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Resenhas

Relações desiguais

Termos de troca: Intelectuais brasileiros e as ciências sociais francesas | Ian Merkel | Tradução: Anouch Kurdkdjian | Edusp | 384 páginas | R$ 98,00

O livro do historiador norte-americano Ian Merkel gira em torno de quatro personagens: o antropólogo Claude Lévy-Strauss, o historiador Fernand Braudel, o sociólogo Roger Bastide e o geógrafo Pierre Monbeig. Ele os situa no tempo, sobretudo nos anos 1930/1950, e no espaço, o Brasil e a França. A trama possui ainda um lugar privilegiado, a cidade de São Paulo e a USP, fundada em 1934. O período escolhido é sugestivo, pois esse é o momento em que as ciências sociais se institucionalizam entre nós. O interesse de Merkel não é analisar a obra de cada um desses autores, mas considerar um conjunto de personagens icônicos para entender como o trabalho intelectual que realizam se articula com o contexto no qual estão inseridos.

Cada um deles possui, é claro, sua idiossincrasia, porém é a relação entre os quatro e o “meio ambiente” brasileiro que confere unidade ao estudo realizado. Nesse sentido, a história das ideias articula-se às experiências que esses franceses conhecem em solo estrangeiro. O livro procura e consegue de maneira bastante convincente reconstruir a “rede” de relações que os envolve. O conceito de rede é nesse caso importante por se tratar de um artifício conceitual para construir o que se quer demonstrar.

Para isso é preciso refazer os diferentes níveis de relações que incidem sobre esses personagens: as relações entre eles (amizades, viagens em comum, controvérsias); entre eles e seus colegas na França; entre eles e a missão francesa que os envia ao Brasil como professores da USP; entre eles e a USP, seja o curso de ciências sociais ou a administração da universidade; entre eles e os intelectuais brasileiros (Mário de Andrade, Caio Prado Jr., Fernando de Azevedo etc.); entre eles e diversas instituições brasileiras (Museu Nacional, o jornal O Estado de S. Paulo). A proposta exigiu um excelente trabalho de pesquisa feito em diversos arquivos, situados no Brasil, na França e nos Estados Unidos, que permitiu reproduzir essa teia de relações.

Um argumento importante, desenvolvido ao longo do livro, é o papel que o Brasil joga na “imaginação sociológica” desses autores. Eles são estrangeiros que percorrem um país inteiramente diverso do seu, que se apresenta como uma espécie de “laboratório social” no qual as convicções teóricas e as ideias são recorrentemente testadas (quando fui aluno de Bastide, ele me dizia isso repetidamente). Mas, para tanto, era preciso a mediação dos intelectuais brasileiros com os quais esses franceses estavam em contato, são eles que os introduzem no modo de vida nacional. Exemplo disso é o papel que o Museu Nacional desempenha na pesquisa de Lévy-Strauss sobre os indígenas brasileiros. E essa intelectualidade não é apenas mediadora, facilitando o trabalho de pesquisa desses autores, mas é também uma interlocutora importante para eles. É o caso dos estudos realizados por Bastide sobre os cultos afro-brasileiros.

O livro possui uma tese e o título Termos de trocas (que soa estranho em português) a revela: trata-se de demonstrar as trocas intelectuais entre franceses e brasileiros. O autor quer escapar da visão colonialista que vê o Brasil como uma espécie de cópia da metrópole. Daí sua ênfase na dimensão brasileira nas obras de seus personagens paradigmáticos. A ideia é interessante e o livro dá conta de explicitá-la. Resta, porém, uma dúvida. A palavra “termos” possui entre nós um aspecto restritivo: “em termos”. Neste sentido eu diria que as trocas se fazem de maneira restritiva. O subtítulo do livro, talvez de forma intuitiva, o indica: intelectuais brasileiros e ciências sociais francesas. Ele não diz ciências sociais brasileiras e ciências sociais francesas. De fato, na França da década de 1930 as ciências sociais já não mais se estruturavam como nos tempos de Durkheim. Elas constituíam uma disciplina institucionalizada com objeto e método específicos, como, por exemplo, os trabalhos empíricos de Maurice Halbwachs sobre as classes sociais.

No Brasil o quadro era outro, com instituições de saber ainda tradicionais (institutos históricos geográficos, sociedades de folclore etc.). Nossos intelectuais agrupavam-se, de certa forma, em torno dessas instituições. A fundação da USP inicia uma tradição que daria frutos no futuro. As trocas se fazem “em termos”, porque esses intelectuais, franceses e brasileiros, ocupam posições distintas no campo do saber. As relações de poder se reinserem assim nos termos de trocas desiguais.

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