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Pesquisa científica

Ciência para construir uma nação

Museus, instituições de pesquisa, mapas e levantamentos dos recursos naturais ganharam importância no Império

Museu Real (conjunto de prédios ao fundo), depois renomeado como Museu Nacional, em litogravura publicada em 1861, feita por Charles Ribeyrolles a partir de fotografia de Victor Frond

Biblioteca Nacional

Além de combater revoltas internas e invasões estrangeiras, fundar vilas e ampliar o povoamento para o interior, os vice-reis, que governaram o Brasil entre 1640 e 1808, deveriam criar instituições e promover levantamentos geográficos, mineralógicos e botânicos que facilitassem a gestão do território e trouxessem mais riquezas para o governo português. O 4º vice-rei, Vasco Meneses (1673-1741), patrocinou a Academia Brasílica dos Esquecidos, a primeira sociedade literária da Colônia, que funcionou durante um ano, de 1724 a 1725. O 12º, Luís de Vasconcelos e Sousa (1742-1809), criou no centro da cidade do Rio de Janeiro, em 1784, o Gabinete de História Natural do Brasil, mais conhecido como Casa dos Pássaros, que reunia animais brasileiros para serem expostos ou enviados ao Real Museu da Ajuda e a propriedades rurais, chamadas de quintas, em Portugal – foi o embrião do Museu Nacional, formalizado em 1818 com o nome de Museu Real.

Ao vir para o Brasil em 1808, a Corte portuguesa trouxe suas instituições científicas e culturais que estimularam o conhecimento do território e a circulação de informações, por meio dos jornais que começavam a ser impressos no Rio de Janeiro. “Criar instituições de ciência era parte da estratégia de dom João VI para transformar a cidade do Rio em sede da Corte”, observa a historiadora da ciência Maria Amélia Mascarenhas Dantes, professora aposentada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).

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A historiadora da FFLCH Íris Kantor observa que as pesquisas mais recentes validam os estudos pioneiros da historiadora Maria Odila Leite Silva Dias, professora aposentada da USP. Em um deles, publicado em 1968 na Revista IHGB (Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro), Dias comenta: “O papel da política de Estado nesse movimento de estudiosos, dedicados em sua maioria às ciências naturais, merece realce particular por suas múltiplas implicações, tanto na orientação dos estudos como na mentalidade dos principais políticos da Independência”.

Nesse trabalho, ela observa o pragmatismo do governo português ao promover levantamentos botânicos e minerais – incentivados desde o fim do século XVIII pelo secretário de Estado do reino português Sebastião José de Carvalho e Melo, o marquês de Pombal (1699-1782), com o objetivo de encontrar produtos comercializáveis. “A ciência atrelada à prática era o padrão do Iluminismo seguido pelos países da Europa”, reitera a geóloga Silvia Figueirôa, da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (FE-Unicamp), em alusão ao movimento cultural liderado pela França no século XVIII.

Em 1818, ao conceber o Museu Real, a Corte pretendia “propagar os conhecimentos e estudos das ciências naturais no reino do Brasil, que encerra em si milhares de objetos dignos de observação e exame, e que podem ser empregados em benefício do comércio, da indústria e das artes”, como expresso no decreto de sua criação.

Biblioteca NacionalJardim Botânico do Rio de Janeiro, em desenho feito por Pieter Godfred Bertichem e publicado em 1856Biblioteca Nacional

O poder dos mapas
“A ciência, especialmente a cartografia, fazia parte da estratégia de sobrevivência do Império português no contexto de uma forte concorrência interimperial ”, comenta Kantor, uma das curadoras de uma exposição de mapas antigos no Museu Naval do Rio de Janeiro (ver reportagem). “Os mapas ajudaram a construir o imaginário do Brasil e a ideia de um território coeso e integrado. Eram também um instrumento de gestão e manejo das populações, ao indicar os lugares onde as mercadorias poderiam ser tributadas.”

Segundo ela, Portugal apoiou atividades e instituições científicas para “criar uma imagem positiva da colonização, amenizando as acusações de violência contra os indígenas feitas por outras nações europeias, e para mostrar seu domínio efetivo sobre o território”, diz. É o caso do mapa Nova Lusitânia, concluído em 1798 pelo astrônomo e capitão de fragata mineiro Antonio Pires da Silva Pontes Leme (1750-1805).

Adotando a ilha do Ferro, nas Canárias, como longitude 0, já que o meridiano de Greenwich seria reconhecido como padrão internacional somente em 1884, esse mapa detalha as redes de rios, ilhas, serras, povoados, aldeias indígenas, fortes, rotas terrestres e minas de ouro do Brasil. Com a historiadora Beatriz Bueno, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP, ela localizou documentos indicando que diplomatas portugueses apresentaram o Nova Lusitânia a colegas de Londres com o propósito de atestar a soberania portuguesa e afugentar interessados em explorar as riquezas do Brasil.

A historiadora Lorelai Kury, da Casa de Oswaldo Cruz da Fundação Oswaldo Cruz (COC-Fiocruz), do Rio de Janeiro, conta que o imperador dom Pedro I (1798-1834), diferentemente de sua mulher, a imperatriz Leopoldina (1797-1826), admirava pouco a ciência, mas não deixava de valorizá-la. Segundo Kury, essa foi uma das razões de ter escolhido como tutor para seu filho, em 1831, o futuro imperador Pedro II (1825-1891), José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), ministro do Império, naturalista e mineralogista.

Biblioteca NacionalO primeiro edifício em que funcionou a Biblioteca Nacional, na rua do Carmo, Rio de JaneiroBiblioteca Nacional

Cientistas autodidatas
“Até a segunda metade do século XIX, quando começaram a se impor como produtoras de ciência, as instituições tiveram pouca força, se comparadas à dos indivíduos que produziam conhecimento científico”, ressalta Kury. Havia dois grupos de cientistas: alguns poucos profissionais, contratados pelo governo ou pelas instituições, e os amadores, geralmente autodidatas, que tinham de ganhar a vida com outra profissão ou não precisavam trabalhar. “Era assim também em outros países”, comenta Figueirôa. “O químico Antoine Lavoisier [1743-1794] foi guilhotinado porque era cobrador de impostos do Antigo Regime.”

Entre os funcionários da Coroa portuguesa no Brasil estavam, por exemplo, três geólogos alemães, Wilhelm Ludwig von Eschwege (1777-1855), Wilhelm Christian Gotthelf von Feldner (1772-1822) e Friedrich Ludwig Wilhelm Varnhagen (1782-1842). Eram inspetores de minas e fizeram levantamentos mineralógicos no país durante mais de uma década, até 1821 (ver Pesquisa FAPESP no 317).

Entre os amadores havia muitos religiosos. Em 1783, José Mariano da Conceição Veloso (1742-1811), mais conhecido como Frei Veloso, saiu para as matas próximas ao Rio de Janeiro, à frente de uma expedição que durou quatro anos e resultou no livro Flora fluminensis, publicado postumamente em 11 volumes de 1825 a 1831, com a descrição de 1.626 espécies de plantas agrupadas em 396 gêneros (ver Pesquisa FAPESP nos 172 e 289). De 1824 a 1829, o frade carmelita e botânico pernambucano Leandro do Santíssimo Sacramento (1778-1829), que estudou filosofia na Universidade de Coimbra, em Portugal, foi diretor do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, o segundo do Brasil, criado em 1808 – o primeiro foi o de Belém, no Pará, em 1796, instituído por meio de uma carta régia da rainha Maria I (1734-1816), ambos com o propósito de aclimatar espécies exóticas de plantas, para cultivo no Brasil, ou nativas, para produção comercial.

Em uma categoria intermediária – autodidata, mas sendo remunerado pelo trabalho – estava o taxidermista catarinense Francisco Xavier Cardoso Caldeira (?-1810), que dirigiu a Casa dos Pássaros por 20 anos. Em um artigo publicado em 2018 na revista Filosofia e História da Biologia, três pesquisadores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) – Bruno Absolon, Francisco Figueiredo e Valéria Gallo – contam que ele dormia ali mesmo e dispunha de uma equipe de três serventes, dois auxiliares e dois caçadores, que reforçavam o acervo atirando em aves em um lago defronte ao museu, que depois eram recolhidas e empalhadas. O museu fechou em 1813 e o que sobreviveu do acervo de quase mil animais permaneceu no Arsenal de Guerra até 1818, quando foi transferido para o então recém-criado Museu Real (ver Pesquisa FAPESP no 272).

O governo português convocava especialistas para encontrar minas de salitre, mineral usado na fabricação de pólvora, e plantas com valor comercial. É o caso do mineiro José Vieira Couto (1752-1827), formado em matemática em Coimbra, contratado pela Coroa para identificar fontes de minérios que pudessem ser exploradas e lembrado em um artigo de Dantes publicado em 2005 na revista Ciência e Cultura.

Os primeiros médicos nativos
Instalada no Rio, a Corte tratou também de aumentar o número de especialistas da área médica, até então formados apenas na Europa, criando a Escola de Cirurgia da Bahia, em Salvador, e a Escola Anatômica, Cirúrgica e Médica do Rio de Janeiro, ambas em 1808 (ver cronologia abaixo). Desse modo, organizou a prática da medicina, até então exercida por barbeiros, sangradores, práticos e curandeiros, observou o historiador Flávio Coelho Edler, da COC-Fiocruz, em um artigo de 2009 na revista Acervo. Nessa época ainda havia concorrência entre os especialistas: os médicos, cuja formação era apoiada pelo governo, tinham de disputar clientes com os benzedores, que ofereciam proteção contra praticamente qualquer doença. “A maioria das pessoas preferia os curandeiros porque faziam mais sentido para o mundo delas”, diz ele. Em 1832, um decreto transformou as duas escolas médicas em faculdades de Medicina do Rio de Janeiro e da Bahia, extinguiu o curso de cirurgia e ofereceu a possibilidade de os estudantes se formarem em três áreas – medicina, farmácia ou partos –, seguindo o modelo francês de ensino médico.

A Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro, criada em 1829 e seis anos depois renomeada como Academia Imperial de Medicina, além de influenciar a modernização, aconselhava o governo sobre estratégias para reforçar a higiene nas cidades e evitar a disseminação de doenças, como a remoção de cemitérios e matadouros para lugares distantes e a drenagem de brejos. Com base em áreas de especialização como geografia ou climatologia, os médicos examinavam o relevo, os ventos, a variação de temperatura e umidade, até a incidência de relâmpagos, porque se acreditava que as doenças decorriam de influências maléficas de ares e lugares.

“Para não adoecer, como se dizia na época, era preciso não só morar em espaços saudáveis, mas também viver com moderação, sem paixões incontroláveis ou excessos”, diz Edler. “Acreditava-se que as pessoas parcimoniosas viviam mais.” Essa visão começaria a mudar na segunda metade do século XIX com a descoberta de micróbios causadores de doenças, com o patologista alemão Robert Koch (1843-1910) e o químico francês Louis Pasteur (1822-1895).

Uma ciência mais nacional?
Em 1724, a elite de Salvador fundou a Academia Brasílica dos Esquecidos e em 1759 a dos Renascidos, para discutir e documentar a história da América portuguesa. Pombal, porém, proibiu a Academia dos Renascidos, com receio de que seus membros fizessem alianças indesejadas com acadêmicos estrangeiros. Com a transferência da Corte para o Rio de Janeiro, a Sociedade Real Marítima e Militar, que reunia engenheiros, astrônomos e matemáticos, trouxe seu extraordinário acervo de mapas dos domínios portugueses, depositados no Real Arquivo Militar.

“A Sociedade Real foi criada em Portugal por dom Rodrigo de Sousa Coutinho, o conde de Linhares [1755-1812], secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, para produzir conhecimento que lhe permitisse pensar políticas de Estado, como a reforma da Marinha e o incremento das comunicações terrestres e de cabotagem e a instalação do correio oficial”, diz Kantor (ver reportagem). Em um artigo publicado em 2010 na Araucaria – Revista Iberoamericana de Filosofía, Política y Humanidades, ela escreveu: “As projeções cartográficas idealizadas pelos reformadores ilustrados portugueses constituíram um instrumento de governabilidade do futuro Império do Brasil”.

Mas aos poucos – “principalmente depois da Independência”, observa Kury – ganhou força o desejo de fazer uma ciência mais nacional. Em abril de 1835, no primeiro número da Revista Médica Fluminense, posteriormente renomeada Revista Médica Brasileira, o médico Joaquim Candido Soares de Meirelles (1797-1868), um dos fundadores da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro, depois de lembrar que a medicina brasileira devia muito à França, comentou: “É preciso que os médicos brasileiros se congreguem; que trabalhem todos de comum acordo a fim de que um dia se possa também conhecer a medicina brasileira, principalmente tendo eles melhor que nenhuns outros tão vasto campo a descobertas interessantíssimas à matéria médica”.

Avaliações como essa eram raras em revistas médicas, que priorizavam relatos sobre doenças recém-descobertas, estratégias de tratamento ou novidades de outros países. Havia também jornais, como O Patriota, dirigido pelo militar da Marinha e professor de astronomia baiano Manuel Ferreira de Araújo Guimarães (1777-1838). Publicado pela Imprensa Régia, considerado o primeiro a divulgar notícias sobre ciências, entre artigos literários e políticos – circulou entre janeiro de 1813 e dezembro de 1814 –, como a maioria das publicações do século XIX (ver Pesquisa FAPESP no 100).

Uma exceção foi a revista O Auxiliador da Indústria Nacional. Existiu durante 59 anos, de 1833 a 1892, com edições mensais contendo 32 páginas em média e uma tiragem de 600 a 2.500 exemplares. O Auxiliador publicava artigos sobre o plantio de mandioca, cana-de-açúcar, trigo e urucum, uso de máquinas na agricultura ou tratamento da diarreia de gado, reproduzidos de outras publicações nacionais, como O Patriota, ou traduzidos de estrangeiras, como O Agricultor Americano, dos Estados Unidos, e o Jornal dos Conhecimentos Úteis, da França.

O primeiro dos 12 redatores do jornal foi o cônego carioca Januário da Cunha Barbosa (1780-1846), também historiador, poeta e político, defensor da Independência do Brasil. Sucederam-no outros homens com formação acadêmica, como o magistrado e historiador baiano Baltasar da Silva Lisboa (1761-1840); o médico baiano Emílio Joaquim da Silva Maia (1808-1859); e dois diretores do então já chamado Museu Nacional, o botânico e mineralogista piauiense Frederico Leopoldo Cezar Burlamaqui (1803-1866) e o médico carioca Nicolau Joaquim Moreira (1824-1894).

A revista trazia notícias sobre as palestras e reuniões da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional (Sain), sua mantenedora. Criada em 1831, a sociedade reunia fazendeiros, comerciantes, profissionais liberais, naturalistas, políticos, funcionários públicos, militares e religiosos preocupados com a diversificação da economia para além da agricultura. A Sain promoveu cursos, estabeleceu uma escola noturna para adultos, participou da fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, o primeiro a ser fundado, em 1838, no Rio de Janeiro, que publicava artigos originais e assessorava políticas públicas (ver Pesquisa FAPESP no 102 e nº 317).

Com apoio do governo imperial, organizou a Primeira Exposição Nacional da Indústria no Império do Brasil, em 1861, na Escola de Engenharia (depois renomeada Escola Politécnica e incorporada à Universidade Federal do Rio de Janeiro), no centro da capital fluminense.

Em um capítulo do livro Espaços da ciência no Brasil: 1800-1930 (Editora Fiocruz, 2001), a historiadora da ciência Heloisa Maria Bertol Domingues, do Museu de Astronomia e Ciências Afins (Mast), conta que em 1848 o ministro baiano José Carlos Pereira de Almeida Torres, visconde de Macaé (1799-1856), reconhecia a importância das atividades da Sain. “Ele destacava, particularmente, as publicações periódicas, em que se discutiam várias questões relativas à agricultura e à indústria”, relata a pesquisadora. “Isso, para ele, tinha sido o primeiro passo para poupar trabalhadores ou para substituí-los por máquinas.” Kantor, da USP, observa: “As atividades da Sociedade Auxiliadora estiveram diretamente ligadas à herança portuguesa de valorizar a ciência aplicada e usar o conhecimento para reformar e inovar”.

Artigos científicos
ABSOLON, B. A. et al. O primeiro gabinete de história natural do Brasil (“Casa dos Pássaros”) e a contribuição de Francisco Xavier Cardoso Caldeira. Filosofia e História da Biologia. v. 13, n. 1, p. 1-22. 2018.
DANTES, Maria A. M. As ciências na história brasileira. Ciência e Cultura, v. 57, n. 1, p. 26-8, 2005.
DIAS, M. O. L. S. Aspectos da ilustração no Brasil. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. v. 276, p. 105-70. jan.-mar. 1968.
EDLER, F. C. A natureza contra o hábito – A ciência médica no Império. Acervo. v. 22, n. 1, p. 153-66. jan.-jun. 2009.
KANTOR, I. Mapas em trânsito: Projeções cartográficas e processo de emancipação política do Brasil (1779-1822). Araucaria – Revista Iberoamericana de Filosofía, Política y Humanidades. v. 12, n. 24, p. 110-23. ago.-dez. 2010.
KURY, L. Homens de ciência no Brasil: Impérios coloniais e circulação de informações (1780-1810). História, Ciências, Saúde Manguinhos. v. 11, n. 1, p. 109-29. 2004.
PIZA, A. T. Ao leitor. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. v. 1, p. 1-2. 1895.

Livros
DANTES, M. A. M. (org.) Espaços da ciência no Brasil: 1800-1930. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2001.
EDLER, F. C. Ensino e profissão médica na corte de Pedro II. Santo André: Universidade Federal do ABC, 2014.

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