Demonstrar que o tráfico transatlântico era controlado por mercadores residentes no Brasil e analisar o protagonismo escravo na formação de suas próprias famílias foram algumas das principais contribuições dos estudos desenvolvidos por Manolo Garcia Florentino, professor aposentado do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ele morreu aos 63 anos na sexta-feira (12/03), no Rio de Janeiro, após uma parada cardiorrespiratória. Deixou a esposa, Cacilda Machado, também professora aposentada da UFRJ, e a filha, Maria.
Nascido no Espírito Santo, em 1958, Florentino graduou-se em história pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e fez mestrado em estudos africanos no Colégio de México (Colmex), em 1985. Defendeu o doutorado em história na UFF, em 1991, sob orientação de Ciro Flamarion Cardoso (1942-2013). Em 1988, passou a integrar o então Departamento de História da UFRJ, hoje Instituto de História, no qual se aposentou, em 2019. Recebeu a Comenda da Ordem Nacional do Mérito Científico, em 2009, e foi presidente da Fundação Casa de Rui Barbosa de 2013 a 2015.
“Florentino, seus alunos e colegas forneceram uma compreensão fundamental da escravidão e do tráfico interno de escravos no Rio de Janeiro”, afirmou por e-mail a Pesquisa FAPESP o historiador norte-americano Herbert S. Klein, das universidades Columbia e Stanford, nos Estados Unidos. Segundo Klein, estudioso da escravidão na América Latina e no Caribe, seu esforço mais importante foi explorar os arquivos locais para mostrar como o sistema funcionava. “Junto com as novas escolas de pesquisa histórica desenvolvidas na Bahia, no Rio Grande do Sul e em São Paulo, esse esforço fez com que o Brasil se tornasse o principal centro do mundo na história da escravidão americana.”
A historiadora Hebe Mattos, da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), concorda com Klein ao defender que a contribuição intelectual de Florentino impactou o saber historiográfico muito além das fronteiras brasileiras. Segundo ela, seu primeiro livro, Em costas negras ‒ Uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX) ‒ Arquivo Nacional, 1993, resultado de sua tese de doutorado, trouxe análises pioneiras do tráfico escravista bilateral Brasil-África no Atlântico Sul. “A obra reivindicou a importância do conhecimento sobre a história da África para os estudos sobre o comércio de cativos e a experiência dos africanos escravizados nas Américas”, diz. De acordo com Mattos, o livro “modificou o solo empírico e conceitual” das abordagens sobre os sentidos econômicos do tráfico de escravizados no Atlântico.
João Luís Ribeiro Fragoso, historiador da UFRJ, lembra que Florentino desempenhou papel central na revisão da historiografia brasileira ao sustentar, em seus trabalhos, que a economia do país não se resumia à agroexportação para metrópoles europeias. “Em costas negras demonstra que o tráfico de escravos entre o final do século XVIII e o começo do XIX era controlado por uma comunidade de mercadores residentes no Rio de Janeiro. Isso significa que a economia do Brasil, mesmo sob a tutela de Portugal, não dependia exclusivamente das relações com esse país”, explica. A obra mostra que a permanência da escravidão no Brasil – que Florentino chama de “comércio de almas” – não deve ser atribuída unicamente aos interesses do capital europeu situado no mercado internacional. “Até os anos 1980, fomos descritos nessa chave da dependência e obediência às chamadas, na época, economias centrais no comércio atlântico. Florentino recoloca o país no cenário internacional ao chamar a atenção à responsabilidade do país no prolongamento da escravidão”, destaca. Ele avalia que seus trabalhos são fruto da profissionalização do ofício de historiador. “A trajetória de Florentino simboliza o esforço de toda uma geração que começou a refazer a historiografia brasileira”, enfatiza.
O historiador José Inaldo Chaves Junior, da Universidade de Brasília (UnB), explica que Em costas negras analisou a criação, no Brasil, de uma sociedade intensamente dependente da reprodução social do cativo na África, ao mesmo tempo que apontou o domínio exercido pelos traficantes de escravos do Rio sobre a operação desse comércio atlântico. “Florentino mostrou como esse domínio tinha sólidas ramificações nas economias e engenharias políticas e sociais da África e da América lusa, onde, além de constituírem patrimônios, influenciaram os rumos dos governos locais”, esclarece Chaves Junior.
Com Fragoso, Florentino publicou O Arcaísmo como projeto (Editora Diadorim, 1993), que mudou a maneira de se conceber a relação entre mercado atlântico, sociedade agrária e elite mercantil. Essa obra dialoga e contesta visões do historiador Caio Prado Júnior (1907-1990) e do economista Celso Furtado (1920-2004) de que o Brasil Colônia seria inteiramente dependente da metrópole portuguesa e sem mercado interno. O historiador Antonio Carlos Jucá de Sampaio, da UFRJ, que foi aluno de Florentino na pós-graduação, comenta que o livro faz críticas à ideia de que a economia brasileira dependia totalmente da Europa. “Os traficantes locais conseguiam manter a economia agrícola do país pujante, ao investir o dinheiro obtido com o negócio de escravos na produção de café e açúcar”, diz. “Florentino e Fragoso mostram que esses mercadores ganhavam dinheiro como comerciantes, mas preferiam se tornar fazendeiros para obter status na sociedade”, complementa.
Florentino foi um dos primeiros a realizar pesquisas sobre famílias escravas, estudos que resultaram na publicação de A paz das senzalas (Editora Civilização Brasileira, 1997), escrito com José Roberto Góes, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). O trabalho descreve os escravos como protagonistas no processo de formação de suas próprias famílias, mostrando como eles regiam a situações do cotidiano, em busca de condições melhores de vida. O historiador Roberto Guedes, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), esclarece que Paz das senzalas se distingue das ideias do historiador Robert Wayne Andrew Slenes, professor aposentado da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Slenes vê a família escrava como potencial organização à resistência, enquanto Florentino a enxergava como meio de obter construção de paz e estabilidade”, compara Guedes. De acordo com o pesquisador da UFRRJ, por meio dessa premissa, o livro traz hipóteses para explicar por que o Brasil não vivenciou uma explosão massiva de rebeliões escravas, que pudessem causar rupturas políticas e sociais.
Nesse sentido, Chaves Junior, da UnB, comenta que o livro tratou de aspectos pouco conhecidos da vida dos escravizados, detalhando informações sobre relações familiares, negociações e conflitos existentes entre cativos, com senhores e autoridades. “Na obra, analisando a escravidão no Rio, Góes e Florentino defenderam que o parentesco e a formação de comunidades escravizadas são o elemento-chave à reprodução social da escravidão atlântica. Tal processo interessava diretamente aos senhores, que, ávidos por homens pacificados, tendiam a estimular uniões e composições familiares”, detalha. Florentino também foi um dos criadores do banco de dados Slave Voyages, que oferece informações sobre cerca de 35 mil expedições negreiras ocorridas entre 1514 e 1866.
De acordo com Chaves Junior, junto com outros historiadores, Florentino fez parte de uma geração que, trabalhando com ampla documentação, como arquivos paroquiais e eclesiásticos, listagens de navios negreiros, testamentos e inventários, analisou a colonização “por dentro”, buscando os rostos e os nomes de seus principais agentes. “Ele atuou diretamente na consolidação dos estudos africanistas no Brasil, destacando como eles são cruciais à compreensão da própria sociedade brasileira”, analisa. Chaves Junior lembra ainda que, em suas aulas, Florentino era conhecido por seu humor ácido e observação criteriosa. “Sugeria, criticava e estimulava. São qualidades de um grande mestre”, diz, enfatizando que ele também foi um dos responsáveis pela formação das primeiras gerações de africanistas profissionais brasileiros.
“Ao constituir o tráfico de escravizados como objeto de pesquisa, levando em conta as especificidades históricas nas duas margens do atlântico, Florentino abriu uma pauta de investigação que não mais cessou de se desdobrar em novas abordagens e perspectivas, no Brasil, na África e na história global”, afirma Mattos, da UFJF. Ela recorda ainda que o conheceu durante a graduação em história na UFF e mais tarde eles foram colegas de doutorado. “Os encontros acadêmicos que promovemos no início de nossas carreiras, com a participação de nossos primeiros orientandos, foram, para mim, teoricamente fundadores e absolutamente memoráveis. Nas discussões e embates então ocorridos, e nas confraternizações que a elas se seguiram, tornamo-nos amigos, apesar de seu temperamento controvertido e polêmico. Ele era capaz de enorme generosidade e de profundos rancores”, recorda.
Por fim, Guedes, da UFRRJ, conta que na última conversa que teve com Florentino, há cerca de seis meses, ele contou que estava trabalhando em uma pesquisa sobre crianças escravas. Após 1850, com a proibição do tráfico internacional, o pesquisador procurava analisar a reprodução natural como um mecanismo importante para promover a permanência da escravidão no país. “Desde os primórdios da sua trajetória, ele nunca deixou de estudar o que considerava o pecado original da sociedade brasileira, ou seja, a desigualdade social”, conclui.
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