Não foi apenas o conhecimento acerca do golpe de Estado e da própria ditadura militar que avançou nos últimos anos. Mais recentemente, pesquisadores brasileiros passaram a se dedicar também à compreensão de como o Estado, por intermédio dos sucessivos governos, vem lidando com o legado de graves violações de direitos humanos do período. Até meados dos anos 1980, o tema praticamente não constituía objeto de estudo para cientistas sociais, tampouco para as humanidades de modo geral, inclusive fora do país. Foi somente a partir de 1995, com o lançamento dos três volumes da obra Transitional justice: how emerging democracies reckon with former regimes, editada por Neil Kritz e publicada pelo United States Institute of Peace, que a junção de duas noções distintas (transição + justiça) tornou a expressão “justiça de transição”, e consequentemente esse novo saber, conhecida.
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Embora autores como o filósofo norueguês Jon Elster acreditem que a ideia de justiça de transição seja tão antiga quanto a própria democracia1, na modernidade suas origens estão conectadas às duas grandes guerras mundiais e seu desenvolvimento associado aos julgamentos de remanescentes das juntas militares na Grécia, em 1975, e na Argentina, em 19832. A instalação do Tribunal Penal Internacional e o fato de as Nações Unidas terem criado, em 2012, uma relatoria especial sobre a promoção da verdade, justiça, reparação e garantias de não repetição também são considerados marcos importantes. Não se trata de uma forma distinta de justiça; a noção diz respeito a uma forma ampla de justiça durante determinada transição política – por exemplo, de uma ditadura militar para a democracia – e envolve a ideia de que instituir um regime democrático leva à substituição de um regime de força pelo Estado de direito, o que implica tornar cada cidadão responsável por suas ações. “Em poucos anos”, observa o jurista argentino Juan Méndez, da American University, “a comunidade internacional fez consideráveis avanços em direção ao reconhecimento de que o legado de graves e sistemáticas violações gera obrigações dos Estados para com as vítimas e as sociedades”.3
Isso significa que hoje os Estados têm o dever de reparar, de oferecer justiça e verdade, e de tornar instituições, como as forças de seguranças, democráticas. Cabe ressaltar que o enfoque principal está nos direitos e nas necessidades das vítimas. Em relação ao caso brasileiro, é no cumprimento destas obrigações que se inserem, por exemplo, iniciativas como a abertura de arquivos da ditadura e a criação da Comissão Nacional da Verdade. Constituem, portanto, foco de investigação para os pesquisadores interessados no caso nacional tópicos como a Lei da Anistia, a ausência de punição aos torturadores, o arranjo institucional que tem assegurado a impunidade aos agentes do Estado, a legislação reparatória sancionada a partir de 1995, o papel das Forças Armadas e os milhões de documentos oficiais já desclassificados pelo Estado brasileiro, ou por países como os Estados Unidos, o Reino Unido ou a Alemanha, sobre a ditadura iniciada em 1964.
Interdisciplinar por definição, essa área do conhecimento tem despertado o interesse de cientistas políticos e sociais, filósofos, historiadores, juristas e estudiosos das relações internacionais dispostos a entender, por exemplo, o envolvimento de várias instituições do sistema ONU em comissões de verdade e em tribunais penais internacionais, bem como o papel desempenhado por organizações não governamentais de direitos humanos nesses processos de acerto de contas. Por adotar approaches que não são exclusivamente jurídicos, mas buscam incorporar, de forma ampla, as várias dimensões de justiça capazes de contribuir para a reconstrução social, baseiam-se na crença da universalidade dos direitos humanos e encontram sustentação na legislação internacional de direitos humanos e na legislação humanitária, o esforço faz muito mais sentido do que pode sugerir o senso comum – acostumado a classificar incursões ao passado como exercícios arqueológicos inúteis ou, pior, “revanchismo”.
Para a argentina Ruti Teitel, professora na New York Law School, por definição, transições constituem tempos de contestação de narrativas históricas. “Desse modo, transições apresentam o potencial para counter-histories.”4 Para além do esforço de incluir na história recente do país a narrativa de vítimas e sobreviventes do período, no caso do Brasil isso equivale a pensar o que a ênfase inicial no dever de reparar economicamente as vítimas da ditadura tem a dizer, por exemplo, sobre a qualidade da democracia que vem sendo construída desde 1985, sobre suas instituições e sobre a permanência da tortura e dos desaparecimentos forçados. Sobre, em síntese, a constância do que pior existia no passado, no presente. “Eu creio que a reconciliação é um objetivo fundamental de qualquer política de justiça de transição, porque o que não queremos é que se reproduza o conflito”, avalia Juan Méndez. “Nesse sentido, tudo o que fazemos – justiça, verdade, medidas de reparação – tem de estar inspirado pela reconciliação, mas a reconciliação verdadeira, não a falsa reconciliação que na América Latina se pretendeu como desculpa para a impunidade.” Na interpretação de Méndez, a “verdadeira reconciliação” exige o reconhecimento dos fatos, não pode ser imposta por decreto e “tem de ser construída nos corações e mentes de todos os integrantes da sociedade por intermédio de um processo que reconheça o valor de cada ser humano e sua dignidade”.5
Avanços da Comissão da Verdade
O advogado e professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) Pedro Dallari, coordenador da Comissão Nacional da Verdade (CNV), diz que os trabalhos da comissão resultaram em avanços importantes. Um exemplo, que classifica como um “fato inédito, um divisor de águas”, seria a concordância das Forças Armadas brasileiras, tornada pública em abril deste ano, em investigar atos de violação aos direitos humanos ocorridos em suas dependências durante a ditadura militar. “Essa é uma atitude muito boa das Forças Armadas”, diz Dallari.
Criada em 2011 e instituída no ano seguinte, a CNV investiga violações aos direitos humanos ocorridas no país entre 1946 e 1988. Na atual fase de funcionamento, a comissão se dedica a consolidar todas as informações iniciais provenientes de pesquisas em documentos armazenados em arquivos públicos, de testemunhos e de oitivas para entregar seu relatório final em 10 de dezembro deste ano, Dia Internacional dos Direitos Humanos. Na área de pesquisa, a comissão se divide em 13 grupos de trabalho.
Até agora a CNV divulgou quatro relatórios parciais, sobre casos ou eventos mais específicos ocorridos durante a ditadura, como a prisão, tortura, morte e desaparecimento do deputado Rubens Paiva em janeiro de 1971 e o funcionamento da Casa da Morte em Petrópolis, centro clandestino de tortura mantido pelo Centro de Informações do Exército na região serrana fluminense na primeira metade dos anos 1970. Outros relatórios parciais serão produzidos até o final do ano.
Dallari lembra que não houve contestação às informações divulgadas pela CNV até o momento. “A apuraçãodo que ocorreu durante a ditadura não começou com a CNV e também não acabará com o encerramento de nossos trabalhos. Não vamos esgotar o tema. Novas informações sempre poderão surgir no futuro”, afirma Dallari.
Marcos Pivetta
Notas
1. ELSTER, Jon. Closing the books: transitional justice in historical perspective. Nova York: Cambridge University Press, 2004.
2. TEITEL, Ruti G. Transitional justice. Nova York: Oxford University Press, 2000; BICKFORD, Louis. Transitional justice. In: HORVITZ, Leslie Alan; CATHERWOOD, Christopher; Macmillan encyclopedia of genocide and crimes against humanity. Nova York: Facts on File, v. 3, p. 1.045-47, 2004.
3. MÉNDEZ, Juan E. Accountability for past abuses. Human Rights Quarterly. Baltimore, v. 19, n. 2, maio/1997, p. 255.
4. TEITEL, Ruti G. Transitional justice genealogy. Harvard Human Rights Journal. Cambridge (MA), v. 16, Spring/2003, p. 69.
5. MÉNDEZ, Juan E. Entrevista concedida pelo ex-preso político, ativista de direitos humanos, ex-integrante da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA e presidente do ICTJ à doutoranda Glenda Mezarobba. Nova York, 20 mar. 2007.