Palmos, braças e léguas para medir comprimentos e distâncias; onças e arráteis para pesar carne-seca e açúcar; quartilhos para líquidos; alqueires para farinha e grãos. Tão estranhas são para nós essas medidas quanto eram metros, quilos e litros para os brasileiros de 1862, quando o Brasil adotou oficialmente o Sistema Métrico Decimal (SMD). As novas formas de medir massa e volume se tornariam obrigatórias somente em 1873, mas uma década não seria suficiente para popularizá-las. Ameaças de multa e até prisão para quem não utilizasse as novas medidas deflagraram um levante no Nordeste que ficaria conhecido como Revolta do Quebra-quilos. De acordo com os jornais da época, grupos numerosos invadiam as feiras semanais das cidades do interior nordestino quebrando os instrumentos de medição e resistindo aos padrões de referência do novo sistema de medidas.
Os camponeses que viviam nos matos da serra da Borborema (que se estende pelos estados de Alagoas, Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte) e vendiam seus produtos agrícolas nessas feiras eram chamados de matutos e os homens do governo imperial de doutores. “Os matutos tomaram conta da cidade, arrombando a cadeia, inutilizando os novos pesos e medidas e destruindo os arquivos públicos”, relatou o desembargador e escritor Geraldo Irinêo Joffily (1917-1985) no livro O quebra-quilo. A revolta dos matutos contra os doutores (Thesaurus, 1977).
Joffily descreve o primeiro atrito ocorrido na feira de Campina Grande, Paraíba, em 14 de novembro de 1874: “Persistiam os matutos nas suas recusas e reclamações, quando aparece o delegado João Peixoto com alguns soldados da polícia e cabras do coronel Alexandrino Cavalcante, dono do mercado, tentando dispersar os grupos mais agitados a lambadas de facão; alguns matutos reagiram de modo surpreendente […] Os feirantes procuraram abrigo por trás dos garajaus de rapadura; e foi aí que o negro João Carga d’Água, muito conhecido de todos, jogou o primeiro tijolo de rapadura contra os da polícia, sendo imitado por muitos, já que milhares de rapaduras de mais de meio quilo estavam empilhadas sobre esteiras no pátio da feira; um rebolo de rapadura acertou em cheio a cabeça do delegado, que ficou desacordado por muito tempo, enquanto os soldados eram envolvidos e surrados pelas mulheres”. As publicações oficiais substituíram os tijolos de rapadura por pedradas.
Relatórios policiais e dos presidentes das províncias descrevem a revolta como a reação de um grupo de pessoas ignorantes, desconfiadas das inovações científicas e manipuladas por “interesses inconfessáveis”, observa a historiadora María Verónica Secreto, da Universidade Federal Fluminense (UFF) e autora do livro (Des)medidos: A revolta dos quebra-quilos (1874-1876) (Mauad X, Faperj, 2011). A desconfiança se dirigia ao governo, não à ciência: “Faltava credibilidade ao poder estatal, visto como instrumento da classe dominante. A população entendia que as leis eram feitas para benefício de alguns”, conta. O filósofo Rafael de Oliveira Vaz, do Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro) reforça: “A implementação de padrões demanda confiança, o que certamente faltava aos doutores do Império”.
O movimento se alastrou por várias províncias do atual Nordeste (denominado apenas de Norte, no período imperial), entre 1874 e 1875, chegando à província de Minas Gerais pelo ano de 1876. Segundo Secreto, a extensão da revolta revela o descontentamento que a motivou.
O Nordeste vivia uma intensa crise econômica, provocada pelas secas e pela queda dos preços do açúcar e do algodão no mercado externo. Em vez de medidas que ajudassem a resolver os problemas, o Estado lançava novas cobranças, como o “imposto de chão”, aplicado sobre as mercadorias expostas no chão das feiras, e o “imposto de sangue”, a lei de recrutamento militar. A imposição dos novos padrões de medida pelo governo imperial, que trazia ônus financeiro, com a necessidade de aquisição de balanças e pesos, chegava à população como mais uma agressão estatal.
O levante foi reprimido com violência. O capitão José Longuinho da Costa Leite (sem data de nascimento e morte), incumbido de restabelecer a ordem na Paraíba, ficou famoso como inventor dos “coletes de couro”, tortura que aplicava aos insurgentes. “Consistia em costurar-se ao tórax dos presos, muitos inculpados, uma faixa de couro cru, previamente molhada durante horas. À medida que o couro secava ia comprimindo o peito da vítima, causando-lhe muitas vezes morte torturante por asfixia”, descreve Joffily em seu livro.
Secreto diz que, apesar da brutalidade da repressão, as revoltas do período foram relativamente exitosas. Além de dificultar a realização do alistamento militar e postergar o registro civil, conseguiram adiar a generalização do sistema métrico decimal.
Também houve resistência em outras nações da América do Sul, que oficializaram o SMD entre as décadas de 1850 e 1870, com exceção das Guianas Inglesa e Holandesa, que só aderiram em 1971, relata o historiador João Fernando Barreto de Brito em sua tese de doutorado concluída em 2020 na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
No México – que, como o Brasil, impôs multas para quem não utilizasse o SMD –, houve conflitos violentos em 1896, mais de 30 anos depois da promulgação da lei que tornava o sistema obrigatório (de 1862). Em Nova Granada (atual Colômbia), a resistência foi contornada com flexibilidade: o decreto que adotava oficialmente o SMD, de 1853, permitia que a população continuasse empregando as medidas tradicionais. Adotou-se na ocasião um “modelo híbrido”, no qual o sistema francês era utilizado para assuntos de Estado e as medidas antigas na esfera privada.
Houve resistência na própria França, onde nasceu o SMD, no século XVIII. “A padronização não foi tarefa fácil, havia muitas unidades de medida diferentes”, afirma Vaz. Segundo ele, o governo francês instituiu o SMD em 1799, mas depois, diante da reação, recuou. Em 1812, dois decretos, que só seriam revogados em 1837, permitiam a readoção da nomenclatura das unidades anteriores e a utilização de unidades não métricas no comércio.
Mesmo hoje, três países ainda não adotaram oficialmente o agora chamado Sistema Internacional de Unidades (SI), estabelecido em 1960 a partir do sistema métrico francês. Estados Unidos, Libéria e Mianmar seguem utilizando as medidas do sistema imperial britânico, como pés, jardas e onças. Apesar de ter adotado oficialmente o sistema métrico decimal em 1965, pressionada pelas exigências do comércio internacional, a Inglaterra continua convivendo com as medidas e nomenclaturas tradicionais de seu antigo sistema.
A unificação dos sistemas de pesos e medidas fora a concretização de um sonho iluminista, que buscava conduzir as nações ao progresso. Em lugar de medidas antropométricas (como os palmos e braças), a meta era chegar a um sistema racional e universal, baseado em fenômenos físicos imutáveis, o que facilitaria as trocas comerciais, no contexto da expansão do capitalismo.
O metro se definiu após sete anos de expedições, entre 1792 e 1799, com a ousada tarefa de medir o tamanho da Terra: 1 metro equivale a um décimo da milionésima parte do comprimento do quadrante do meridiano que liga o polo Norte ao Equador, passando pela cidade de Paris.
Conduzida pelos astrônomos franceses Pierre François André Méchain (1744-1804) e Jean Baptiste Joseph Delambre (1749-1822), a expedição teve o apoio da Academia Francesa de Ciências e do próprio rei Luís XVI (1754-1793), quatro meses antes de ser deposto pela Revolução Francesa, em 1792. Delambre seguiu para o norte, de Paris a Dunquerque, e Méchain para o sul, de Paris a Barcelona. O objetivo foi mensurar a fração do meridiano de Dunquerque a Barcelona, para projetar, a partir de cálculos trigonométricos, a distância entre o polo Norte e o Equador. Para o nome da nova unidade de medida, buscaram um termo do grego antigo, que julgavam mais universal do que uma palavra francesa: metro deriva de metron, que significa “medida”.
O quilograma foi a última unidade de medida a ser substituída por constantes físicas
A lei que implementava o SMD, de 1793, oferecia valor provisório à unidade de comprimento, baseado em estimativas do físico matemático Pierre-Simon Laplace (1749-1827), do matemático Joseph Louis Lagrange (1736-1813) e do físico Jean Charles de Borda (1733-1799).
A lei também definia o quilo a partir da medição da massa de 1 decímetro cúbico (dm3) de água destilada à sua máxima densidade em pressão atmosférica; e o litro, medida de capacidade, como o volume de 1 decímetro cúbico. Em 1799, a entrega dos protótipos de platina do metro e do quilo definitivos aos Arquivos da República de Paris marcou a definição oficial. Hoje, essas peças fazem parte do acervo do Escritório Internacional de Pesos e Medidas (BIPM), criado em 1875 pela Convenção do Metro, assinada por 17 países, entre eles o Brasil.
Em 1875, já fazia mais de uma década que o Brasil havia adotado oficialmente o novo sistema. A Lei Imperial nº 1.157, assinada por dom Pedro II em 1862, dava o prazo de 10 anos para a adaptação ao sistema métrico francês e determinava sua inclusão nos programas das escolas de instrução primária, públicas e particulares. De acordo com um artigo da matemática Elenice Zuin, da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), publicado em 2017 na Educação Matemática Pesquisa, antes mesmo da promulgação da lei já circulavam no Brasil livros escolares portugueses ensinando o sistema métrico decimal. Livros de aritmética de autores brasileiros também mencionavam o SMD.
O desejo de alinhar o Brasil aos países europeus, adotando o sistema científico criado na Europa, esbarrava, porém, no acesso da população à educação formal e, mesmo, na irregular distribuição dos padrões de medida, como os pesos de ferro utilizados nas aferições, ainda importados da França. “O Brasil não tinha meios de disseminar o novo sistema”, comenta Vaz.
Foi só na Era Vargas (1930-1945), diante das demandas da industrialização, que o governo intensificou os esforços pela implementação do SMD. Em 1962, o país aderiu ao recém-criado SI, atualmente composto por sete unidades básicas: metro, para comprimento; quilograma, para massa; segundo, para tempo; ampère, para corrente elétrica; Kelvin, para temperatura termodinâmica; candela, para a intensidade luminosa; e mol, para quantidade de substância.
Na 17ª Conferência Geral de Pesos e Medidas, de 1983, optou-se por lastrear o metro na velocidade de propagação da luz no vácuo. Metro é definido, agora, como o comprimento percorrido pela luz no vácuo, durante um intervalo de tempo de 1/299 792 458 do segundo. Outras unidades fundamentais de medidas foram substituídas por constantes físicas, grandezas universais que, em princípio, não se alteram com o tempo.
Em 2019, o quilograma, a última das unidades de medida a ser redefinida, deixou de ser estabelecido com base no cilindro metálico guardado sob três redomas de vidro em um cofre na sede do BIPM em Sèvres, na periferia de Paris. A unidade básica de massa agora é definida a partir da constante de Planck, proposta em 1900 pelo físico alemão Max Planck (1858-1947), que estabelece uma relação entre a energia das partículas de luz (fótons) e a frequência com que elas vibram (ver Pesquisa FAPESP no 256).
Contudo, nem toda a tecnologia tem o poder de eliminar a tradição. Hoje, o sistema métrico decimal coexiste, sem conflitos, com medidas tradicionais. Persistem algumas medidas antropométricas, como as polegadas, que medem o monitor da TV, ou os pés, que mensuram a altitude da aeronave. Nas feiras livres do Brasil, compram-se maços de verduras e bacias de frutas. De acordo com artigo da matemática Patrícia de Campos Corrêa, publicado na Amazônia – Revista de Educação em Ciências e Matemáticas, na região Norte existem outras unidades populares: cambada de peixes, rasa de açaí, paneiro de ananás, cuia de camarão. Na famosa Feira do Ver-o-Peso de Belém, capital paraense, podem ser vistos até novos usos para as unidades do sistema internacional: lá se compra 1 litro de castanha, de farinha de mandioca ou de camarão. O litro-padrão, criado como unidade de medida para líquidos, é assim utilizado para sólidos. As balanças digitais com selo do Inmetro ficam ali do lado, prontas para serem mostradas aos fiscais da prefeitura que aparecerem.
Artigos científicos
BRITO, J. F. B. de. Quanto pesa o quilo? A adoção do Sistema Métrico Decimal francês no Brasil e os Quebra-quilos (1862-1875). Tese de Doutorado em história social. Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2020.
CORRÊA, P. de C. Sistema Métrico Decimal no Pará. Amazônia – Revista de Educação em Ciências e Matemáticas. v. 11, n. 22. jan. 2015.
VAZ, Rafael O. Antecedentes do Sistema Métrico Decimal no Brasil: O artigo “Memória sobre a adopção do Systema Métrico no Brazil e de uma circulação monetária internacional“ (1859), de Cândido Batista de Oliveira. Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro). nov. 2012.
ZUIN, Elenice. José Joaquim D’Avila: pela defesa de um novo sistema de pesos e medidas no Brasil no século XIX? Educação Matemática Pesquisa. v. 19, n. 2, p. 187-210. 7 set. 2017.
Livros
CREASE, R. P. A medida do mundo. A busca por um sistema universal de pesos e medidas. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 2013.
DIAS, José Luciano de Mattos. Medida, normalização e qualidade; aspectos da história da metrologia no Brasil. Rio de Janeiro: Ilustrações, 1998
JOFFILY, Geraldo Irinêo. O quebra-quilo. A revolta dos matutos contra os doutores (1874). Brasília: Thessaurus, 1977. Disponível em Revista de História, v. 54, n. 107 (1976). p. 69-145, 2023.
LIMA, L. M. de. Derramando susto: os escravos e o Quebra-quilos em Campina Grande. Campina Grande, Editora da Universidade Federal de Campina Grande (EDUFCG), 2006.
MAIOR, A. S. Quebra-quilos – Lutas sociais no outono do Império. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1978.
ROZENBERG, I. M. O Sistema Internacional de Unidades – SI. São Paulo: Instituto Mauá de Tecnologia, 2006.
SECRETO, M. V. (Des) medidos: a revolta dos quebra-quilos (1874-1876). Rio de Janeiro: Mauad X: FAPERJ, 2011.