Em 1973, a brasileira Niède Guidon, então pesquisadora do Centre National de La Recherche Scientifique (CNRS) em Paris, era assistente da grande arqueóloga francesa Annete Emperaire, que procurava vestígios do homem mais antigo das Américas. Annete já havia estado na Patagônia e, em solo brasileiro, seu maior interesse era a região de Lagoa Santa, nos arredores de Belo Horizonte, onde se acreditava estarem os resquícios mais antigos de ocupação humana em terras nacionais. “Detesto essa pesquisa para ver quem é o mais antigo. Gosto do Piauí por causa das pinturas (rupestres), que são muito bonitas”, disse então Niède a Annete. “Preparo tudo para você ir a Lagoa Santa, mas vou para o Piauí.” Foi e nunca mais saiu da região de São Raimundo Nonato, no sudeste do estado. Para sua surpresa, além de incontáveis manifestações de arte pré-histórica em mais de mil sítios arqueológicos descobertos, deparou – que ironia – justamente com o que dizia tanto odiar: indícios de presença humana no Nordeste muito mais antigos do que jamais alguém esperaria achar.
Segundo Niède, o material arqueológico resgatado até agora no Piauí – alvo de controvérsias entre os estudiosos – indica que o homem chegou à região há cerca de 100 mil anos. A pesquisadora acredita que o Homo sapiens deve ter vindo da África por via oceânica, atravessando o Atlântico. Houve uma grande seca na África e o homem teria ido para o mar procurar comida. Tempestades o empurraram oceano adentro. “O mar estava então 140 metros abaixo do nível de hoje, a distância entre a África e a América era muito menor e havia muito mais ilhas”, disse Niède, hoje com 75 anos, na palestra que fez no dia 11 de maio no Parque do Ibirapuera, em São Paulo, para a programação cultural da exposição científica Revolução genômica. As teses de Niède se chocam com a arqueologia mais tradicional, dominada pela visão dos norte-americanos, que situam a chegada do homem nas Américas há cerca de 13 mil anos, vindo da Ásia via estreito de Bering.
Em sua apresentação, Niède fez um resumo dos 36 anos dos trabalhos científicos e de preservação cultural e ambiental desenvolvidos no Parque Nacional Serra da Capivara, criado em 1979 e considerado patrimônio cultural da humanidade pela Unesco. Começou falando da localização geográfica do parque, que compreende uma área de 129 mil hectares administrada pela Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham), entidade criada (em 1986) e presidida até hoje por Niède. O parque é vizinho de outro, de nome auto-explicativo, que fica à sua direita, o Parque Nacional da Serra das Confusões, com área de 516 mil hectares. “Na realidade, sempre quisemos que a serra da Capivara e a serra das Confusões formassem um só parque”, afirmou. A idéia não vingou devido à cobiça de políticos e grandes empresários que conseguiram doações, desmataram uma parte da região e separaram os dois parques, segundo a arqueóloga.
Antes de assentamentos de sem-terra terem tomado o entorno do Parque Nacional Serra da Capivara, havia um corredor natural que permitia a passagem de animais de um parque a outro. Mais úmida do que a serra da Capivara, a serra das Confusões atraía os bichos na época de seca. Os animais migravam e, com a volta da estação das águas, retornavam à serra da Capivara. “Até brincávamos que os animais recebiam um telegrama avisando que choveu na Capivara”, comentou Niède. Com o desmembramento total dos dois parques, as movimentações da fauna local se tornaram complicadas e perigosas. “Se saem do parque (serra da Capivara), os animais morrem”, sentenciou. Para matar a sede dos bichos na estiagem, a Fumdham fez uma série de reservatórios para captar água da chuva. Até comida foi necessário dar aos bichos nos 2 últimos anos de seca mais acentuada. “Estamos em negociação com o governo federal para ver a possibilidade de estabelecer um corredor entre os dois parques”, disse.
Entre dois biomas
A chuva, que faz o verde brotar numa paisagem normalmente associada a tons de marrom, é de suma importância para o equilíbrio da serra da Capivara, dominada por vegetação de caatinga. “Já passei até 6 anos sem ver chuva”, contou a arqueóloga. “Acho temerário fazer assentamento de sem-terra, que quer plantar comida, num local onde pode ficar tanto tempo sem chover.” Niède não é contra os sem-terra, que vivem em casas minúsculas, sem reboque, rodeadas de lixo, ?favelas na zona rural? nas palavras da arqueóloga. Apenas acha que eles deveriam se dedicar a plantar flores ornamentais e certos tipos de cactos, que têm alto valor comercial no mercado, em vez de desmatar para cultivar alimentos. A arqueóloga explicou que a região, dona de belos cânions, é uma fronteira entre duas formações geológicas brasileiras, um planalto do permiano-devoniano e a planície do São Francisco, que é do pré-cambriano. “Nossas pesquisas demonstraram que, há 10 ou 9 mil anos, nessa região se dava o contato entre dois biomas: a Floresta Amazônica e a Mata Atlântica”, explicou. “Até hoje, nas regiões mais protegidas do parque, mais úmidas, temos espécies animais e vegetais desses dois biomas.”
A fauna da serra da Capivara, que voltou a ser alvo de caçadores devido à redução no número de funcionários do parque (de 270 empregados em 2004 para os atuais 84), costuma ser ofuscada pelas espetaculares pinturas rupestres e sítios arqueológicos da região. Mas não lhe faltam encantos. “A Caatinga, ao contrário do que se diz, tem uma biodiversidade muito grande”, afirmou Niède. Há muitos anfíbios, cobras e, segundo um estudo da Universidade de Brasília (UnB), a densidade de felinos na unidade de conservação é maior do que na Mata Atlântica. “Descobriram 60 onças no parque”, disse. Os macacos-pregos rendem uma história à parte. A arqueóloga contou que eles são tão habilidosos que, em alguns sítios pré-históricos, os arqueólogos encontram ferramentas feitas pelos símios e pensam que esses artefatos foram talhados por mãos humanas. “Nossos macaquinhos são muito inteligentes e enganam até os arqueólogos”, comentou.
Os cortes nas verbas federais, que obrigaram à demissão de muitos funcionários, deixam todo o patrimônio natural do parque à mercê de uma exploração sem limites. “Algumas espécies desapareceram totalmente e os caçadores ultimamente estão ganhando a parada”, comentou Niède, que precisa de meros R$ 400 mil reais por mês para tocar o parque com o número adequado de funcionários. “Quando comecei a trabalhar na região, não andava 10 minutos sem ver um tamanduá-bandeira. Hoje, em toda a área do parque, temos somente três.” Também faltam especialistas para estudar alguns animais da serra da Capivara, como os insetos. No caso dos fungos, que muita gente julgava inexistentes na Caatinga, uma pesquisadora está se dedicando ao seu estudo. Fungos exuberantes, com até 80 centímetros de diâmetro, já foram encontrados na região. Na área de botânica, várias espécies novas foram descobertas, inclusive de árvores com mais de 8 metros de altura.
Os sítios arqueológicos
A essa altura da palestra, Niède se pôs a falar do que tornou a serra da Capivara conhecida internacionalmente: seus sítios arqueológicos, com possíveis implicações para a história da colonização das Américas. Em 1973, durante a primeira missão franco-brasileira, da qual também fazia parte a pesquisadora Silvia Maranca, da Universidade de São Paulo (USP), não havia estradas ou coisa alguma no que hoje é o parque. “Tínhamos de andar, às vezes, 50 quilômetros carregando tudo”, disse a arqueóloga. Até urnas funerárias. A população local ajudava os pesquisadores e indicava onde estavam as pinturas rupestres, como as do sítio da Pedra Furada, o mais antigo do parque e um de seus cartões-postais. “Na primeira vez que fui ao Piauí descobri 55 sítios com pinturas”, lembrou. Naquela época, Niède ainda trabalhava em tempo integral na França e só ia ao Piauí nas férias.
Naquele tempo, todos os pesquisadores diziam que não havia material arqueológico muito antigo no Nordeste, uma região seca e desfavorável à presença humana. Niède teve uma grande surpresa quando saiu o resultado de uma datação feita na França que estimou em 18 mil anos a idade de um carvão (resquício possivelmente de uma fogueira humana) encontrado em Pedra Furada. “Chamei o laboratório e disse: ‘Vocês misturaram os carvões. Nessa região não tem nada antigo’. Aí a chefe do laboratório me respondeu: ‘A datação é do seu carvão. Volte lá e amplie sua pesquisa porque tem alguma coisa diferente ali'”, relembrou Niède. Nos 10 anos seguintes, a equipe da arqueóloga escavou 750 m² até bater na rocha de base, a quase 8 metros de profundidade.
Niède mostrou à platéia imagens ampliadas até 500 vezes por microscopia eletrônica de um artefato em pedra lascada que teria sido feito pelo homem há 100 mil anos. A peça tem marcas que indicam seu uso em dois sentidos, um na transversal e outro na vertical. Alguns estudiosos, no entanto, não atribuem essas diminutas ranhuras ao manuseio humano, crítica que a arqueóloga brasileira considera descabida. Niède disse que o aparecimento de material feito em pedra polida e da cerâmica na serra da Capivara se deu há cerca de 9 mil anos. “A cerâmica aparece lá no mesmo momento em que é criada no Oriente Próximo e na África”, explicou. Nesse ponto da palestra, Niède fez uma revelação, ainda não publicada em trabalhos científicos: uma das pinturas do parque pode ser a mais antiga do mundo, com 34 mil anos, segundo datações preliminares feitas no Brasil e na França. Ela mostrou uma das pinturas que faz parte do lote das mais antigas. “Esses buracos nas figuras são de tiros de espingarda de caçadores”, comentou.
Grande parte das pinturas da serra da Capivara contém representações de animais em movimento, sobretudo de capivaras (animal que dá nome ao parque, embora não exista na região desde antes da chegada de Niède) e de veados. Desenhos de figuras humanas também não são raridades. “Vemos humanos muito expressivos, em atos do dia-a-dia”, exemplificou. “Temos muitas representações sexuais, de parto, de danças. É uma verdadeira história em quadrinhos gravada na pedra.” Às vezes, sinais geométricos ou mãos usadas como carimbo aparecem nas pinturas.
Niède está convencida de que o homem pré-histórico se espalhava por uma região muito maior do que a serra da Capivara. Há 2 anos, pesquisadores da Fumdham passaram 15 dias na serra das Confusões e encontraram 120 sítios arqueológicos. “Uma quantidade absurdamente fantástica”, comentou Niède. “No total (somando Capivara e Confusões) temos hoje mais de 1.300 sítios.” Segundo a arqueóloga, as antigas populações de caçadores e coletores tinham poucos membros e não teriam como ter ocupado uma área tão grande se tivessem chegado ali há apenas 15 mil anos. “Já descobrimos o que chamamos de oficina lítica, um lugar onde eles buscavam matéria-prima e trabalhavam”, contou. No local os cientistas encontraram 80 mil peças.
Visitar a serra da Capivara requer paciência e determinação. A cidade mais próxima do parque servida por aeroporto é a pernambucana Petrolina, distante 300 quilômetros. Há mais de 1 década, foi feito um estudo internacional mostrando que a grande vocação econômica da serra da Capivara é o turismo. “Em 1996, o governo federal criou por lei um aeroporto internacional e, em 1998, foram liberados US$ 15 milhões para a construção da obra. Como em Teresina faz muito calor, o dinheiro chegou de Brasília e derreteu todinho”, disse Niède. “O aeroporto começou a ser construído no ano passado. Essa corrupção terrível parece ser a regra.”
Dentro do parque há uma boa estrutura para fazer pesquisa ou turismo. A unidade de conservação conta com 400 quilômetros de estradas e dispõe de passarelas que facilitam o trabalho de preservação e o acesso dos turistas a pinturas situadas em locais elevados. Ali a Fumdham, que também promove atividades de cunho social para os moradores da região, mantém um museu. Sua coleção de fósseis paleontológicos e arqueológicos soma mais de 1 milhão de peças, como um cristal de quartzo de 9.800 anos e uma flauta de madeira de 1.300 anos, a única da arqueologia nacional. A fundação mantém centros de geoprocessamento e de documentação e laboratórios para análise de material lítico, de cerâmica, de vestígios paleontológicos e biológicos.
As pesquisas nos sítios pré-históricos do Piauí levaram a arqueóloga a defender idéias polêmicas, mas instigantes sobre a evolução humana. ?Estamos demonstrando que o homem, em um determinado momento, começa a inventar as mesmas tecnologias, seja aqui, seja na Europa, na Ásia ou na África?, comentou. “Não podemos esquecer que o Homo sapiens apareceu na África por volta de 130 mil anos, período em que esse continente passou por uma seca muito grande, que quase dizimou integralmente nossa espécie. Foi aí que eles começaram a migrar.” Por mar, onde foram buscar alimento, diz Niède.
Empurrados por tempestades, parando de ilha em ilha, numa época em que África e América estavam mais próximas, os primeiros humanos se espalharam pelo globo. Essa é a hipótese de Niède. A descoberta de vestígios muito antigos do Homo erectus ? hominídeo extinto que é um dos antepassados do Homo sapiens ? no México e na Ilha das Flores, na Indonésia, indica que a navegação é mais antiga do que se pensa, segundo a arqueóloga. Uma das dificuldades dos pesquisadores é datar as ossadas humanas encontradas na serra da Capivara. Quase não há matéria orgânica nos esqueletos, um entrave para a datação por carbono 14. Novos métodos de análise, no entanto, podem em breve contornar esse obstáculo. “Paleontólogos que trabalham no Acre descobriram macacos que passaram da África para o Brasil há 20 milhões de anos”, disse. “Se os macacos passaram, será que o Homo sapiens não foi capaz de passar?”
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