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Arqueologia

Museus danificados ou destruídos se reorganizam

Reformas ou tragédias podem fazer acervos crescerem ou se transformarem

Grandes obras que remexem o solo, como as do Museu Paulista, devem ser precedidas de um procedimento arqueológico para preservar o patrimônio histórico

Léo Ramos Chaves

Na virada do século XIX para o XX, o entorno do Museu Paulista da Universidade de São Paulo (USP), conhecido como Museu do Ipiranga, foi provavelmente palco de rituais de matriz africana com oferenda animal e simpatias. A suspeita vem de artefatos como fragmentos de louça, vidraria, peças de metal, dentes de porco e fragmentos de crânio de boi ou vaca, além de uma dentadura e duas moedas de 200 réis, encontrados no canteiro lateral do museu e em frente a ele, a uma profundidade de cerca de 50 centímetros. Os achados se deram no contexto da extensa reforma iniciada em 2019, com reabertura prevista para 7 de setembro 2022, em comemoração do bicentenário da Independência do Brasil (ver box).

“O material estava no pé de algumas árvores, isolado, sugerindo o uso do local para atividades religiosas”, explica o arqueólogo Renato Kipnis, diretor da empresa Scientia Consultoria e responsável pelo estudo, uma exigência do licenciamento ambiental para a reforma do museu. “O contexto dos artefatos não tem aspecto de descarte como lixo, geralmente ocorrendo em conjunto e com itens repetidos”, esclarece o pesquisador.

Léo Ramos Chaves O estudo dos artefatos ajuda a identificar sua origem e determinar sua idadeLéo Ramos Chaves

Também foram encontrados fragmentos de uma garrafa com sete tiras de papel enroladas no gargalo, todas com a mesma assinatura em caligrafia antiga do nome Claudete Jahaqui ou Iahaqui. “Talvez fosse um ente, como parte de uma simpatia”, especula Kipnis, que só encontrou referência ao nome Iahaqui em um livro mexicano do século XVIII. Fragmentos de louças da fábrica Santa Catarina, em funcionamento do final do século XIX até a década de 1930, ajudam a definir a data dos achados.

Dentro do museu, no primeiro andar, no vão entre o piso de madeira e o contrapiso, foram encontrados um cachimbo de barro provavelmente importado dos Estados Unidos, um cálice pequeno de vidro e um chapéu de couro. “Não são objetos que as pessoas costumam esquecer. Provavelmente foram largados lá pelos operários como uma forma de marcar presença no museu que ajudaram a construir”, sugere Kipnis. Os itens serão incorporados ao acervo de arqueologia histórica do museu, criado pela arqueóloga Margarida Davinha Andreatta (1922-2015), pesquisadora que escavou sítios no centro de São Paulo em locais como o Anhangabaú e o Solar da Marquesa de Santos.

Léo Ramos Chaves Peças encontradas nas escavações são organizadas para serem depois incorporadas ao acervo do museuLéo Ramos Chaves

“Já foram feitas escavações internas no prédio, quando descobrimos ferramentas usadas na construção”, conta a historiadora Solange Ferraz de Lima, presidente da Comissão de Cultura e Extensão do museu. “Além do valor histórico, esses artefatos são a marca da profunda transformação pela qual a instituição está passando, uma vez que só foram descobertos por conta da reforma.”

Arqueologia de resgate
Há outro tipo de trabalho arqueológico que ocorre nos museus que passaram por incêndios. No Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (MN-UFRJ) estão sendo recuperados itens de 72 salas, cada uma com três camadas de acervo a serem escavadas: o térreo e dois andares que colapsaram com as chamas. Antes do incêndio, em 2018, o conjunto totalizava quase 13 mil metros quadrados (m2) de construção (ver edição especial de Pesquisa FAPESP sobre o incêndio do MN e a situação de crise em outros museus científicos). O resultado do resgate está guardado em 16 contêineres de 15 metros cúbicos (m3) lotados de material e em duas salas no anexo do museu. O processo foi descrito no livreto 500 dias de resgate.

Léo Ramos Chaves Arqueólogo (de branco) examina sedimentos na escavação do andar subterrâneo, em meio às fundações do Museu PaulistaLéo Ramos Chaves

Algumas peças estão inteiras, mas a maioria sofreu transformações variadas: foram fragmentadas, retorcidas ou mudaram de cor. “Só depois do inventário, que ainda demora mais alguns anos, será possível saber como é esse novo acervo forjado pelo fogo”, ressalta a paleontóloga Luciana Carvalho, da UFRJ, uma das coordenadoras do resgate. Depois disso, o processo de restauração deverá seguir por vários anos, talvez décadas.

“Quando o incidente aconteceu, procuramos na literatura publicações que nos ajudassem a lidar com o problema, mas não achamos nada”, conta Carvalho. Com exceção do contato com outras instituições que pegaram fogo, como o Museu de História Natural da Universidade de Lisboa, a equipe teve de aprender na prática.

Resgate Museu Nacional UFRJ A coleção egípcia do Museu Nacional foi uma das que menos sofreu com o fogoResgate Museu Nacional UFRJ

Descobriram, por exemplo, que quando um andar desaba, a tendência é que o centro da sala, onde a sustentação das paredes é menor, caia primeiro. Conforme o piso amolece com o calor e verga pelo peso da laje, os móveis e itens expostos escorregam para o centro da sala e tudo desmorona sobre o que estiver em baixo. A equipe de resgate pretende publicar artigos técnicos com os protocolos de trabalho que adotaram e relatar o que aprenderam durante o resgaste das peças.

Balanço geral
Uma das maiores perdas do MN fazia parte da coleção paleontológica e estava no centro da sala, no primeiro andar, tendo recebido o peso do 2º e do 3º andar e do telhado. Eram os chamados espécimes-tipo, que servem como referência para reconhecer indivíduos de uma espécie. Havia exemplares fósseis de peixes, anfíbios, répteis, mamíferos e aves. “A coleção começou a ser formada no tempo do Império [1500-1822], com exemplares coletados nas primeiras expedições dos naturalistas. Era consultada por cientistas do mundo todo em estudos evolutivos ou de taxonomia”, lembra Carvalho, pesarosa.

Resgate Museu Nacional UFRJ A tragédia uniu a equipe, que começou o resgate no dia seguinte ao incêndioResgate Museu Nacional UFRJ

A parte das coleções de paleontologia e geologia que ficavam no primeiro andar, dispostas no meio da sala, sofreram mais. Mesmo em armários de aço, o estrago foi grande. No entanto, um armário com fósseis de invertebrados que estava na lateral da sala resistiu praticamente ileso.

A coleção de insetos desapareceu. O museu tinha 12 milhões de bichos coletados desde a época do Império, inclusive com espécies extintas. “Só sobrou uma casinha de vespa feita de barro”, conta Carvalho. No setor de linguística, foram destruídas todas as gravações de indígenas, com registros de línguas, lendas e histórias de tribos existentes e extintas.

Ana Carolina Fernandes Técnicas arqueológicas, como a peneira, ajudam a encontrar objetos transformados em fragmentos minúsculosAna Carolina Fernandes

As coleções mais preservadas foram as peças egípcias e a coleção de arqueologia clássica da Itália de Teresa Cristina, imperatriz que veio ao Brasil em 1843, casada por procuração com o imperador dom Pedro II. Boa parte das coleções de geologia também resistiu, incluindo as peças de mineralogia e petrografia, além de partes da coleção de paleontologia, como os esqueletos de vertebrados e fósseis de invertebrados e plantas. “Dada a proporção da tragédia, os resultados foram animadores”, observa Carvalho.

Em consequência do desastre, o MN construiu um novo campus para abrigar as coleções e os departamentos de pesquisa da instituição. “Em breve, o museu será exclusivo para exposições e atividades voltadas ao público, conforme previa o plano diretor da década de 1990”, comemora Carvalho.

Rogério do Pateo / DAA-NAV Nem sempre é fácil distinguir peças importantes de restos de reboco após um incêndio, como o do Museu de História Natural e Jardim Botânico de Belo HorizonteRogério do Pateo / DAA-NAV

Ajuda providencial
Inadvertidamente, o MN-UFRJ se tornou uma referência sobre proteção contra incêndios e resgate de acervos. Em 15 de junho de 2020, houve um incêndio no Museu de História Natural e Jardim Botânico (MHNJB) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) que destruiu parte da coleção. O resgate, feito em três meses pela equipe da UFMG, contou com o apoio a distância da equipe do MN.

“Eles nos ajudaram com questões práticas, desde a lista de materiais necessários para o trabalho até as orientações sobre como lidar com a imprensa”, conta a arqueóloga Mariana Cabral, coordenadora do Centro Especializado em Arqueologia Pré-histórica do MHNJB. “As pessoas querem saber quantas peças foram resgatadas”, explica. Mas como uma peça pode se fragmentar em muitas ou se transformar em algo que não se consegue identificar, a contagem de itens perde o sentido.

Rogério do Pateo / DAA-NAV O museu da UFMG incorporou a tragédia como parte do acevo e da históriaRogério do Pateo / DAA-NAV

No museu da UFMG, a coleção arqueológica de esqueletos indígenas antigos da região de Lagoa Santa, com dezenas de crânios bem conservados, foi dizimada. Era o maior acervo do gênero no país desde o incêndio do MN, incluindo esqueletos indígenas oriundos de pesquisas do MHNJB e outros coletados por Harold V. Walter na década de 1950. Sobraram apenas dois crânios mais preservados: os demais, assim como os ossos humanos em geral, foram espatifados ou transformados em pó misturado ao reboco. A coleção de insetos também foi destruída.

Depois do incêndio, o museu ganhou uma coleção nova: são peças danificadas ou retorcidas pelo fogo, como interruptores, maçanetas, partes da alvenaria, ferragens da janela e móveis, além da própria coleção original alterada pelo incêndio. “É uma coleção de peças transformadas que registram a história do desastre”, diz Cabral.

Um museu completo sai do casulo

Léo Ramos Chaves Construído como monumento, o Museu Paulista pretende tornar-se mais completo e dobrar o número de visitantes recebidos após a reinauguração, prevista para 7 de setembro de 2022Léo Ramos Chaves

O prédio do Museu do Ipiranga foi originalmente construído para ser um monumento e não um museu universitário. As principais diferenças é que os monumentos não têm acervo e não fazem pesquisa. A instituição foi incorporada à Universidade de São Paulo (USP) em 1963 e tornou-se um acervo de referência para a pesquisa sobre a sociedade brasileira, especialmente nos séculos XIX e XX.

Com a reforma atual, o museu poderá receber 1 milhão de pessoas por ano, o dobro de antes da reforma. As salas usadas como reserva técnica serão liberadas para exposições e o acervo foi acondicionado em espaços alugados provisórios. Haverá exposições temporárias, onde serão abertos espaços também para artistas contemporâneos que dialogam com temas da história, além de espaço para atividades educativas, áreas de descanso, auditório, café e loja.

“Nesse espaço acolhedor o visitante vai descobrir que o Museu do Ipiranga não representa apenas as grandes figuras históricas ou as elites”, diz a historiadora Solange Ferraz de Lima, docente da instituição. A partir da década de 1990, novos acervos foram criados para ampliar a representação de diversas classes sociais. Eles incluem ferramentas de trabalho, utensílios de cozinha, materiais didáticos e cartilhas, rótulos, cartões-postais, embalagens e bordados, que se somaram ao já existente acervo de indumentária, numismática, filatelia, louças, pinturas, armas e carruagens. Hoje, o acervo alcança 450 mil itens entre objetos, imagens e textos.

No Wikiglam, uma plataforma da Wikipedia dedicada a instituições de educação e cultura (Glam é a sigla em inglês para galerias, bibliotecas, arquivos e museus), já estão disponíveis 33 mil itens do acervo, que fazem parte do cotidiano do brasileiro e que podem ser baixados em alta resolução. O museu carrega as mídias e seus metadados na plataforma, e os usuários podem escrever ou editar verbetes sobre temas correlatos.

Com a ajuda do Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) em Neuromatemática (NeuroMat), financiado pela FAPESP, e do Wiki Movimento Brasil (WMB), os docentes do museu promovem maratonas para voluntários que criam e editam verbetes. Também foram realizados concursos com prêmios para quem editou os melhores verbetes ou em maior quantidade. A plataforma já tem 3,1 milhões de visualizações.

Fechado ao público desde 2013, em consequência do mau estado de conservação do prédio – chamado também de edifício-monumento –, a equipe do museu avalia que há uma grande expectativa em torno da reabertura. Por isso, convida o público a participar do processo, visitando o “Observatório da obra”, um mirante com dois andares no Parque da Independência, onde se pode observar o canteiro de obras e a escavação do novo salão subterrâneo. No canal do YouTube, o museu disponibilizou a série Diário da Obra, com seis vídeos que acompanham a restauração e a ampliação do museu.

Artigo científico
SILVA, A. L. et al. Depois do fogo: Ações e reações do Museu de História Natural e Jardim Botânico da UFMG ao incêndio na Reserva Técnica 1. Arquivos do Museu de História Natural e Jardim Botânico. v. 29, p. 160-74. 22 abr. 2020

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