Após três anos de trabalho, o Instituto Butantan anunciou, em 23 de agosto, a interrupção dos ensaios clínicos e do desenvolvimento da ButanVac, a candidata a vacina contra a Covid-19 produzida pela instituição. A decisão foi tomada com base nos resultados dos testes de fase 2, feitos com 400 pessoas. Nesse estágio, a segurança e a capacidade de gerar resposta imune da ButanVac foram comparadas às da vacina da Pfizer, disponível no Sistema Único de Saúde (SUS). O candidato a imunizante do Butantan seria usado como dose de reforço e não se saiu como o esperado.
“Antes de os testes iniciarem, ficou estabelecido que haveria uma análise para avaliar se a imunidade produzida pela ButanVac não era inferior à gerada pela vacina comparadora”, conta o infectologista e imunologista Esper Kallás, diretor do Instituto Butantan. “Do ponto de vista de segurança, não houve problema. A tolerabilidade à ButanVac e os eventos colaterais associados a ela foram semelhantes aos provocados pelo imunizante da Pfizer, mas os resultados de imunogenicidade ficaram abaixo dos da vacina usada na comparação”, explica.
Iniciado em 2021, no auge da pandemia, o desenvolvimento da ButanVac fez parte de um projeto de cooperação internacional que adotava uma tecnologia criada pela Escola Icahn de Medicina, parte da rede de hospitais Mount Sinai, de Nova York, nos Estados Unidos. Nela, uma versão inativada do vírus da doença de Newcastle – que gera problemas respiratórios em aves – é geneticamente alterada para incorporar o gene da proteína spike do Sars-CoV-2, causador da Covid-19. Essa proteína permite ao vírus Sars-CoV-2 se ligar aos receptores de superfície das células humanas e invadi-las (ver Pesquisa FAPESP nº 302).
A vacina, chamada genericamente de NDV-HXP-S, foi concebida para ter baixo custo de produção e ser fabricada por países em desenvolvimento na linha de produção das vacinas contra a gripe (influenza) em plataformas de ovos embrionados. Na pandemia, várias nações entraram na corrida pela produção de um imunizante contra a doença. Apenas cinco vacinas – as fabricadas por AstraZeneca, Pfizer/BioNTech, Sinovac, Moderna e Sinopharm – foram produzidas, aprovadas por autoridades sanitárias e distribuídas a tempo de frear as mortes.
Analisando o desempenho de 32 imunizantes desenvolvidos na pandemia, o engenheiro químico Michael L. King, da Universidade da Virgínia, nos Estados Unidos, concluiu que os cinco bem-sucedidos haviam sido produzidos por empresas farmacêuticas que tiveram a habilidade de desenvolver os imunizantes e escalar a produção rapidamente. “Os fatores críticos de sucesso incluem experiência anterior com comercialização e aprovação, sistemas de qualidade robustos, estratégias rigorosas de desenvolvimento de processos, instalações de fabricação flexíveis com força de trabalho qualificada, colaboração, acesso a consumíveis, reagentes e adjuvantes e uma distribuição equitativa da rede global de fabricação de vacinas”, escreveu em um artigo publicado em fevereiro na revista Vaccine.
Essas cinco vacinas, no entanto, demandam uma produção com fábricas e ingredientes especializados e custos elevados de importação. Por esses motivos, alguns países em desenvolvimento decidiram apostar na tecnologia da NDV-HXP-S, que poderia ser armazenada em sistemas convencionais de refrigeração (ver Pesquisa FAPESP nº 303).
Por meio do consórcio internacional, o Mount Sinai repassou a tecnologia de vetor viral sem cobrar royalties dos centros de pesquisa no Brasil, na Tailândia, no Vietnã e no México. Para ser aprovada para uso, a vacina precisaria passar por três fases de ensaios clínicos: a primeira para avaliar a segurança, a segunda para medir a capacidade de geração de resposta imune (imunogenicidade) e a terceira para verificar a eficácia – capacidade de evitar a infecção ou impedir o adoecimento.
Os resultados da fase 1 da ButanVac, com 318 participantes, foram promissores. Mostraram que ela era bem tolerada, segura e, na dose mais alta, induzia uma resposta imune importante. Na fase seguinte, 400 voluntários foram alocados aleatoriamente em dois grupos: uma metade recebeu a ButanVac e a outra a vacina da Pfizer. O estudo contava com um critério de análise preestabelecido: a candidata a vacina do Butantan não poderia ter capacidade inferior à da Pfizer de gerar imunidade. Nesse quesito, a ButanVac falhou.
Apesar da decisão brasileira de interromper os ensaios clínicos, os demais países que usam a tecnologia do Mount Sinai seguem com o desenvolvimento de seus imunizantes. As versões produzidas na Tailândia e no México já receberam autorização para uso emergencial. Na Tailândia, onde a vacina foi chamada de HXP-GPOVac, a Organização Farmacêutica Governamental autorizou seu uso emergencial como dose de reforço em setembro de 2023 para adultos.
Em 6 de junho deste ano, a Comissão Federal de Proteção Contra Riscos Sanitários do México acompanhou a decisão tailandesa e concedeu autorização para uso emergencial da versão mexicana da vacina, batizada de Patria. Dados do ensaio clínico de fase 2/3, realizado com 4.056 voluntários, indicaram que a imunogenicidade da Patria não foi inferior à do imunizante da AstraZeneca, segundo artigo disponibilizado em fevereiro deste ano na plataforma de preprints medRxiv. A vacina da AstraZeneca usa tecnologia distinta da Pfizer e é um pouco menos eficaz para prevenir casos sintomáticos. No Vietnã, os resultados apresentados em um paper depositado no medRxiv, referente aos testes de fase 2 – que também usou a AstraZeneca como comparativo –, foram similares aos dos mexicanos.
A suspensão dos testes com a ButanVac, no entanto, não representa o fim da busca do Butantan por uma vacina brasileira. “Antes mesmo desse resultado, o Butantan já trabalhava com a possibilidade de usar novas plataformas para desenvolver uma vacina contra a Covid-19”, conta Kallás. Em 2023, a instituição firmou um acordo com o Ministério da Saúde e receberá R$ 72 milhões para construir uma fábrica para a produção de vacinas de mRNA. Atualmente, o instituto analisa qual linha de desenvolvimento tecnológico será adotada para a produção desse imunizante.
A reportagem acima foi publicada com o título “Adeus à ButanVac” na edição impressa nº 344, de outubro de 2024.
Artigos científicos
KING, M. L. How manufacturing won or lost the Covid-19 vaccine race. Vaccine. 15 fev. 2024.
LÓPEZ-MACÍAS, C. et al. Phase II/III double-blind study evaluating safety and immunogenicity of a single intramuscular booster dose of the recombinant Sars-CoV-2 vaccine “Patria” (AVX/Covid-12) using an active Newcastle disease viral vector (NDV) during the omicron outbreak in healthy adults with elevated baseline antibody titers from prior Covid-19 and/or Sars-CoV-2 vaccination. medRxiv. 14 fev. 2024.
THIEM, V. D. et al. Safety and immunogenicity of an inactivated recombinant Newcastle disease virus vaccine expressing Sars-CoV-2 spike: A randomised, comparator-controlled, phase 2 trial. medRxiv. 1º dez. 2023.