Em julho de 1826, na recém-criada Câmara dos Deputados do Brasil, foi protocolada a petição de um indivíduo de nome Delfino, que afirmava ser um liberto, injustamente preso no Rio de Janeiro, enquanto se desenrolava uma disputa judicial sobre a legalidade de sua alforria. No texto, para resgatar Delfino do calabouço, seus representantes evocavam temas caros àquele período histórico: a liberdade individual, as garantias constitucionais e a presunção de inocência. Depois de uma guerra de agravos, embargos e recursos, o caso chamou a atenção dos parlamentares eleitos.
O episódio é relatado no artigo “Escravo até prove-se o contrário: Petição do liberto Delfino à Câmara dos Deputados (1826)”, das historiadoras Adriana Pereira Campos e Kátia Sausen da Motta, ambas da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Na história de Delfino, é possível ver em filigrana diversos elementos que compunham a Justiça nos primeiros anos do Brasil independente: o uso das petições, o papel do Parlamento, a difícil situação de escravizados e libertos. Era um tempo de rupturas, mas também de continuidade, que se refletiu no exercício da Justiça do país.
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O começo do século XIX foi marcado por transições não só no Brasil, mas também na Europa e nos demais países da América. Na esteira das revoluções americana e francesa, surgiam os Estados constitucionais e representativos, para suplantar as monarquias do “antigo regime”. A Justiça e suas instituições foram profundamente transformadas por essa transição. Até o século anterior não havia separação dos poderes como a que conhecemos hoje. “A principal função do monarca, na lógica do “antigo regime”, era a Justiça, entendida como dar a cada um o que lhe é de direito”, afirma a historiadora Monica Duarte Dantas, do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP). “É uma Justiça que não se baseia simplesmente na aplicação de leis positivas – tal como se conhece hoje –, mas envolve uma série de outras produções normativas, escritas ou não. ”
As fontes do direito, ou seja, aquilo que fundamenta as decisões dos magistrados, eram múltiplas, incluindo a legislação régia (cujas complicações eram conhecidas no Império português como ordenações), mas também corpus do direito romano e do direito canônico, doutrina, normas e costumes locais, muitas vezes não escritos. “Dado que se tratava de uma sociedade corporativa, e não uma sociedade de indivíduos, administrar a justiça pressupunha considerar as particularidades e privilégios derivados do lugar social que cada um ocupava. Vários desses corpos possuíam não só normas e práticas próprias, que não estavam hierarquicamente abaixo da legislação régia, como tinham direito a tribunais ou juízes privados. Havia, por exemplo, o juízo dos moedeiros [fabricantes de moedas], que só deixou de existir em 1830. E os moedeiros, como todos os que desfrutavam de juízos próprios, podiam demandar que quaisquer casos, envolvendo até mesmo suas famílias, fossem julgados em tais foros privados”, acrescenta Dantas.
Segundo José Reinaldo de Lima Lopes, da Faculdade de Direito da USP, a Constituição brasileira de 1824 (com alguns excertos ilustrando esta reportagem) adotou o molde das cartas europeias da Restauração, período que se seguiu à queda de Napoleão Bonaparte (1769-1821) na França, em 1815. “Era monárquica, moderada, com participação limitada dos cidadãos e diversos mecanismos de filtragem do poder imediato do povo, como eleições indiretas e o voto censitário”, resume. Os arquitetos da nova ordem política e jurídica conceberam um princípio de “governo misto”, conjugando elementos populares (como as eleições), aristocráticos (como o Senado vitalício) e monárquicos (como o imperador). “Os debates da época no Brasil mostram que havia muito desejo de mudar, combinado com o temor das inclinações passionais das ‘massas’, tanto de homens livres quanto de escravizados. As convulsões e instabilidades das décadas de revolução eram bem conhecidas e assustavam muito”, afirma Lopes.
Essas características bastavam para que o ordenamento jurídico a ser criado fosse muito diferente do anterior. “Tanto que levou muito tempo para que os oficiais e servidores públicos se acostumassem. Os juízes, por exemplo, continuavam consultando o governo sobre como decidir certos casos”, observa Lopes. “Muito do que chamamos de direito privado, como o direito dos contratos, da posse e da propriedade, da família, dos negócios, continuou sendo regido por leis e doutrinas existentes anteriormente à Independência. A Igreja continuou gozando de sua jurisdição sobre assuntos de família e sobre seus próprios instrumentos de ação.”
Para a historiadora Andréa Slemian, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), embora a Constituição de 1824 não tenha, no Brasil, instalado de uma vez por todas um Estado nacional e moderno, ela é um documento de princípios cujo efeito mais relevante é projetar um novo modelo político, centrado no poder das leis, não mais do monarca. “É possível dizer que a primeira Constituição tinha menos poder normativo do que a de hoje, porque muito da prática jurídica anterior foi mantida”, observa. “Mas a Carta tinha a pretensão de normalizar uma nova sociedade, sob novos princípios. Ao projetar esses princípios, a Constituição foi um documento de referência para a construção da Justiça em todo o século XIX.”
A Constituição de 1824 previa a criação de um Supremo Tribunal de Justiça (STJ) para julgar empregados privilegiados, como ministros, conselheiros de Estado, empregados diplomáticos, presidentes de província, e conceder revista nos processos julgados, em segunda instância, nos tribunais de Relação. O STJ passou a funcionar em 1828. Mas a Casa de Suplicação, criada no Brasil quando da chegada da família real, só deixou de existir em 1833. A Carta outorgada previa também a elaboração de códigos – mencionando especificamente o Civil e o Criminal. Enquanto os novos textos eram elaborados, o país manteve total ou parcialmente vigentes as leis de seu tempo de Colônia. Os dois primeiros códigos – Criminal e de Processo Criminal – foram adotados, respectivamente, em 1830 e 1832. As discussões sobre um código comercial começaram na década de 1830, mas ele só foi aprovado em 1850. Na segunda metade do século, foram debatidos projetos de um Código Civil. Ele só seria aprovado, contudo, em 1916.
Os códigos aprovados no começo da década de 1830 continham dispositivos que, enfim, revogaram a legislação penal do período anterior e, por isso, constituíram marcos na transição política do Brasil, de Colônia a país independente na era moderna. Já a legislação civil se manteve no registro anterior, com atualizações. “Quem fez essas atualizações foram os próprios doutrinadores do direito. O caso mais famoso é o das ordenações filipinas, editadas por Cândido Mendes [1818-1881] em 1870. Ele elencou o que seguia em vigor e o que não vigia mais”, diz Slemian.
A Carta de 1824 introduziu duas inovações principais no ordenamento jurídico do jovem país. Ambas refletiam uma preocupação com o modo de funcionamento da Justiça. “O Judiciário do Brasil nascente não foi pensado para uma sociedade de massas como a nossa, mas primeiramente para resolver o problema da corrupção da Justiça colonial e do arbítrio dos juízes na aplicação das penas”, comenta Lopes.
A primeira dessas inovações foi o júri, tanto em matéria criminal quanto em matéria cível. Novidade oriunda dos países anglo-saxões e adotada na Revolução Francesa para casos criminais, foi originalmente adotado no Brasil para os crimes de abuso de liberdade de imprensa, sendo expandido para todos os crimes em 1832. O júri era considerado, segundo Dantas, um bastião de defesa e garantia dos direitos dos cidadãos. Ainda que a Constituição previsse o júri no cível, ele nunca foi efetivamente adotado. Ainda que várias das lideranças do processo de independência dos países hispano americanos defendessem a instituição dos jurados, ele só seria de fato adotado décadas depois. Segundo Slemian, o júri refletia os anseios dos movimentos revolucionários latino-americanos por formas de justiça popular.
A segunda foi a eleição para o cargo de juiz de paz, autoridade que não precisava ter formação jurídica e exercia funções amplas. Previsto na Constituição para a conciliação, em 1827 tornara-se responsável também pela manutenção da ordem pública, pelos corpos de delito e por julgar pequenas causas, tanto cíveis como criminais. Em 1832, passou a responder também pela formação da culpa, correspondente ao que hoje chamamos de inquérito. Havia um juiz de paz para cada freguesia, a menor divisão administrativa do país. “Nesse sentido, o juiz de paz tinha proximidade maior com a população do que as autoridades municipais e, mais ainda, os juízes de direito, um por comarca, a maioria delas compreendendo vários municípios, ou seja, territórios muito vastos”, diz Dantas.
Diferentemente das eleições para deputado e senador, que eram indiretas, os vereadores e juízes de paz eram escolhidos pelo conjunto de todos os votantes, isto é, homens livres com mais de 25 anos e renda superior a 100 mil réis anuais, incluindo analfabetos e libertos. “Era um valor baixo, que ficou ainda menor com o passar dos anos devido à inflação”, comenta Dantas. “A população estava mais próxima dessa Justiça do que estamos hoje em dia, por exemplo.”
De acordo com o cientista político Christian Lynch, do Instituto de Estudos Políticos e Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj), a adoção do sistema de jurados e a eleição de juízes de paz sem formação jurídica estão associadas a um projeto de descentralização política, característico de elites locais. No Brasil, essas elites eram compostas sobretudo por proprietários de terras, donos de escravizados e integrantes da burocracia estatal.
“Essa categoria queria seguir o modelo dos Estados Unidos, que elegia xerifes e usava o sistema de júri, porque odiava o ‘antigo regime’. Os juízes de fora e desembargadores, que eram bacharéis, apareciam para eles como representantes de uma antiga nobreza, do Estado central”, explica. “Por isso, simpatizavam com a ideia de juízes e jurados locais, eleitos pelo povo. Mas o Brasil não tinha povo como na Europa. Era um país escravista, então a maior parte da classe trabalhadora estava excluída, sem direitos civis. Quem era o povo? Os donos de escravizados. Em um país como esse, federalismo era quase feudalismo”, conclui.
Na década de 1840, parte dessas inovações foi revogada com a reforma da legislação. O juiz de paz perdeu suas funções judiciárias para delegados que não eram eleitos, mas indicados pelo poder central no Rio de Janeiro. O movimento fez parte do chamado “regresso conservador”, em que a tendência à descentralização política foi revertida no país.
A instituição das petições, como a que o liberto Delfino endereçou à Câmara dos Deputados, é remanescente das práticas do período anterior, observa Slemian. “Se uma pessoa escravizada tivesse comprado sua liberdade, mas o senhor ou seus herdeiros se negassem a reconhecê-la, havia dois caminhos. Podia abrir um processo ou enviar uma petição ao governador, que tinha o poder de fazer com que a questão fosse investigada e até mesmo que a alforria fosse cumprida”, resume. O parágrafo XXX do artigo 179 da Constituição de 1824, que continha uma declaração de direitos, cristalizou no novo regime a instituição das “reclamações ou petições” ao Legislativo e ao Executivo.
A historiadora pesquisou os chamados tribunais da relação, que correspondiam à segunda instância e estavam instalados em Salvador, Rio de Janeiro, Recife e São Luís. Embora fosse uma instituição essencialmente jurídica e, no caso do país independente, formalmente pertencente ao Poder Judiciário, o tribunal da relação também lidava com as petições, documento não vinculado a processos judiciais. “As petições tinham muita força no mundo jurídico antigo. Elas mostram que, apesar de todas as críticas à morosidade da Justiça e à corrupção dos juízes, existiam formas efetivas de capilaridade social da Justiça”, afirma.
Na petição de Delfino, lê-se que “o suplicante, como liberto, é um cidadão e como tal não pode ser preso, e muito menos continuar a existir em prisão”. A frase expressa uma característica da Constituição aprovada poucos anos antes, a respeito de um traço marcante do Brasil. Embora a escravidão fosse uma das instituições basilares do país no século XIX, há uma única referência a ela no texto constitucional de 1824, e velada: “No artigo 6°, parágrafo I, constam entre aqueles com direito à cidadania brasileira os nascidos no território brasileiro, ‘quer sejam ingênuos ou libertos’”.
Assim, como mostram Campos e Motta, os representantes de Delfino recorreram ao texto constitucional para afirmar que, ao receber a carta de alforria, ele não apenas deixava a categoria de escravizado como adentrava a de cidadão. Ora, a declaração de direitos do artigo 179 vedava a prisão sem culpa formada, instituía a fiança e abria a possibilidade de queixas a prisões arbitrárias.
Todavia, para infelicidade de Delfino, os parlamentares não deram abrigo aos argumentos. Em sua resposta, declararam que “o suplicante não pode dizer-se cidadão enquanto não for ultimamente decidida a questão que pende sobre a sua liberdade”. Com isso, Delfino teve de esperar no cárcere a decisão final do nascente Judiciário brasileiro. O registro dessa decisão ainda não foi encontrado.
Projetos
1. Remédios para a Justiça: Um estudo sobre os recursos judiciais nos Tribunais da Relação, entre o Império português e o do Brasil (c. 1750-c.1840) (no 17/18137-3); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Andréa Slemian (Unifesp); Investimento R$ 86.632,81.
2. Governantes e juízes: O problema da determinação do direito no Brasil imperial (nº 15/23689-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Pesquisador Visitante – Internacional; Pesquisador responsável José Reinaldo de Lima Lopes (USP); Pesquisador visitante Carlos Garriga Acosta; Investimento R$ 34.520,68.
Livros
LOPES, J. R. de L. História do direito e da Justiça no Brasil do século XIX. Curitiba: Juruá, 2017.
LYNCH, C. E. C. Da monarquia à oligarquia. História institucional e pensamento político brasileiro (1822-1930). São Paulo: Alameda, 2014.
SLEMIAN, A. Sob o império das leis. Constituição e unidade nacional na formação do Brasil (1822-1834). São Paulo: Hucitec, 2009.
CAMPOS, A. P. e MOTTA, K. S. da. Escravo até prove-se o contrário: Petição do liberto Delfino à Câmara dos Deputados (1826). In: O espelho negro de uma nação. A África e sua importância na formação do Brasil. Vitória: Edufes, 2019.