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Humanidades

Para compreender o Brasil

Ao iluminar ângulos menos conhecidos, investigações científicas propiciam melhor entendimento do processo de Independência e seus desdobramentos

Gustavo Piqueira

Dois séculos nos separam da data em que a Independência foi proclamada, às margens do Ipiranga, e ainda hoje surpreendemo-nos com aspectos relacionados não apenas ao evento histórico propriamente dito, mas também ao papel desempenhado por determinados atores e instituições. Com 67 páginas dedicadas ao bicentenário, esta edição especial de Pesquisa FAPESP, concebida, apurada e escrita ao longo dos últimos seis meses, apresenta resultados de investigações científicas sobre um tema que provavelmente nunca mobilizou tantos pesquisadores quanto atualmente. Um exemplo é o Dicionário da Independência: História, memória e historiografia, organizado pelos historiadores Cecília Helena de Salles Oliveira e João Paulo Pimenta. Prestes a ser lançada, a obra reúne 276 especialistas de 11 países e distintas gerações. Nesse e em outros trabalhos, aos intérpretes de outrora – alguns nobres do Império e vários integrantes da Academia Brasileira de Letras – uniram-se acadêmicos de todas as regiões do país e estudantes de pós-graduação. O resultado aparece em leituras interdisciplinares do período, que extrapolam os acontecimentos do eixo Rio-São Paulo e buscam contextualizar a proclamação da Independência no quadro de transformações de um mundo marcado pelo surgimento dos Estados constitucionais e representativos.

Veja também:
• O suplemento especial Outras faces da Independência

• Tudo que já publicamos sobre o bicentenário da Independência do Brasil

Um dos achados resultantes desse esforço envolve a participação indígena no processo de separação política do Brasil de Portugal. Estudos recentes, desenvolvidos em arquivos que reúnem a documentação de aldeamentos e ofícios encaminhados por governos provinciais, mostram que os povos originários não eram alheios ao debate político e que, para reivindicar direitos, tomaram para si ideias correntes nas Américas e na Europa. Se as pesquisas anteriores à década de 1980 podem ser definidas como “crônicas da extinção” desses povos, no final do século passado, a partir dos debates da Assembleia Nacional Constituinte em 1987, a temática adquiriu novos contornos. Coube a intelectuais como a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha propiciar o desenvolvimento da chamada “nova história indígena”, com a análise de documentos da política indigenista.

O debate sobre a manutenção do território nacional depois da Independência ainda é importante. A historiografia tem se dedicado a demonstrar que a imagem de um território coeso foi uma narrativa construída no período imperial. Ao enfocar esse aspecto, estudiosos procuram nuançar as comparações com o que ocorreu na América hispânica – e não apenas fazer a contraposição aos processos registrados nos outros 18 países. Cabe lembrar que o atual território do Acre foi anexado em 1903. Também ganhou espaço a reflexão em torno das divergências que marcaram a constituição do Brasil, como os movimentos que se opunham à emancipação e tentativas de ruptura com o governo de dom Pedro I (1798-1834), especialmente nas províncias que tiveram suas demandas ignoradas pelo governante. A escravidão tem sido mobilizada para tentar explicar o fato de o Brasil não ter se fragmentado.

Por sua vez, investigações contemporâneas sobre o papel da ciência na construção do Brasil têm confirmado achados da década de 1960 da historiadora Maria Odila Leite Silva Dias, em que ela indicava o pragmatismo do governo português ao promover levantamentos botânicos e minerais com o objetivo de encontrar produtos que pudessem ser comercializados. A historiadora Íris Kantor observa que a ciência integrava a estratégia de sobrevivência do Império e que, ao apoiar atividades e instituições científicas, a monarquia e depois o Império empenhavam-se em criar uma imagem positiva da colonização. Nesse sentido a cartografia foi fundamental. Por intermédio dos mapas era possível sinalizar o controle sobre o território e fazer a gestão e o manejo das populações, com a indicação dos locais passíveis de tributação de mercadorias.

Para além das estratégias de poder e dominação, viabilizadas com a utilização da cartografia náutica na consolidação do comércio escravista, por exemplo, mapas antigos têm possibilitado descobertas encantadoras. Foi o que aconteceu com a historiadora Fernanda Deminicis de Albuquerque que, ao inspecionar um desses documentos, recentemente exposto no Museu Naval, no Rio de Janeiro, encontrou o desenho de um indígena com menos de 1 centímetro de altura, atirando uma flecha de cima de um globo terrestre.

Imagens, aliás, constituem um capítulo à parte nas pesquisas envolvendo a temática da emancipação. Tem-se claro hoje que, ao encomendar pinturas para o Museu Paulista, o engenheiro e historiador catarinense Afonso d’Escragnolle Taunay (1876-1958) fez um recorte da história da Independência que excluiu a participação popular e tornou a narrativa elitista e pacífica. Sabe-se também que se não foi concebido como representação fidedigna da realidade, tampouco o quadro Independência ou morte! pode ser considerado mera alegoria. De acordo com a historiadora Michelli Scapol Monteiro, a pintura do paraibano Pedro Américo (1843-1905) expressa intensa pesquisa sobre a história e a cultura brasileiras. Crescente também é a atual cooperação científica entre Brasil e Portugal, como mostra a última reportagem desta edição especial.

No site de Pesquisa FAPESP há um espaço dedicado exclusivamente ao conteúdo apresentado neste número e outras reportagens, vídeos e podcasts sobre o bicentenário da Independência.

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