Novos resultados de sequenciamento do material genético de 2.723 pessoas revelam maior ancestralidade indígena e africana e ressaltam as marcas de violência no processo que formou a população nacional
Luiz Braga
Não é surpresa para ninguém que o povo brasileiro é miscigenado, mas os detalhes de como essa história se deu, e suas consequências, vêm sendo revelados aos poucos por geneticistas, além dos historiadores. O mais recente estudo, publicado em maio na revista científica Science, aprofunda e amplia o retrato do brasileiro a partir do sequenciamento do material genético de 2.723 pessoas de todas as regiões do país. Os resultados revelam uma forte ancestralidade africana e indígena na linhagem materna, resultado de uma dinâmica de violência contra as mulheres, e uma quantidade inesperada de variantes genéticas desconhecidas, com potenciais consequências na saúde.
“É muito bonito enxergar no DNA o que já sabíamos dos livros de história”, diz a geneticista Lygia da Veiga Pereira, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP) e idealizadora do projeto DNA do Brasil, que visa traçar um retrato genômico da população por meio do sequenciamento completo de amostras colhidas no país inteiro. Segundo ela, até cerca de 10 anos atrás, a diversidade genética amostrada em populações humanas era muito baixa, com uma proporção em torno de 80% de ascendência europeia. Isso porque a maior parte dos estudos era feita no hemisfério Norte. No Brasil, o foco era nas regiões Sul e Sudeste, onde até agora foi encontrada menor presença de ancestralidade africana e indígena. O investimento na ampliação desse retrato foi o pontapé inicial do Programa Genomas Brasil do Departamento de Ciência e Tecnologia (Decit), do Ministério da Saúde, e se iniciou no final de 2019 – embora o início da pandemia de Covid-19, poucos meses depois, tenha adiado as atividades por quase dois anos.
Pereira começou a se interessar pela diversidade genética da população quando percebeu, aproximadamente 20 anos atrás, que os embriões descartados em clínicas paulistanas de reprodução assistida, disponíveis para sua pesquisa com células-tronco, tinham ancestralidade 90% europeia. Não parecia correto em termos de país, mas refletia o público daquele atendimento. Enquanto isso, o geneticista Sérgio Pena, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), espiava o DNA de brasileiros de várias regiões com as ferramentas disponíveis na época, muito mais limitadas do que as atuais. Em 2000, ele publicou – primeiro na revista Ciência Hoje, de divulgação de ciência, e depois no periódico acadêmico American Journal of Human Genetics – o resultado da análise de 200 amostras de pessoas brancas. Três em cada cinco tinham herança materna indígena ou africana, o que era mais do que se esperava, de acordo com ele. O estudo foi noticiado no segundo ano de atividade de Pesquisa FAPESP (ver nº 52).
Alexandre Affonso / Revista Pesquisa FAPESP
Pena continuou a aprofundar os estudos e juntou forças com outro grupo pioneiro no estudo do DNA brasileiro – o do geneticista Francisco Salzano (1928-2018), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Em parceria com o grupo mineiro, os geneticistas gaúchos perceberam, em trabalho liderado por Maria Cátira Bortolini que incluiu o mestrado de Tábita Hünemeier, que a contribuição africana era bem mais ampla do que apontavam os registros históricos sobre a escravização, que seria muito concentrada em Angola, no centro-oeste do continente. A região ocidental, onde ficam Senegal e Nigéria, também revelou um aporte expressivo no material genético – mais em São Paulo do que no Rio de Janeiro, apontando assimetrias no comércio de pessoas, de acordo com artigo publicado em 2007 na revista científica American Journal of Biological Anthropology (ver Pesquisa FAPESP nº 134). “Não há outro país no mundo com tanta miscigenação quanto o Brasil”, afirmou Pena em entrevista concedida em 2021 (ver Pesquisa FAPESP nº 306).
Entrevista: Tábita Hünemeier
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Agora os meios são muito distintos daquela época, o que permitiu o estudo publicado na Science. Nele, a herança europeia caiu para cerca de 60%, enquanto a ancestralidade africana aparece com 27% da contribuição e a indígena 13%, com a assimetria sexual apontada por Pena: a linhagem paterna, expressa no cromossomo Y, presente apenas nos homens, é predominantemente (71%) europeia. Enquanto isso, o DNA das mitocôndrias – parte das células transmitida apenas da mãe para os filhos – carrega 42% de ancestralidade africana e 35% indígena. “A única explicação são quatro séculos de violência em diversos sentidos”, resume Hünemeier, atualmente professora no IB-USP e uma das coordenadoras do trabalho. Ela ressalta que não é incomum ouvir de pessoas mais velhas relatos do tipo “minha avó foi pega no laço”, sem atenção ao que isso significa. Em gerações mais recentes, o característico passou a ser o casamento entre ancestralidades parecidas. Para a pesquisadora, os resultados ajudam a derrubar a farsa da democracia racial que compõe a identidade nacional, já que a miscigenação, em grande medida, não foi consentida.
“O Brasil precisa fazer uma exegese sobre sua história e parar de dizer que somos um país de mestiçagem voluntária”, completa a historiadora Maria Helena Machado, da USP, que não participou do trabalho. “Nossa mãe é africana, nossa avó é indígena e nosso avô é um europeu que não se casou com ela e teve filhos ilegítimos.” Ela é especialista em gênero e maternidade na escravidão, sistema que atravessou todo o período colonial e o Império. Entre outros trabalhos, em 2024 ela publicou, em parceria com o historiador Antonio Alexandre Cardoso, da Universidade Federal do Maranhão, o livro Geminiana e seus filhos: Escravidão, maternidade e morte no Brasil do século XIX (Bazar do Tempo). “A mulher escravizada – indígena ou africana – estava a serviço do escravizador, tornando corriqueiros os assédios e estupros”, afirma.
Luiz Braga
As mulheres eram, assim, duplamente escravizadas: funcionavam como trabalhadoras e reprodutoras. “No corpo da mulher escravizada se deu a colonização.” Machado explica que as políticas coloniais portuguesas e do país independente, a partir de 1822, foram sempre de estímulo à mestiçagem e ao branqueamento. Um exemplo: José Bonifácio de Andrada e Silva (1763‑1838), como deputado da Assembleia Constituinte em 1823, apresentava propostas para contribuir com a formação do povo brasileiro por meio de casamentos entre mulheres afrodescendentes e indígenas com homens brancos. Era parte de um projeto “civilizatório” em que a população negra seria integrada à europeia. A continuidade da escravidão até 1888, porém, manteve as mulheres escravizadas sujeitas aos que detinham o controle de seus corpos. “Tudo isso leva à situação que os geneticistas agora descrevem”, conclui Machado.
Interessante também é a ampla diversidade de etnias africanas, como Hünemeier já vinha percebendo desde o início da carreira científica. Gente que nunca se encontraria na África, por viver em países e comunidades distantes, foi posta à força nos mesmos navios negreiros e agrupada nos contextos de trabalho escravizado. A ideia era reunir pessoas de culturas diferentes, que nem falavam a mesma língua, para minimizar o risco de elas se organizarem para combater seus “senhores”. O resultado é um amálgama de todo um continente, que só se encontra em terras brasileiras. “É o país com mais ancestralidade africana fora da África”, afirma a geneticista.
Além do afluxo inicial de portugueses a partir do século XVI, a diversidade europeia também se revela alta, com o grande aporte de imigrantes da Alemanha e da Itália nos séculos XIX e XX, além de uma amostragem mais esparsa de outros países. Um dado curioso foram 10 descendentes de japoneses amostrados em São Paulo, que não apresentaram sinais de miscigenação – e assim revelaram uma contribuição muito restrita e recente para a composição genética da população nacional.
Luiz Braga
O artigo define a colonização da América como o maior deslocamento populacional na história humana. No Brasil, foram por volta de 5 milhões de europeus e 5 milhões de africanos transplantados para a região até então povoada por cerca de 10 milhões de indígenas que falavam mais de mil idiomas. Esses povos foram dizimados, com um declínio populacional de 83% no interior do país e 98% no litoral de 1500 até hoje.
“Esperávamos encontrar variantes genéticas novas, mas os resultados foram muito além”, afirma a geneticista Kelly Nunes, que se empenhou na análise dos dados durante o estágio de pós-doutorado no IB-USP no laboratório de Hünemeier, ao lado de três outros colegas com quem divide o posto de primeiros autores do artigo: Marcos Castro e Silva, Maira Ribeiro e Renan Lemes. As variantes são diferenças na sequência de uma pessoa em relação ao genoma de referência. “Detectamos 78 milhões de variantes, dos quais quase 9 milhões não tinham registro em nenhum outro banco de dados.” Ficou claro que o DNA que compõe a população brasileira inclui uma amostragem de populações negligenciadas do ponto de vista genômico, especialmente africanas e indígenas da América do Sul. Nos próximos tempos, com mais amostragem, será possível refinar a dimensão desse manancial de novidades genéticas. “Estabelecemos parcerias com colaboradores para conseguir amostras das cinco regiões brasileiras, o que permitiu maior acesso à ancestralidade africana e indígena”, detalha a pesquisadora.
Luiz Braga
Aproximadamente 36 mil entre os quase 9 milhões de novas variantes descritas aparentam ter efeitos nocivos por gerarem anomalias nas respectivas proteínas – com perda de sua função, por exemplo – e podem estar associadas a doenças como câncer, disfunções metabólicas ou doenças infecciosas. “O que descobrirmos sobre essas variantes pode vir a ser extrapolado para povos que não foram amostrados, como no continente africano”, propõe Nunes. O conhecimento da ancestralidade, e de como as propensões a doenças estão distribuídas no genoma e nas populações do mundo, pode ajudar a democratizar o acesso à saúde de precisão.
Ao analisar genes com sinais de terem sido favorecidos pela seleção natural, geralmente um aumento de frequência em relação ao que se esperaria aleatoriamente, destacaram-se aqueles ligados à fertilidade, ou ao número de filhos gerados, com origem na ancestralidade europeia. É um traço que certamente trouxe benefícios durante o processo de colonização, em que os portugueses que aqui se instalaram rapidamente ampliaram sua presença. Além disso, genes de resposta imunológica de origem africana apresentam sinais de seleção, refletindo o histórico de um amplo cardápio de agentes patogênicos.
Alexandre Affonso / Revista Pesquisa FAPESP
Os resultados levantam, ainda, pistas genéticas para doenças metabólicas concentradas na ancestralidade indígena, aparentemente ligadas ao contexto gradual de mudança nos hábitos alimentares. “Passamos a consumir alimentos industrializados, o que gera um ambiente de seleção natural para certos genes”, explica Nunes.
Um desafio do estudo foi a análise dos dados, que contou com infraestrutura de computação em nuvem cedida pelo Google. “No Brasil não havia profissionais qualificados para lidar com esse volume de informações”, conta a geneticista, que afirma ter aprendido muito no projeto, que também qualificou muitas outras pessoas. Outros 7 mil genomas já estão sequenciados, ampliando a busca por representatividade. As autoras prometem novos resultados em breve.
Iniciativas semelhantes em outros países da região também poderão contribuir para o entendimento da história sul-americana. “Detectamos um componente específico de ascendência genética pré-colombiana, presente principalmente no centro-oeste da Argentina”, contou a Pesquisa FAPESP, por e-mail, o geneticista argentino Rolando González-José, pesquisador do Centro Nacional Patagônico (Cenpat) e coordenador do Programa de Referência e Biobanco Genômico da População Argentina (PoblAr), que não participa do projeto da USP. “As suposições de longa data sobre a dinâmica da população no período pós-contato com os colonizadores são insuficientes para explicar a história evolutiva subjacente à diversidade genética nas populações argentinas modernas.” As colaborações com pesquisadores brasileiros, a seu ver, podem render frutos.
A reportagem acima foi publicada com o título “Pai europeu, mãe africana ou indígena” na edição impressa nº 352 de junho de 2025.
Projeto Rastreando mudanças evolutivas na América pré e pós-contato usando dados genômicos de séries temporais (nº 21/06860-8); Modalidade Jovem Pesquisador – Fase 2; Pesquisadora responsável Tábita Hünemeier (USP); Investimento R$ 1.358.298,83.
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