Imprimir PDF Republicar

BIOTECNOLOGIA

Proteínas vegetais aprimoram produção de carne de laboratório

Resíduos da produção agrícola podem reduzir custos e tornar a carne obtida a partir de células animais cultivadas em laboratório ainda mais semelhante à convencional

Resíduos vegetais usados como opção ao soro fetal (sentido horário, da esq. para a dir.): farelos de soja, de amendoim, milho, girassol, bagaço de cana e amêndoa de babaçu

Léo Ramos Chaves / Revista Pesquisa FAPESP

Uma equipe da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) criou com resíduos vegetais uma possível alternativa ao soro fetal bovino, ingrediente de alto custo usado na produção de carne a partir de células animais cultivadas. Paralelamente, pesquisadores do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (Cefet-MG) e da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) encontraram uma forma de obter carne estruturada, semelhante a um bife, usando polímeros degradáveis de origem vegetal em vez de colágeno, proteína de origem animal tradicionalmente usada com essa finalidade.

À medida que avançarem, esses trabalhos poderão contribuir para ampliar a produção e reduzir o custo da carne feita a partir de células animais. Essa inovação se anuncia como alternativa mais saudável, pela possibilidade de apresentar menos gordura com o mesmo teor proteico, e mais sustentável, por exigir menos recursos ambientais, comparada à tradicional proteína animal resultante da criação de animais em pasto. As perspectivas são animadoras, ainda que grupos de pesquisa em universidades e de empresas reconheçam que vários desafios precisam ser superados para as novidades chegarem aos restaurantes e refrigeradores dos supermercados.

Em março, entrou em vigor a Resolução nº 839 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que regulamenta o registro de alimentos e ingredientes inovadores. “O marco regulatório coloca o Brasil em uma posição de destaque no mundo. Além disso, facilita os investimentos em inovações alimentares sustentáveis”, avalia Raquel Casselli, diretora de engajamento corporativo da unidade brasileira do The Good Food Institute (GFI), organização filantrópica que apoia alternativas a proteínas animais. Por enquanto, apenas três países – Singapura, Estados Unidos e Israel – aprovaram a regulamentação para a produção e a venda de carne cultivada.

Desde 2013, quando o fisiologista holandês Mark Post, da Universidade de Maastricht, na Holanda, apresentou o protótipo do primeiro hambúrguer in vitro, os investimentos nessa área chegaram a U$ 3,1 bilhões, segundo a GFI. Os Estados Unidos lideram, com 45 das 174 empresas especializadas no cultivo de células para a produção de carne ou de insumos. O Brasil entrou nesse levantamento com três startups, duas companhias transnacionais, os grupos JBS e BRF, e 21 equipes de pesquisa. Nenhum país alcançou até hoje a produção em larga escala.

“O nível de prontidão tecnológica da carne celular ainda é baixo”, observa a veterinária da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Carla Molento, coordenadora do programa Novo Arranjo de Pesquisa e Inovação em Proteínas Alternativas (Napi PA), apoiado pela Fundação Araucária, agência paranaense de fomento à pesquisa. Prontidão tecnológica é um método que avalia o grau de maturidade de uma tecnologia ao longo de seu desenvolvimento, produção e comercialização. “Ainda está mais na fase de pesquisa do que de produção.”

Alternativas ao soro fetal
Atenta aos problemas e perspectivas dessa área, a engenheira de alimentos Rosana Goldbeck, da Faculdade de Engenharia de Alimentos (FEA) da Unicamp, começou a buscar em 2021 alternativas ao soro fetal bovino. Bastante usada nos campos de engenharia de tecidos e medicina regenerativa, a substância é extraída do sangue de fetos de vacas prenhas enviadas para abate. É um insumo eficiente para a multiplicação das células, mas caro para a produção em escala industrial. “O soro onera o processo de produção, do ponto de vista econômico e ético, já que é obtido de uma forma que causa sofrimento ao animal”, diz Goldbeck.

Entrevista: Rosana Goldbeck
00:00 / 00:-1

No doutorado, a engenheira química Bárbara Flaibam, orientanda de Goldbeck, encontrou um substituto: resíduos vegetais, como farelos de soja, de amendoim e de girassol, levedo de cerveja e subprodutos da produção do etanol do milho. “Esses materiais, denominados hidrolisados proteicos porque passaram por um processo de quebra de proteínas chamado hidrólise, são boas fontes de aminoácidos e peptídeos para as células animais e poderiam substituir a porção proteica do soro fetal bovino”, afirma Flaibam.

De acordo com os experimentos, detalhados em artigo publicado em maio na revista Innovative Food Science and Emerging Technologies, os hidrolisados proteicos foram bastante efetivos como substitutos parciais do soro bovino. Entretanto, o soro é uma mistura com outros componentes, como fatores de crescimento e hormônios, essenciais para a proliferação celular. “Os hidrolisados poderiam ser utilizados para substituição integral do soro desde que o meio seja suplementado com os outros componentes essenciais disponíveis comercialmente”, explica Flaibam.

Ainda assim, ela defende que a substituição seria positiva do ponto de vista financeiro, pois a disparidade de custo entre o soro fetal e as alternativas vegetais é gigante. Enquanto o preço do soro fetal varia de US$ 70 a US$ 170 por grama (g), na pesquisa de Flaibam – portanto, ainda em escala de laboratório –, o extrato proteico de farelo de soja custou US$ 1,1/g e o hidrolisado do farelo de soja US$ 0,17/g. Segundo Goldbeck, o soro fetal bovino corresponde a 95% do custo de produção da carne cultivada.

Algumas empresas do setor, como a holandesa Mosa Meat, a israelense Aleph Farms e a norte-americana Upside Foods, anunciam em seus sites que já produzem alimentos sem soro fetal bovino, mas não divulgam as substâncias empregadas.

Mosa Meat | Natália Alves / cellvaMultiplicação de células musculares (núcleos em azul) em meio de cultura proteico (amarelo) da Mosa Meat; e gordura cultivada suína da cellva (à dir.)Mosa Meat | Natália Alves / cellva

Em Minas Gerais, uma equipe do Cefet encarou outro desafio: desenvolver uma carne de laboratório parecida com um bife, com uma forma tridimensional mais complexa do que a massa proteica usada na produção de um nugget ou de um hambúrguer. A estratégia mais usada com essa finalidade são as estruturas denominadas scaffolds – espécie de matriz artificial com arranjo tridimensional –, feitas geralmente de colágeno.

A equipe coordenada pela física Aline Bruna da Silva e pela química Roberta Viana fez uma alternativa à base de polímeros biodegradáveis contendo extrato de sementes extraídas do urucum (Bixa orellana), que tem propriedades regenerativas e antibacterianas. O trabalho resultou na criação de uma spin-off acadêmica, a Biomimetic Solutions, que pretendia produzir e vender esse tipo de material. Diversos tipos de materiais poliméricos foram testados, como as nanofibras de acetato de celulose, descritas em um artigo de janeiro de 2024 na Frontiers in Nutrition.

A empresa não vingou, mas duas fundadoras, Silva e a engenheira de materiais Lorena Viana Souza, criaram outra startup, a Moondo, em 2022, para produzir carne de peixe. “A carne branca, por não ter muita gordura intramuscular, apresenta um grau menor de complexidade que a vermelha”, diz Silva. Em 2023, como pesquisadora do Cefet, ela participou da produção de um dos primeiros protótipos de carne estruturada do Brasil, um pequeno pedaço de filé de frango, em conjunto com pesquisadores da UFMG. Segundo Souza, diretora de operações da Moondo, elas trabalham na captação de recursos e procuram uma incubadora para abrigar o laboratório da empresa. Enquanto isso, as pesquisas da startup são feitas em parceria com a UFMG e com o Cefet.

Outras empresas estão mais avançadas, como a cellva, que pretende iniciar a produção em escala industrial de gordura suína cultivada em laboratório daqui a dois anos. “Desde o início do ano passado, aumentamos em 10 vezes a capacidade produtiva, e até o final do ano chegaremos à produção de 1 quilo [kg] de gordura cultivada por mês”, informa Bibiana Matte, cofundadora e diretora científica da cellva.

Doutora em odontologia que se voltou para a biotecnologia, Matte havia fundado em 2019 a startup Núcleo Vitro, na capital gaúcha, com foco na criação de modelos de pele para testes de medicamentos e cosméticos (ver Pesquisa FAPESP no 335). Decidida a entrar no campo da carne cultivada, em 2021 criou outra start-up, a Ambi Real Food, acumulando as funções de diretora científica das duas empresas. Com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (Fapergs) e a colaboração de pesquisadores das universidades Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), a startup produziu um hambúrguer a partir de células bovinas cultivadas, um dos primeiros do país.

Em 2022, a Ambi Real Food fundiu-se com a cellva e trocou o hambúrguer pela gordura suína. “Hoje somos 10 pessoas na empresa, com diferentes formações, como biologia, veterinária, farmácia, engenharia de alimentos e odontologia”, diz Matte. A cellva também aposta na produção de microcarreadores vegetais (pequenas estruturas nas quais as células se fixam quando colocadas dentro do biorreator na etapa de expansão celular) e microesferas (que permitem o encapsulamento de substâncias para agregar sabor e nutrientes ao produto). “Nossa meta é fornecer insumos e ingredientes para outras empresas”, comenta.

Em 2021, durante um projeto para desenvolvimento de um filé de frango sustentável, sintetizado em laboratório e apoiado pelo GFI, a engenheira de alimentos Vivian Feddern, então líder da iniciativa, e a veterinária Ana Paula Bastos, ambas da unidade Suínos e Aves da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), em Concórdia, Santa Catarina, perceberam a necessidade de um banco de células para o mercado de carne cultivada.

A ideia se fortaleceu durante a I Jornada de Carne Cultivada promovida pela Embrapa em Santa Catarina, em agosto de 2022. “Alguns participantes relataram a dificuldade na obtenção de células e outros disseram que seria interessante ter um biobanco para acelerar o processo, tanto para quem está fazendo pesquisa quanto para startups”, diz Feddern, primeira autora de um relatório publicado em dezembro de 2022 com uma análise desse mercado no Brasil e no mundo. O banco de células, estima Bastos, poderá estar pronto em cinco anos: “Já temos bastante célula de frango e estamos começando com suínos e bovinos”.

Como presidente da Associação Brasileira de Agricultura Celular (Abac) e responsável pela primeira disciplina sobre agricultura celular na pós-graduação da UFPR, Carla Molento reforça: “A hora de compartilhar informação é agora. Sem essa movimentação, podemos perder uma oportunidade única de entrarmos em uma área nova da biotecnologia”. De acordo com uma estimativa da empresa da consultoria norte-americana AT Kearney, em 2040, o mundo consumirá 35% de carne celular, 25% de carne produzida à basede plantas e 40% de carne convencional.

Ainda longe do Brasil
Carne cultivada ainda não é vendida no país, mas pode ser encontrada em lojas e restaurantes de Singapura e dos Estados Unidos

Upside FoodsFilé de frango com células cultivadas da Upside FoodsUpside Foods

Por enquanto, um brasileiro que queira saborear um prato de carne cultivada em um restaurante terá de viajar quase 17 mil quilômetros. Estão em Singapura os dois únicos restaurantes que já incluíram no cardápio o Forged Parfait, produto da startup australiana Vow, voltada ao mercado de luxo. A partir do cultivo de células de codorna japonesa, a Vow produziu um patê com a aparência de um foie gras (patê de fígado de ganso ou pato), servido como ingrediente ou complemento de pratos sofisticados.

Outra possibilidade, também em Singapura, é comprar um frango cultivado da marca Good Meat na seção de congelados do Huber’s Butchery. Produzido pela empresa californiana Eat Just, o alimento é um híbrido feito a partir de 3% de carne cultivada e 97% de carne à base de plantas. Lançado no mercado em maio deste ano, vem em pacote de 120 gramas e custa o equivale a R$ 28.

Singapura foi o primeiro país a aprovar a comercialização de carne cultivada, em dezembro de 2020. Os Estados Unidos vieram em seguida, em junho de 2023, concedendo aprovação para a venda do frango das empresas Upside Foods e Eat Just. Esses produtos chegaram a ser ofertados em um restaurante de Singapura e em dois dos Estados Unidos, mas por pouco tempo. Em fevereiro de 2024, os fabricantes anunciaram a interrupção da parceria com os restaurantes, a fim de concentrar esforços na produção em escala e na redução de custos.

Em janeiro deste ano, Israel concedeu autorização à empresa Aleph Farms para a comercialização de seu Petit Steak e poderá ser o primeiro país a vender carne cultivada bovina. Em seu site, a empresa anuncia que o produto estará no mercado “em breve”.

A reportagem acima foi publicada com o título “Novas formas de fazer carnes” na edição impressa nº 343, de setembro de 2024.

Artigos científicos
FLAIBAM, B. et al. Low-cost protein extracts and hydrolysates from plant-based agro-industrial waste: Inputs of interest for cultured meat. Innovative Food Science and Emerging Technologies. v. 93, 103644. mai. 2024.
SANTOS, A. E. A. et al. Random cellulose acetate nanofibers: A breakthrough for cultivated meat production. Frontiers in Nutrition. v. 10. 4 jan. 2024.
YUN, S. H. et al. Current research, industrialization status, and future Perspective of Cultured Meat. Food Science of Animal Resources Food. v. 44, n. 3, p. 570-85. 1º mai. 2024.
BATTLE, M. et al. 2023 State of the industry report: Cultivated meat and seafood. The Good Food Institute. 2024.
BENSON, L.; GREENE, J. L. Cell-cultivated meat: An Overview. Congressional Research Service. set. 2023.
FEDDERN, V. et al. I Jornada de Carne Cultivada: uma visão sistêmica sobre terminologias, aspectos legais, nutricionais, considerações sobre consumidor e mercado potencial, métodos e meios de cultivo. Embrapa Suínos e Aves. dez. 2022.

Republicar