Uma torre de Babel. Assim podemos definir a cidade de São Paulo no início do século XX. Nesse período de intensas transformações, principalmente pela chegada de milhares de imigrantes, em grande parte italianos, é que se inicia a jornada deste livro. Comer o pão, viver a cidade. Classe, etnicidade e sociabilidades em São Paulo do início do século XX, da historiadora Ana Lucia Duarte Lanna, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), analisa as abruptas mudanças na capital paulista a partir dos processos imigratórios e por um ângulo muito particular, o da comida, especificamente na figura do pão.
A autora examina no primeiro capítulo a presença dos estrangeiros na cidade. Europeus compunham a maior parcela dos novos habitantes, que supostamente vieram para “civilizar” e embranquecer a população local. Mas eles se depararam com outra realidade. A maioria dos italianos, por exemplo, era iletrada e aqui foi tratada quase como população escravizada. Muitos não tinham nenhum ofício ou habilidade profissional: iam trabalhar em posições como entregadores e condutores de carrocinhas, ou então usavam algum saber doméstico ligado à alimentação para atuar em estabelecimentos dedicados a servir refeições fora de casa. Nesse contexto, o pão se torna um item básico cada vez mais importante. Com massas como macarrão e nhoque, além de pizzas e molho de tomate, ele constrói as bases de uma cozinha étnica que será reconhecida antes nos países que receberam grande fluxo de imigrantes e só mais tarde na Itália.
A comida vai ganhar destaque no segundo capítulo, principalmente quando é discutido o acesso ao insumo mais importante naquele período: a farinha de trigo. O Brasil não cultivava o cereal e dependia das importações, sobretudo dos Estados Unidos. Além disso, a produção de pão demandava forno a lenha e fermento natural. As padarias no bairro do Bixiga, na cidade São Paulo, assim como outros comércios do gênero, costumavam compartilhar o espaço da casa e do negócio e contavam com fornos a lenha. Isso facilitava reproduzirem o pão do saber doméstico, colocando um novo marco na relação do conhecimento privado com o público.
Abastecimento e comer na cidade, aspectos que influenciaram a paisagem urbana paulistana, são os próximos temas abordados pelo livro. Mercados, chamados, em geral, de secos e molhados, são inaugurados na capital oferecendo possibilidade de trabalho a, por exemplo, entregadores e puxadores de carroça. São os armazéns que também garantem o aprovisionamento doméstico ao vender fiado, ou seja, dando crédito aos clientes, cujo aval é possibilitado pelas relações de vizinhança. Naquele momento, o tipo de alimento consumido passa por uma grande e rápida mudança, com a chegada de muitos produtos importados como “pilhas e pilhas” de latas de molho de tomate, azeite, massas.
Em relação à prática de comer fora, a autora analisa nos últimos capítulos os estabelecimentos comerciais que surgem, sobretudo padarias e confeitarias, vislumbrando novas sociabilidades. Também lança luz no tratamento desigual que os vendedores ambulantes recebiam, perseguidos pelo poder público por serem considerados “sujos”, enquanto os novos estabelecimentos eram vistos como estandartes da modernidade e civilidade. Podemos inferir que a desigualdade se fazia presente muito fortemente não só em termos de classe social, mas racial. Os negros eram considerados cidadãos de segunda classe e sua forte presença no Bixiga foi apagada do mapa ao longo do século XX.
O higienismo oficial foi muito duro com esse segmento da população, por acreditar que essas pessoas não tinham espaço em seu projeto de modernidade. Em função da opção por comércios formais, a comida vendida na rua pelas quitandeiras torna-se, a partir desse ponto de vista, “inapropriada”, assim como as mulheres que a preparavam e a comercializavam. Paulatinamente, esse tipo de comércio ambulante foi escasseando, assim como oportunidades de trabalho para uma parte da população mais pobre.
Em suma, o livro, resultado de sólida pesquisa, mostra por meio de linguagem acessível como a alimentação pode ajudar a entender as mudanças sociais, culturais e econômicas vivenciadas pela cidade de São Paulo no período em questão.
A antropóloga Janine Helfst Leicht Collaço é professora da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás (UFG).
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