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Covid-19

O xadrez global da pandemia

Entre as diversas estratégias de combate à disseminação da doença, resultados de alguns países chamam a atenção

Alexandre Affonso

Em um mundo que parece ainda distante de dar um xeque-mate no Sars-CoV-2, o vírus causador da Covid-19, é notável a diferença entre os países na forma como são atingidos pela pandemia. Enquanto alguns sofreram um colapso temporário no sistema de saúde e mesmo no serviço funerário, registrando elevados índices de óbitos, outros não tiveram baixas tão expressivas. As diferentes estratégias de enfrentamento ao novo coronavírus, a quem se atribui a morte de mais de 1,2 milhão de pessoas ao redor do planeta em poucos meses e a deflagração da pior recessão econômica mundial em décadas, têm sido objeto de análise de epidemiologistas, pesquisadores de diversas áreas, autoridades e tomadores de decisão. Quais fatores permitiram a um país adotar as medidas mais acertadas?

“Alguns países claramente se saíram bem e outros foram mal, mas não é possível formular um ranking trivial”, disse a Pesquisa FAPESP o médico Martin McKee, professor de saúde pública europeia na London School of Hygiene and Tropical Medicine, na Inglaterra. “Seria preciso levar em conta, por exemplo, o risco enfrentado a partir dos casos importados. Alguns países com número reduzido de casos tiveram poucas viagens até eles, como certas ilhas do Pacífico.”

Uma nação insular do oceano Pacífico, a Nova Zelândia, costuma ser citada pelos especialistas como um caso bem-sucedido. “É um exemplo de um país que conseguiu atingir a Covid zero. Não significa que não tenha casos, mas que não há transmissão doméstica sustentada de infecção”, pondera McKee. De acordo com o médico, na ausência de medidas governamentais, o Sars-CoV-2 se espalha de forma exponencial e, por isso, há um forte argumento para reduzir a circulação do vírus ao menor nível possível. Além disso, ressalta o pesquisador, é importante encontrar, testar, rastrear, isolar e tratar os que estão infectados. “Os melhores sistemas encaram isso como uma investigação; tentam identificar a fonte dos surtos e agem nesses locais.”

Com uma população de 5 milhões de habitantes, a Nova Zelândia havia registrado até meados de outubro, quando esta reportagem foi finalizada, 1.864 casos de pessoas infectadas e 25 mortes pela doença, segundo a Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos. Com um sistema de alerta em quatro níveis, o país é lembrado pela rapidez com que fez e faz as intervenções, pelo fechamento das fronteiras e pela liderança firme da primeira-ministra Jacinda Ardern. 

Fiona Goodall / Getty Images Cenas da pandemia: consumidores mantêm distanciamento social em fila para entrar em mercado de Auckland, na Nova ZelândiaFiona Goodall / Getty Images

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), foram impostas medidas rigorosas de distanciamento físico e realizados com vigor a testagem, o rastreamento de contatos e o controle clínico dos infectados. O lockdown foi instituído em 25 de março, quando apenas os serviços essenciais continuaram funcionando. Na semana anterior, as fronteiras haviam sido fechadas para os não residentes.

A OMS destaca a importância de uma comunicação pública clara e regular e medidas para suavizar o impacto econômico. “A Nova Zelândia certamente se beneficiou por ser um país insular de alta renda, com um sistema de saúde avançado”, destacou o médico Takeshi Kasai, diretor regional da organização para o Pacífico Ocidental, em nota divulgada pela OMS em meados de julho. “Mas eles não tomaram nada como certo. Trabalharam em conjunto para limitar e conter a Covid-19 em seu território.” A abertura gradual começou no fim de abril e em junho o país foi para o nível de alerta 1, mais brando, suspendendo restrições de mobilidade, reuniões e serviços. Uma segunda onda foi declarada controlada no início de outubro.

“A chave para uma boa resposta foi agir cedo e ouvir as recomendações científicas e da área da saúde”, afirmou a Pesquisa FAPESP o epidemiologista Hassan Vally, professor de saúde pública da Universidade La Trobe, na Austrália. Ele apontou também para Taiwan, Vietnã e a própria Austrália – onde se chegou a adotar toque de recolher entre 20h e 5h em Melbourne – como exemplos de nações bem-sucedidas no combate ao Sars-CoV-2.

“Uma boa liderança e a confiança da população no governo são os fatores mais importantes para o controle do vírus.” Vally ponderou, no entanto, que mesmo nesses países erros foram cometidos. No caso australiano, segundo ele, um equívoco ocorreu na implementação da quarentena em hotéis para pessoas que retornavam de viagem. Por erros no processo, o pessoal que trabalhava nesses estabelecimentos virou o foco de uma segunda onda de Covid-19 no país.

Chung Sung-Jun / Getty Images  Agentes desinfetam rua de Seul, na Coreia do SulChung Sung-Jun / Getty Images 

Rastrear o vírus
Para o médico sanitarista Ivan França Junior, da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), duas das principais abordagens de sucesso adotadas desde março são a testagem agressiva e sustentada, com a busca ativa de infectados e cuidados aos que tiveram resultados positivos, e as políticas de distanciamento físico. “O extremo do distanciamento físico é o lockdown”, destaca. “Mas há medidas intermediárias, como manter 1,5 metro de distância entre as pessoas, usar máscara e evitar o toque corporal e na área T do rosto [olhos, nariz e boca].”

Com 51 milhões de habitantes, a Coreia do Sul foi um dos primeiros países a registrar um surto de Covid-19 e se destacou por ter contido rapidamente o vírus sem fechar a economia nem impor restrições de mobilidade à população. Cinco anos antes, em 2015, os sul-coreanos haviam enfrentado um surto da Síndrome Respiratória do Oriente Médio (Mers), provocado por outro coronavírus, com 38 mortes, 185 casos confirmados e perdas de US$ 2,6 bilhões em razão da queda no turismo. Com o registro de mais de 500 novos casos diários de Sars-CoV-2 no começo de março, o país reduziu drasticamente o número de infecções com testes e rastreio, isolando e tratando precocemente os infectados.

Enquanto a epidemia ganhava intensidade, foram instaladas 600 clínicas de rastreamento, que realizaram até 20 mil testes por dia. O governo trabalhou em parceria com o setor privado e em sintonia com a comunidade científica. “A principal razão de sucesso da Coreia do Sul é a testagem massiva com exames moleculares RT-PCR, que detectam a presença do vírus no corpo da pessoa quando ela está no período infeccioso, seguida do rastreamento de contatos e isolamento dos infectados”, pondera o físico Vitor Mori, integrante do Observatório Covid-19 BR, que reúne pesquisadores dedicados a estudar e entender a doença. “Vi no Brasil muita gente cometendo o erro de barrar a entrada de pessoas que tiveram resultado positivo em teste rápido, sorológico, que detecta os anticorpos produzidos semanas depois da infecção, quando a pessoa já não transmite mais o microrganismo”, aponta Mori, atualmente em estágio de pós-doutorado na Universidade de Vermont, nos Estados Unidos.

Na Coreia do Sul, centenas de funcionários foram mobilizados para fazer o rastreamento dos casos da doença. Transações de cartão de crédito, que permitem identificar por onde os compradores andaram, e monitoramento de transeuntes foram usados como fonte de informações – medidas consideradas controversas pelo risco de violar direitos individuais e a privacidade dos cidadãos. Até meados de outubro, foram registradas 430 mortes no país em decorrência da Covid-19. 

Ernesto Ryan / Getty Images Estudantes usam máscara no retorno às aulas em Montevidéu, no Uruguai Ernesto Ryan / Getty Images

Também na Ásia, dividindo uma fronteira terrestre de mais de mil quilômetros com a China, o Vietnã, com seus 95 milhões de habitantes, registrava somente 35 mortes pela Covid-19 até meados de outubro, com pouco mais de 1.100 casos. A detecção precoce e a estratégia de contenção implementada são apontadas por especialistas como motivos para o sucesso sanitário contra o Sars-CoV-2 até o momento, facilitada pela existência de um governo central forte e autoritário, que possibilitou a tomada de ação rápida.

O premiê Nguyễn Xuân Phúc adotou uma retórica de guerra contra o novo coronavírus, convocando a população a lutar contra o “inimigo”. Avisos em alto-falantes nos vilarejos, um sistema de comunicação da época da Guerra do Vietnã (1955-1975), orientaram os moradores sobre o uso obrigatório de máscara, medidas de higiene e a importância do distanciamento social para o combate ao vírus. 

O lockdown nacional foi suspenso em 23 abril, após uma política de rastreamento de contato que ia além do que em geral se fez em outros países. Enquanto a Alemanha, outro exemplo de combate ao vírus, documenta os infectados e seus contatos diretos, no Vietnã o rastreamento vai até o segundo, terceiro e quarto níveis de contato dos contaminados. A adesão da população foi expressiva. Um aplicativo para rastreamento foi baixado por 20 milhões de pessoas em apenas quatro semanas.

Os alemães registravam em meados de outubro quase 10 mil mortes em decorrência da doença, mas com a França e a Itália contando o triplo de óbitos e o Reino Unido quatro vezes mais, o país também é visto como bem-sucedido no enfrentamento do vírus. Investindo 11% do seu Produto Interno Bruto (PIB) na área da saúde, a Alemanha entrou na pandemia com a vantagem de possuir um robusto sistema de saúde público e privado e ampla capacidade hospitalar, incluindo leitos de unidades de terapia intensiva (UTI).

Maja Hitij / Getty Images Em meio à segunda onda da pandemia, trabalhadores alemães saem às ruas para exigir assistência do governoMaja Hitij / Getty Images

O governo formou um grupo interministerial para gerir a crise e descartou um lockdown completo. O país investiu em testes gratuitos desde o início e no rastreamento de contatos e deu atenção especial à população idosa, limitando a transmissão nos abrigos de longa permanência, o que provavelmente contribuiu para a baixa letalidade da doença em comparação aos vizinhos europeus. Os alemães também foram pioneiros no teste RT-PCR. As medidas de distanciamento físico implementadas em março começaram a ser relaxadas no mês seguinte, mas o governo voltou a impor restrições em outubro em razão de uma segunda onda de infecções que aumentou de forma exponencial o número de casos em toda a Europa.

Na América do Sul, salta aos olhos a diferença do Uruguai em relação aos seus vizinhos – Brasil e Argentina figuram entre os piores do ranking global de casos e de óbitos pela Covid-19. Em artigo preprint (sem a revisão de pares), cientistas uruguaios relatam o desenvolvimento de um teste de diagnóstico molecular para detectar o Sars-CoV-2 logo no começo da pandemia, cuja metodologia foi transferida para institutos de pesquisa, hospitais públicos e laboratórios acadêmicos ao redor do país, dando origem a uma rede nacional de laboratórios para diagnóstico. Com isso, o país não padeceu da falta de testes para detecção do vírus como ocorreu no Brasil e em outros lugares do mundo.

“A estratégia uruguaia baseou-se em uma forte sinergia estabelecida entre as autoridades nacionais de saúde e a comunidade científica. Assim, a academia respondeu rapidamente para desenvolver testes RT-PCR nacionais”, destacaram os pesquisadores no artigo. Segundo eles, a rede de laboratórios para diagnósticos de Covid-19 realizou a maior parte dos testes moleculares no país, o que ajudou a conter a transmissão doméstica. O fato de o Uruguai ser um país pequeno, ter um sistema de saúde de acesso universal de qualidade e uma população de apenas 5,4 milhões de habitantes também é apontado como razão para o sucesso no enfrentamento ao vírus. Segundo o site Worldometers, o país apresentava em meados de outubro um índice de 15 mortes por 1 milhão de habitantes, enquanto o Brasil tinha 709 mortes por milhão de pessoas e a Argentina 542.

A pesquisadora Elize Massard da Fonseca, do Departamento de Gestão Pública da Escola de Administração de Empresas da Fundação Getulio Vargas (Eaesp/FGV), é coorganizadora de um livro atualmente em edição pela Universidade de Michigan (EUA) no qual especialistas comparam as decisões de enfrentamento à pandemia tomadas pelos países.

Quatro variáveis serão observadas pelos autores: a política social para controle da crise, o tipo de governo (regime democrático ou autoritário), as instituições políticas formais e a capacidade do Estado de controle sobre a administração pública. “Talvez o livro possa explicar por que alguns países optaram por responder de forma mais rápida e por ter uma coordenação melhor”, diz Fonseca. “Nosso propósito não é apontar o que é melhor ou pior, mas explicar por que os países optaram por tomar determinadas decisões.”

As lições poderão vir de lugares inesperados, como de alguns países da África. Senegal, Libéria e Ruanda estão entre os que se destacam no continente, com taxas inferiores a 20 mortes por milhão. Mesmo que possa haver subnotificação de casos e de óbitos decorrentes da doença, não se viram nesses países cenas de horror como as ocorridas no Equador, em Manaus, em Nova York e na Itália.

Uma população mais jovem, diferenças na resposta imune e fatores genéticos estão incluídos nas hipóteses para a baixa mortalidade geral no continente africano, mas não se exclui uma resposta de saúde pública mais adequada de enfrentamento à pandemia, como o uso de máscaras. “Países que tiveram experiência recente com o ebola podem ter colocado em prática algum sistema para controlar outras infecções e, em particular, ter atuado para mobilizar fortemente o apoio da comunidade contra o novo coronavírus”, sugere McKee. A experiência recente de combate a epidemias parece ser mais um fator a favorecer os países no intricado jogo disputado contra o novo coronavírus.

A escolha da Suécia
Ao adotar medidas menos restritivas, país nórdico tem impacto no PIB similar ao dos vizinhos, mas um número de mortes muito mais alto

Uma estratégia menos agressiva que a adotada pelos vizinhos na Escandinávia e um cientista-chefe fazendo declarações sobre imunidade coletiva levaram a Suécia ao centro dos debates sobre as abordagens a seguir para enfrentar a pandemia da Covid-19.

As autoridades não fecharam o país totalmente, mantiveram o comércio, restaurantes e bares abertos, e não interromperam as aulas presenciais para alunos abaixo de 16 anos – no ensino médio e nas universidades, o ensino passou a ser on-line. Os resultados não foram os melhores.

Ao não limitar a mobilidade da sua população, as pessoas puderam seguir basicamente com sua vida normal, com algumas restrições. Essa relativa normalidade, entretanto, não resultou em um melhor desempenho econômico no período e ainda levou a uma taxa de mortes per capita muito superior à dos vizinhos.

Em comparação com outras nações nórdicas, que impuseram lockdowns, a Suécia registra uma taxa bem mais alta de mortes per capita pela doença, cerca de 10 vezes maior que a da Noruega e a da Finlândia e cinco vezes superior à da Dinamarca. Já o impacto da pandemia sobre o PIB não foi muito diferente dos seus vizinhos até agora.

Em abril, o epidemiologista da Agência de Saúde Pública da Suécia Anders Tegnell, arquiteto da estratégia de combate à pandemia no país, concedeu uma entrevista à revista Nature explicando que a abordagem se baseou mais na responsabilidade individual dos cidadãos e na recomendação de medidas, em vez da imposição delas. “Todo país tem de atingir a imunidade coletiva de uma forma ou de outra e vamos alcançá-la de um modo diferente”, declarou Tegnell, quando ainda não se sabia ao certo sobre a disseminação do vírus por pessoas assintomáticas e sobre a possibilidade de reinfecção.

“Embora Dinamarca, Noruega, Suécia e Finlândia tenham imposto restrições muito mais duras durante a primeira onda, no fim de junho todos os quatro países tinham níveis semelhantes de restrição, na medida em que as regras de lockdown eram progressivamente aliviadas”, escreveram em um relatório cientistas do Grupo Independente de Aconselhamento Científico para Emergências (Independent Sage), do Reino Unido. “Na verdade, as restrições na Suécia foram até mais severas que as da Dinamarca, da Noruega e da Finlândia durante o verão.”

Uma reportagem publicada na revista Science em outubro informa que a abordagem sueca teve um preço muito alto, com taxas de mortalidade próximas das dos Estados Unidos, com sua resposta vagarosa e ineficaz. Com mais de 8 milhões de casos e 220 mil mortes por Covid-19 em meados de outubro, a maior economia do mundo é vista por muitos como um antiexemplo no combate à pandemia. De falhas no desenvolvimento de um teste diagnóstico para o vírus à postura anticientífica e negacionista do presidente Donald Trump, especialistas apontam uma série de erros que mergulharam o país nessa situação.

A estratégia sueca não deu tão errado quanto a norte-americana, mas também recebe críticas. “As consequências para os mais vulneráveis foram chocantes. O vírus correu livremente nas casas de repouso, onde perto de mil pessoas morreram em questão de semanas”, diz o texto do Independent Sage sobre a Suécia, referindo-se à fase inicial da pandemia. As políticas suecas, segundo o texto, estão se aproximando aos poucos das dos países vizinhos. Uma fonte diz que as autoridades estão “silenciosamente mudando de abordagem”, aumentando o número de testes e retirando a recomendação de não testar crianças entre 6 e 16 anos. O uso de máscaras para a população, no entanto, ainda não é recomendado.

Artigos científicos
MORENO, P. et al. An effective Covid-19 response in South America: The Uruguayan Conundrum (preprint). medRxiv. 27 jul. 2020.
GREER, S. L. et al. The comparative politics of Covid-19: The need to understand government responses. Global Public Health. v. 15, n. 9, p. 1413-16. 20 jun. 2020.
OH, J. et al. National response to Covid-19 in the Republic of Korea and lessons learned for other countries. Health Systems & Reform. v. 6. 29 abr. 2020.
SHERIDAN, A. et al. Social distancing laws cause only small losses of economic activity during the Covid-19 pandemic in Scandinavia. PNAS. v. 117, p. 20468-73. 3 ago. 2020.

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