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Pesquisa na quarentena

“Quando vi que não poderia voltar a campo, percebi o impacto que a pandemia traria para a minha pesquisa”

A bioantropóloga Mariana Inglez precisou repensar o doutorado e adiar o trabalho junto às comunidades ribeirinhas da Amazônia, enquanto coordena um projeto de divulgação científica

Com a chegada da pandemia, foi preciso decidir entre interromper ou não o período de treinamento em Ohio, Estados Unidos

Arquivo pessoal

Quando a pandemia chegou, além do temor natural diante de uma situação dessas, senti um medo a mais: o de estar sozinha em outro país. Fui para os Estados Unidos no final de janeiro de 2020 para fazer um período de doutorado sanduíche na Universidade Estadual de Ohio (OSU), na cidade de Columbus. No começo, não sabíamos se as fronteiras iriam fechar e o que aconteceria. Fui para lá com uma bolsa do Programa Institucional de Doutorado-sanduíche no Exterior [PSDE], da Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior] e me informaram que, se quisesse voltar ao Brasil, eles poderiam adiantar as passagens, mas eu não teria condições de bancar o retorno à OSU e perderia a oportunidade do intercâmbio. Me arrisquei e optei por ficar nos Estados Unidos.

Minha orientadora por lá, Barbara Piperata, me disse: “Vou te apoiar no que você decidir. Se ficar, daremos um jeito de concluir seu treinamento”. Há 20 anos ela trabalhou com famílias de comunidades ribeirinhas da Floresta Nacional de Caxiuanã, no Pará, as mesmas que acompanho agora no meu doutorado, observando sua dieta e transição nutricional. Combinamos de refinar o design da minha pesquisa, as medidas antropométricas e as entrevistas, exatamente como ela fez, para que fosse possível comparar os resultados e ver o que mudou nesse período. Pretendo observar se o padrão mundial de substituição de alimentos locais por industrializados também está ocorrendo ali, se ele acompanha o ritmo de centros urbanos e quais os impactos para a saúde dos comunitários.

A professora Barbara e eu levamos um mês para entender como poderíamos continuar o trabalho com as novas restrições. Combinamos que ela seria a pessoa com quem eu teria contato. Nós duas estávamos isoladas, então em alguns dias eu a encontrava em sua casa e em outros íamos ao laboratório. Ela foi a minha rede de apoio, além de duas colegas do mesmo grupo de pesquisa e dois outros professores, com quem também consegui criar vínculos e parcerias apesar do contato a distância. Logo no início, a universidade mudou as aulas para o sistema virtual e foi assim que cursei as disciplinas e participei de grupos de estudo. No fim, conseguimos fazer o que estava previsto no projeto do intercâmbio e nessa parte deu tudo certo.

Mas ficar por lá não foi uma decisão fácil. Temi que algo acontecesse com minha mãe enquanto eu estava longe. Outra coisa que me preocupava era a falta de contato com os comunitários da região de Caxiuanã – como eles não tinham sinal de internet confiável, não conseguia notícias com frequência. Eu tentava mandar mensagens dizendo para se isolarem e usarem máscaras. Às vezes, chegava uma mensagem avisando que alguém havia contraído Covid-19, depois outra avisando que estavam todos ficando doentes. Soube que eles não foram priorizados no programa de vacinação, apesar de serem populações tradicionais vulneráveis. Estão recebendo as doses de acordo com a idade.

Arquivo pessoal Durante trabalho com ribeirinhos na Amazônia em 2019: segunda fase de campo precisou ser adiadaArquivo pessoal

Fiquei nos Estados Unidos até agosto de 2020. Ao voltar à cidade de São Paulo, fiquei feliz de estar de novo com pessoas queridas. Moro com duas amigas e poder reencontrá-las e me sentir em casa foi muito bom. Ainda demorei um pouco para ver minha mãe e poder abraçá-la, fiz um longo isolamento primeiro. No Natal também reencontrei o meu irmão, que mora em Rio Claro, interior paulista.

Logo depois que cheguei e vi que eu não poderia voltar a campo, percebi o maior impacto que a pandemia traria para a minha pesquisa. Meu plano inicial era terminar o treinamento em Ohio e, assim que estivesse no Brasil, retornar para as comunidades ribeirinhas, para continuar as coletas de dados e aplicar o que eu tinha aprendido e refinado nos Estados Unidos. Em 2019 eu já havia passado três meses com os comunitários e o plano era ficar pelo menos mais três meses em 2020.

Mas, com a pandemia, o cronograma foi destruído. Parte da minha pergunta de pesquisa também. Meu projeto pretendia entender o que se passou com a dieta dos ribeirinhos nesse período de 20 anos, mas, com uma pandemia no meio, não será possível simplesmente comparar as duas épocas. Estou no processo de entender o que vou construir, porque não existe mais um estudo longitudinal de acordo com uma mudança temporal gradual: há um antes e um depois da pandemia.

Como o trabalho de campo já deveria ter terminado, minha pesquisa está atrasada em mais de um ano. Nesse tempo em que não pude retornar para as comunidades, trabalhei na análise dos dados que já tinha. Minha bolsa de doutorado, que é do CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico], terá fim em maio de 2022, mas vou precisar de pelo menos mais um ano para terminar a coleta de informações, análise e escrita. Pelo que entendi, a USP vai permitir que o prazo para a defesa seja prorrogado em até dois anos, que é o tempo que a pandemia muito provavelmente vai tomar. Mas a bolsa não deve acompanhar isso.

Em maio deste ano consegui tomar a primeira dose da vacina contra a Covid-19, porque biólogos entraram no grupo de profissionais da saúde com prioridade em São Paulo, e devo tomar a segunda em agosto, o que me deu nova esperança. Decidi com meu orientador na Universidade de São Paulo, Rui Sérgio Murrieta, que devo voltar às comunidades ribeirinhas em setembro para ficar uns dois meses pelo menos. Terei de considerar um tempo extra para me isolar antes e depois da viagem. Vou com o objetivo de levantar as métricas que estavam no projeto original, mas também acrescentarei questionários que me permitam registrar o que foi a pandemia no contexto dos ribeirinhos, que parecem ser invisíveis para o governo. Quero observar esses impactos também com uma abordagem etnográfica.

Toda essa preocupação com o fim da bolsa e com os atrasos da pesquisa foi muito forte para mim. Comecei a ter crises de ansiedade e pânico, e passei por um período bem complicado no segundo semestre de 2020, o que atrapalhou minha produtividade. Acho que é importante falar sobre isso. Vejo que é algo recorrente nos meus colegas de pós-graduação, porque estamos em uma área que está enfrentando muita instabilidade e incertezas. E as contas continuam chegando. Às vezes, é bem difícil seguir assim, mesmo acreditando muito no que faço. Comecei a tratar a ansiedade no final do ano passado e tenho melhorado pouco a pouco.

Nesse período também tenho me dedicado à coordenação do projeto de divulgação científica Evolução para Todes ‒ Compartilhando a ciência do Laaae-USP [Laboratório de Arqueologia e Antropologia Ambiental e Evolutiva]. Ganhamos um financiamento do Instituto Serrapilheira no final de 2019 e começamos as atividades em 2020. Esse projeto acabou me dando o alento que eu precisava em um ano tão difícil. Apesar de muito trabalho, foi algo que conseguimos fazer com algumas adaptações exigidas pela pandemia. Conseguimos uma prorrogação do prazo para usar os recursos até dezembro deste ano para terminar as atividades previstas.

Reprodução Mariana Inglez virou personagem em animações que explicam evolução para crianças em projeto de divulgação científicaReprodução

O objetivo do projeto é divulgar as áreas de conhecimento do Laaae sempre com um olhar de inclusão racial e de gênero, trazendo diversidade. Queremos mostrar que existe um caminho possível para as mulheres e para as mulheres negras, como eu, nessas áreas ainda majoritariamente masculinas e brancas. A ideia surgiu com duas amigas, a bioarqueóloga Lisiane Müller e a arqueóloga Eliane Chim, também pós-graduandas no laboratório.

Procuramos atingir um público amplo, com produções audiovisuais divulgadas nas nossas redes sociais. Registros de campo e explicações sobre as pesquisas que fazemos são voltados para um público mais velho. Conseguimos fazer isso com imagens que já temos de arquivo, já que as etapas de campo anuais não puderam continuar, por enquanto. Também fizemos animações em vídeo para o público infantil. Publicamos dois vídeos para crianças explicando a evolução humana: De onde viemos? e Nossa origem. O primeiro deles foi selecionado como finalista na categoria de conteúdos curtos do Festival comKids – Prix Jeunesse Iberoamericano 2021. Tenho tido um retorno muito positivo sobre a série, de pais de crianças de 3 a 6 anos, em especial de crianças negras que se veem ali representadas. Também soube de professores que usaram os vídeos em aula para alunos que vão do sexto ano ao ensino médio. Isso é muito gratificante.

Além do projeto de divulgação científica, o que tem me ajudado nesses últimos meses é a Jambu, uma cachorra que adotamos no final do ano passado. Ela mudou muito o astral e trouxe alegria para a casa. A Jambu também me obriga a ter uma rotina mais saudável, acordar mais cedo e levá-la para passear pelas praças do bairro. São momentos gostosos, em que mesmo respeitando o distanciamento social posso sentir um cheirinho de mato, algo que me faz tanta falta.

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