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Carta da editora | 302

Princípios e decisões

Os vírus são organismos simples e sofisticados. Não possuem mecanismos muito eficientes de correção de erros na hora de se replicarem, o que faz com que essas mudanças no seu genoma sejam incorporadas nas gerações seguintes. Essas mutações podem ser inócuas ou tornar o vírus mais eficiente – algo indesejável quando somos nós os hospedeiros.

Um ano depois de a OMS ter classificado o surto de Covid-19 como pandemia, causam preocupação três variantes do Sars-CoV-2 – de um conjunto de mais de 300 linhagens já catalogadas do vírus. Uma foi identificada no Reino Unido, outra no Brasil e a terceira na África do Sul. Embora ainda pouco se saiba sobre elas, dado que o conhecimento é adquirido em tempo real, junto com a evolução do vírus, há indícios de que sejam mais transmissíveis e, em alguns casos, mais letais que as versões predominantes no começo da pandemia. Reportagem de capa desta edição procura explicar o que se sabe sobre as variantes, como ocorrem as mutações e por que é importante acompanhar a evolução do vírus para que as vacinas se mantenham eficazes.

Com média móvel de óbitos diários se aproximando de 3 mil, as equipes de saúde no Brasil enfrentam decisões difíceis sobre a alocação de recursos escassos, como leitos de UTI ou respiradores. A bioética é a área de pesquisa multidisciplinar dedicada aos limites e à finalidade da intervenção humana sobre a vida. A aplicação desse conhecimento por meio de comitês de bioética em hospitais é um subsídio importante para essas situações complexas. Infelizmente, estão presentes em menos de 10% dos hospitais brasileiros, como mostra reportagem.

Os princípios da bioética também norteiam uma discussão central para áreas de pesquisa como o desenvolvimento de fármacos e vacinas: o uso de animais em testes e estudos. Embora a criação de métodos alternativos tenha avançado muito, ainda não há substituto aos modelos animais quando a pesquisa envolve múltiplas interações em sistemas complexos e interdependentes, como a avaliação da trajetória de uma molécula no organismo após sua administração. Mesmo assim, esses princípios são norteadores de práticas que racionalizam o uso, reduzindo-as ao mínimo, substituindo-as sempre que possível. Reportagem desta edição retoma essa questão, em pauta devido ao prazo que se aproxima para que no Brasil sejam obrigatórios métodos alternativos em alguns tipos de testes, como controle de qualidade de produtos injetáveis.

Outro exemplo de discussão no campo da bioética é a distribuição de vacinas contra Covid-19 entre países com mais ou menos recursos. A concentração dos imunizantes nas mãos de quem pode pagar por eles mostra que o fosso que separa os países desenvolvidos daqueles em desenvolvimento está presente também na saúde. Enquanto bilhões de dólares foram investidos na busca de tratamentos e vacinas para a pandemia que em um ano infectou 125 milhões de pessoas e matou 2,7 milhões, um conjunto de 20 moléstias classificadas como doenças tropicais negligenciadas mata todos os anos meio milhão de pessoas e mobiliza poucos recursos e interesse em seu combate. Relatório da OMS lançado neste ano e objeto de reportagem à página 42 informa que, embora nos últimos anos 600 milhões de pessoas saíram da zona de suscetibilidade, muitas dessas doenças infecciosas não são objeto de uma articulação de esforços de pesquisa e de políticas públicas para serem neutralizadas.

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