriores estão disponíveis no site do IHGB. Em 2020 um crowdfunding organizado pela então editora Lucia Bastos conseguiu levantar R$ 25 mil. Foram esses recursos que custearam as edições daquele ano e do seguinte. “A grande maioria que colaborou não era sócia do IHGB”, recorda Bastos.

Não se trata da primeira crise financeira sofrida pela instituição, em atividade ininterrupta há 184 anos. O IHGB foi muito afetado, em seus cofres e prestígio, pelo fim da monarquia, analisa a historiadora Angela de Castro Gomes no livro A República, a história e o IHGB (Fino Traço, 2009). Embora “integrado por muitas personalidades francamente críticas à República, quando não ‘monarquistas’ militantes, o IHGB entendeu, com alguma rapidez, que precisaria se adaptar a esse novo tempo, partindo para uma recomposição, tanto organizacional quanto acadêmica de sua prática e de seu discurso”, escreve a historiadora. Esse processo de recuperação ganhou fôlego entre 1907 e 1912 quando José Maria da Silva Paranhos, o Barão do Rio Branco (1845-1912), então ministro das Relações Exteriores, presidiu a instituição.

Mudança de perfil
Nas últimas três décadas o perfil dos sócios do IHGB vem mudando graças a uma progressiva aproximação com a academia. “Não era uma relação pacífica. O surgimento no Brasil de cursos universitários de história a partir da década de 1930, com a USP, e, mais tarde, na década de 1970, com os cursos de pós-graduação, tiraram o protagonismo do IHGB”, diz Wehling. Hoje, de acordo com Guimarães, a maioria dos sócios é de historiadores ligados às universidades públicas. “Mas o IHGB está aberto para outras vertentes do conhecimento”, afirma. Há também, diz, diplomatas, engenheiros, médicos, militares e advogados, caso de Nei Lopes, pesquisador da cultura afro-brasileira (ver Pesquisa FAPESP n° 275). Essa mudança de perfil reflete-se na Revista IHGB, cuja periodicidade é trimestral. “Ao contrário do que acontecia no passado, hoje a revista publica, a cada edição, apenas dois artigos de sócios, previamente submetidos à análise de pares. Os pesquisadores precisam ser doutores, embora sejam aceitos textos de mestrandos, desde que assinados com o orientador”, conta Lucia Bastos. O que não muda é a forma de ingressar no IHGB: com apresentação de candidatura e eleição pela assembleia de sócios titulares, como acontece na Academia Brasileira de Letras. “Mas, se antes era preciso ser amigo de dom Pedro II, hoje o critério é muito mais acadêmico”, afirma Guimarães.

Republicar