Um conjunto de artefatos de cerâmica constituído a partir da relação com os portugueses contribui para um novo olhar sobre a história colonial do Brasil. As peças fazem parte do acervo de 37 museus de São Paulo e Paraná, do sítio arqueológico das Ruínas do Abarebebê, em Peruíbe (SP). Analisado pelos arqueólogos Marianne Sallum e Francisco Noelli, esse conjunto compõe o acervo da cerâmica paulista, como eles propõem chamá-la, e resulta da articulação de práticas entre portugueses e indígenas Tupiniquim, conforme descrito em artigo publicado em novembro de 2020 na revista Journal of Anthropological Archaeology. Sallum é pesquisadora em estágio de pós-doutorado financiado pela FAPESP no Laboratório Interdisciplinar de Pesquisas em Evolução, Cultura e Meio Ambiente (Levoc) do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP) e associada ao Centro de Arqueologia (Uniarq) da Universidade de Lisboa; Noelli cursa o doutorado na instituição portuguesa. Uma amostra do acervo integra a 34ª Bienal de São Paulo, que tem início em 4 de setembro (ver box).
Cotejando a análise das peças cerâmicas com dados históricos, os arqueólogos defendem que parte das populações tupiniquins e de portugueses que viviam na região onde é hoje o estado de São Paulo se aliaram, articulando interesses comuns. Essa relação está expressa na produção cerâmica das mulheres indígenas, que incorporaram e transformaram técnicas e características trazidas pelos homens portugueses, oleiros em sua terra natal, transmitindo-as de geração a geração.
A cerâmica paulista não é “cópia nem adoção automática das tecnologias portuguesas”, escreveram Sallum e Noelli. “É a cerâmica comum portuguesa apropriada e transformada no século XVI pelas Tupiniquim da área de São Vicente para uso nos assentamentos coloniais e reproduzida até o presente na região Sudeste de São Paulo”, definem, considerando a troca como uma via de duas mãos.
As peças encontradas em Peruíbe foram cotejadas com outras existentes em coleções de museus, de estudos arqueológicos e com os registros realizados em meados do século passado no estado de São Paulo por Herta Löel Scheuer, uma das pioneiras nos estudos de cerâmica e objetos de barro paulistas. A análise revelou continuidade nas formas e no uso de técnicas, desenhos e materiais, conforme apresentado em artigo assinado por Sallum e Noelli na revista Mana, em novembro de 2019.
Do ponto de vista da arqueologia, a principal contribuição da pesquisa, diz Sallum, foi conectar a produção cerâmica do presente com o passado, mostrando como as práticas atuais são um legado das mulheres Tupiniquim. As comunidades seguiram suas vidas reproduzindo e ressignificando as peças até os dias de hoje em locais como o Vale do Ribeira, sul do estado.
Segundo os pesquisadores, os achados materiais são mais um indício de que os Tupiniquim não foram tabula rasa – no sentido de espaços vazios a serem preenchidos, em termos de conhecimento e cultura – ou submissos aos portugueses, ao menos na região de São Paulo. Durante mais de dois séculos, de 1500 a pouco depois de 1700, os portugueses teriam constituído uma aliança com os indígenas, articulando interesses comuns e fazendo guerras com outros povos. Em troca, em vez de matar os inimigos, como faziam os Tupiniquim até então, começaram a vendê-los como escravos. Além disso, passaram a viver entre os indígenas adotando muitos de seus hábitos, casando-se e ensinando técnicas cerâmicas portuguesas às mulheres, responsáveis pela produção indígena. Aspectos singulares de como alguns portugueses foram inseridos e passaram a viver conforme as normas de sociabilidade nas comunidades de práticas tupiniquins desde 1502 estão no livro Handbook of the archaeology of indigenous-colonial interaction in the Americas (Manual da arqueologia da interação indígena-colonial nas Américas), publicado em julho pela editora Taylor & Francis.
“Conseguimos traçar uma história de longa duração das práticas cerâmicas ao montar um paralelo entre o que foi produzido nos anos 1960 e 1970 e o que foi feito nos séculos XVII e XVIII. Começamos a perceber que há uma história de São Paulo diferente daquela centrada apenas na extinção dos Tupiniquim”, diz Sallum.
Encontro de técnicas e estéticas
Como já sabiam fazer cerâmica, as mulheres Tupiniquim escolheram os formatos a incorporar, articulando técnicas e elementos decorativos próprios e transformando elementos dos portugueses, para continuar suas práticas ancestrais nas novas circunstâncias sociais. Estudos do arqueólogo Ângelo Alves Corrêa, da Universidade Federal do Piauí (UFPI), feitos durante o doutorado no MAE-USP, indicam que a cerâmica tupiniquim pré-colonial foi produzida mais ou menos da mesma forma por cerca de 1.500 anos. Até o início do século XVI, a queima era realizada a céu aberto, com poucas vasilhas de cada vez. O uso de fornos, técnica mais usada entre portugueses e paulistas, começou a ser feito em São Vicente na década de 1520.
Em relação à forma, à primeira vista as semelhanças entre as peças pré-coloniais (indígenas e portuguesas) e as paulistas não são tão evidentes. Mas um exame mais acurado da morfologia, do tratamento da superfície e do perfil da vasilha indica elementos transformados pelas Tupiniquim, segundo o estudo de Sallum e Noelli. Se a superfície interna é igualmente lisa para as peças tupiniquins, portuguesas e paulistas, os elementos decorativos ganham corpo na cerâmica paulista, materializando redes de interação com os portugueses e as demais comunidades de práticas, articulando beleza, sensações e modos de consumir alimentos.
A superfície externa das peças tupiniquins podia ser lisa, corrugada, escovada, com pontas ou recortes irregulares nas laterais. Dependendo de seu uso, poderia ser pintada com motivos geométricos. Já no caso da cerâmica portuguesa, a superfície externa era lisa e recebia, por exemplo, “cordões ou cintas de barro, linhas incisas curvilíneas e diagonais, caneluras, impressões e pintura com motivos florais”, como descreveram em artigo publicado em 2020 na revista Habitus.
Os pigmentos da cerâmica tupiniquim variavam entre o taguá (vermelho composto de óxido de ferro) e a tabatinga (branco, composto por caulim), resultando em pastas vermelhas, castanhas e alaranjadas. A partir da relação com os portugueses, elas começaram a usar também um corante vegetal que tingia as vasilhas de preto após a queima. O uso de corantes com esse efeito era comum no norte de Portugal e foi transformado e reproduzido aqui.
“Em certos aspectos das vasilhas, vemos influência no tipo de bordo, a incorporação de asas e bicos, a maneira como é feito o fundo. Na decoração, temos visto certos tipos de ondulados. Mas estamos em uma fase inicial desse trabalho comparativo no caso de São Paulo”, alerta a arqueóloga portuguesa Tânia Manuel Casimiro, especialista em cultura material da Universidade de Lisboa e coorientadora de Noelli junto com o arqueólogo Carlos Fabião, também português. Ela busca identificar e avaliar as influências portuguesas ao redor de toda a costa Atlântica nas Américas, África e Europa.
Persistência cultural
A genealogia das práticas cerâmicas entre as populações do estado de São Paulo e do sul do Paraná mostra, segundo os pesquisadores, um caso de persistência cultural, com a vibrante continuidade de hábitos tradicionais em meio a mudanças sociais e políticas. Essa noção se contrapõe às narrativas de perda cultural, como dão a entender alguns estudos acadêmicos, e se aproxima da perspectiva da decolonização, que põe em xeque a história colonial a partir da valorização de novos pontos de vista da história americana, sobretudo pelo olhar dos povos originários.
O conceito central – arqueologia da persistência – tem sido defendido por pesquisadores da área para rever consensos sobre a história colonial que consideram alguns povos originários das Américas e suas culturas como extintos. Para defini-lo, o antropólogo Stephen Silliman, da Universidade de Massachusetts, integrante do projeto temático financiado pela FAPESP que abrange o pós-doutorado de Sallum, começa por dizer o que ele não é: não é hibridismo, pois não se trata de algo novo resultante de duas matrizes, e sim da incorporação de aspectos de uma cultura, conforme seus próprios termos. Persistência diz respeito a histórias de longo prazo. “Claro, as pessoas podem ter atos ou práticas no cotidiano, mas a manifestação de persistência leva tempo; ela é geracional e permite enquadrar uma narrativa de mudanças dentro de continuidades fazendo com que ela enfatize, ao fim, o quanto esse processo está ligado ao passado”, diz. Assim, se uma pessoa se define hoje em termos de cultura, história e identidade, o passado faz parte desse presente.
Mas a ligação entre passado e presente, no que diz respeito aos indígenas paulistas, ficou perdida até agora. “Os Tupiniquim desaparecem dos arquivos históricos e dos censos já no final do século XVII. O que se encontra são classificações genéricas, como índios, caboclos ou mestiços”, lembra Sallum. Esse apagamento foi corroborado pelo universo acadêmico no século XX, “que pegou essa narrativa da extinção como um fato histórico”. A busca desse novo ponto de vista requer, como ressalta Noelli, consulta a fontes históricas consagradas e incursões – ainda a serem realizadas – a documentos pouco explorados, como as genealogias dos paulistas, registros de nascimento, o arquivo da Cúria Metropolitana, entre outros.
Ressalvando a diferença de contextos e trajetórias dos diversos coletivos indígenas, o historiador Eduardo Natalino dos Santos, do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, enfatiza um ponto que considera crucial nas novas narrativas que estão sendo produzidas. “É algo que põe em questão o consenso da história colonial até então. Obriga aqueles que a estudam sem deter-se na história indígena a tomar conhecimento dela”, comenta ele, especialista em cosmologias e histórias pré-hispânicas e coloniais produzidas pelas elites indígenas da Mesoamérica e Andes centrais.
Natalino explica que o cenário atual do conhecimento começa a se configurar na década de 1980, com a crescente visibilidade da história indígena e a adoção de uma visão não monolítica de todos os povos indígenas. Começa-se, então, uma busca de entendimento das ações, atuações e formas de pensamento, intenções, projetos políticos e cosmologias. “Temos muita dificuldade de entender que as identidades coletivas se transformam e, ao se transformarem, constroem um mecanismo de duração no tempo”, afirma.
A interpretação da história a partir da identidade de grupos é controversa. O historiador Rafael Marquese, professor de América colonial no mesmo departamento, reconhece o que Sallum e Noelli descrevem: um grupo de indígenas que, por meio da agência de suas mulheres, se alia ao colonizador para reproduzir seu mundo da melhor maneira possível.
Mas enxerga o quadro por outro ângulo. “É uma situação colonial em que há uma assimetria, com distribuição desigual de poder.” Para Marquese, como foram vítimas de mortalidade por meio de doenças e sofreram impacto demográfico ao longo dos séculos XVI, XVII e XVIII, é natural que os indígenas buscassem alianças que permitissem sua sobrevivência. Além disso, São Paulo, a despeito da posição estratégica de seu território, era parte de uma capitania com pouco peso econômico, pois estava fora do tráfico negreiro transatlântico. “Os portugueses se estabeleceram onde conseguiram ter algum tipo de aliança com os indígenas. Se não foi assim, tiveram de conquistar o território, como na Bahia”, acrescenta.
Sallum e Noelli ressaltam a importância, em consonância com Natalino, de construir uma história indígena, e consideram que o foco na perda demográfica e na economia não é suficiente para produzir a história da formação social e cultural paulista. Para isso, consideram que o momento requer enxergar e entender detalhes locais e regionais, mais reveladores do que as grandes sínteses, e que existe um grande campo aberto à pesquisa para, finalmente, incluir os povos indígenas na história de São Paulo.
Megaexposição que vai de 4/9 a 5/12 inclui cerâmica tupiniquim e interpretação proposta pela pesquisa arqueológica e histórica
Em meio às obras de arte, a 34ª Bienal de São Paulo optou por incluir enunciados: obras culturais que não foram produzidas especialmente para a exposição. Entre eles, estão vasilhas cerâmicas produzidas por indígenas brasileiros e estrangeiros, peças resgatadas do incêndio do Museu Nacional do Rio de Janeiro, um sino de igreja, entre outros objetos que falam de resiliência e mudança desde os tempos coloniais.
“O tema da Bienal ressalta processos de resistência, de ruptura e de transformação”, conta a arqueóloga Marianne Sallum, do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP). Ela diz que a curadoria da exposição soube de seu trabalho por meio de reportagem publicada no Jornal da USP e a procurou, iniciando conversas sobre como alinhar os achados ao tema pensado.
O resultado é uma sala com oito vasilhas cerâmicas de vários museus brasileiros, além de uma cedida pessoalmente por Sallum. Ao centro, uma panela tupiniquim. “Eles organizaram em sequência cronológica mostrando a persistência dessa cultura indígena”, explica.
Projeto
Arqueologia do colonialismo e da persistência: Uma abordagem comparativa das práticas indígenas entre São Paulo (Brasil) e a Nova Inglaterra (Estados Unidos) (nº 19/17868-0); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Pesquisador responsável Astolfo Gomes de Mello Araujo (USP); Beneficiária Marianne Sallum; Investimento R$ 203.497,56.
Artigos científicos
SALLUM, M. e NOELLI, F. S. A pleasurable job… Communities of women ceramicists and the long path of Paulistaware in São Paulo. Journal of Anthropological Archaeology. vol. 61. mar. 2021
NOELLI, F. S. e SALLUM, M. A cerâmica paulista: Cinco séculos de persistência de práticas tupiniquim em São Paulo e no Paraná, Brasil. Mana. v. 25, n. 3, p. 701-42. 2019.
NOELLI, F. S. e SALLUM, M. “Para cozinhar… panelas da Cerâmica Paulista”. Habitus – Revista do Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia. v. 18, n. 2, p. 501-38. jul.-dez. 2020.
Capítulo de livro
SALLUM, M. e NOELLI, F. S. Politics of regard and the meaning of things: The persistence of ceramic and agroforestry practices by women in São Paulo. In: PANICH, L. e GONZALEZ, S. (eds.). Handbook of the Archaeology of Indigenous-colonial interaction in the Americas. Nova York. p 338-56. jul. 2021.