Em 23 de março de 1992, o físico e professor da Universidade de São Paulo (USP) José Goldemberg, que já era ministro da Educação, assumiu interinamente o cargo de secretário nacional do Meio Ambiente no lugar do engenheiro e ambientalista José Lutzenberger (1926-2002). Uma de suas tarefas urgentes era convencer chefes de Estado de outros países a comparecer à Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Rio-92, que, poucos meses depois, em junho, tratou de temas como aquecimento global, queimadas na Amazônia, mudanças do clima e perda de biodiversidade. As notícias produzidas por cerca de 7 mil jornalistas que acompanharam in loco os debates disseminaram o então igualmente novo conceito de desenvolvimento sustentável, definido como a necessidade de conciliar a proteção ambiental com o progresso social e econômico.
Semanas depois de sua posse como secretário do Meio Ambiente, Goldemberg estava em Beijing, na China, diante do primeiro-ministro chinês, Li Peng (1928-2019), ao lado do embaixador brasileiro Marcos Azambuja. “Ele era engenheiro e quis saber se as medidas contra o aquecimento global não iriam prejudicar o progresso da China. Respondi: ‘Não, se vocês adotarem tecnologias de vanguarda’”, contou Goldemberg no início de março, relembrando o diálogo de quase 30 anos antes. O périplo do então secretário incluiu Washington (Estados Unidos), Nova Délhi (Índia) e Tóquio (Japão), com o mesmo objetivo. “Os chefes de Estado estavam hesitantes em ir à conferência no Rio.”
Sob esse ponto de vista, a Rio-92, realizada de 3 a 14 de junho no Riocentro, na capital fluminense, foi bem-sucedida: atraiu cerca de 180 chefes de Estado, entre eles o norte-americano George H. W. Bush (1924-2018), o francês François Mitterrand (1916-1996), o britânico John Major e o cubano Fidel Castro (1926-2016). “A Rio-92 foi a primeira grande conferência da década de 1990 sobre temas globais e o maior evento internacional já sediado no Brasil”, avalia o então ministro das Relações Exteriores, o jurista Celso Lafer, ex-presidente da FAPESP (2007-2015), sucedido na presidência da Fundação por Goldemberg (2015-2018). “Foi um momento solar da diplomacia brasileira e de otimismo sobre o potencial do Brasil.”
Roma, Estocolmo, Rio
A Rio-92 ampliou o debate internacional sobre problemas ambientais iniciado em 1968 com o Clube de Roma. Formado por empresários, banqueiros, políticos e acadêmicos de vários países, alertava para o esgotamento de recursos naturais como o petróleo. As preocupações de seus integrantes ganharam um público maior com o relatório “Os limites do crescimento”, publicado em 1972.
Também há 50 anos, na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, conhecida como Conferência de Estocolmo, na Suécia, onde ocorreu o encontro, a Organização das Nações Unidas (ONU) reuniu pela primeira vez chefes de Estado para tratar de problemas ambientais. “A Conferência de Estocolmo foi a primeira tomada de consciência, no plano mundial, da vulnerabilidade da natureza e da fragilidade dos ecossistemas”, comenta Lafer. “Mas enfrentou muitas dificuldades diplomáticas, permeadas pela polaridade norte-sul, entre os países ricos e pobres, e a tensão leste-oeste, com a Guerra Fria [conflito político-ideológico travado entre os Estados Unidos e a União Soviética], que caracterizavam a dinâmica mundial naquele momento.”
Em 1987, a ONU publicou o documento “Nosso futuro comum”, também chamado de Relatório Brundtland, por ter sido coordenado pela então primeira-ministra da Noruega, Gro Harlem Brundtland. O texto disseminou o conceito de desenvolvimento sustentável, que havia sido lançado na Conferência de Estocolmo. Em dezembro de 1988 o então presidente José Sarney (1985-1990) apresentou a candidatura do Brasil para sediar a reunião internacional com a qual a ONU pretendia debater os problemas apresentados no relatório.
“A motivação de Sarney tinha tudo a ver com a Amazônia”, escreve o embaixador Rubens Ricupero, que na época chefiava a representação diplomática brasileira em Washington, em um artigo ainda não publicado. Os registros de desmatamento, lembra ele, haviam se agravado no final dos anos 1980.
Professor titular da cátedra José Bonifácio do Instituto de Relações Internacionais da USP desde janeiro de 2022, Ricupero aponta outra circunstância que contribuiu para a escolha do Brasil sediar a conferência. “Em 22 de dezembro de 1988, o assassinato de Chico Mendes [1944-1988], em Xapuri, no Acre, levou ao paroxismo a campanha internacional de denúncias contra a passividade, cumplicidade ou ineficácia da política brasileira para deter a onda de destruição.”
Apesar disso, havia dois sinais de interesse do país pela preservação ambiental. O primeiro foi a nova Constituição, promulgada em outubro de 1988, que incorporava os princípios da Política Nacional do Meio Ambiente, aprovada em 1981, como resultado do trabalho do biólogo Paulo Nogueira Neto (1922-2019), o primeiro coordenador da Secretaria Especial do Meio Ambiente (1973-1985), que originou o Ministério do Meio Ambiente. O segundo foi a criação do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), em 1989, como órgão executor da política nacional nessa área.
À frente da organização da conferência, Lafer recorda-se com satisfação da convergência entre os governos federal, sob a presidência de Fernando Collor, do estado do Rio, na época governado por Leonel Brizola (1922-2004), e da cidade fluminense, com o prefeito Marcelo Alencar (1925-2014). “Todos entenderam a magnitude da reunião.”
Houve um momento de tensão quando a delegação chinesa avisou que não viria se o monge tibetano Tenzin Gyatso, o Dalai Lama, considerado um inimigo, estivesse no Rio. Consultado por Lafer, o presidente brasileiro teria comentado que a China não poderia ficar fora da reunião. Por outro lado, não daria para deixar de receber o Dalai Lama.
O Ministério das Relações Exteriores resolveu o impasse concedendo ao líder religioso o visto de entrada sem limites, mas sob a condição implícita de que os responsáveis por sua vinda cumprissem estritamente a agenda de encontros programados, que começava com o Fórum Global, encontro paralelo à Rio-92 realizado no Aterro do Flamengo. Os chineses aguardaram a saída do monge para virem ao Brasil. No entanto, correu-se o risco de o Dalai Lama demorar-se mais do que o previsto em Porto Alegre. Quando soube do risco de atraso, Lafer atuou para que o Dalai Lama saísse do Brasil no prazo combinado. Antes dos chineses chegarem, o monge embarcou para Buenos Aires. “Numa conferência que exigia consenso intergovernamental, não podíamos cometer nenhum deslize diplomático”, ele recorda.
Ao discursar na abertura da conferência, o então chanceler brasileiro comentou que aquele encontro era “uma oportunidade privilegiada para alterar os padrões de relacionamento que prevalecem na sociedade internacional”. Naquele momento, o contexto internacional era favorável a ações conjuntas. Azambuja, ex-secretário-geral do Itamaraty, que coordenou os grupos de trabalho da conferência, conta: “Havia um movimento internacional que fortalecia a disposição dos países em cooperar”. A queda do muro de Berlim em novembro de 1989 e a dissolução da União Soviética em dezembro de 1991 desfizeram a tensão da Guerra Fria. “O mundo inteiro reconhecia que a natureza era frágil e encontrava uma linguagem comum para falar dos problemas ambientais”, avalia o embaixador. Segundo ele, por sua vez o Brasil “saía da ideia de que o ambiente era um assunto dos outros, contra nós, e se tornava um espaço a ser defendido, por nós mesmos”.
Para Ricupero, o Brasil teve um papel de relevo nas negociações dos três principais acordos internacionais assinados na abertura da reunião.
O primeiro foi o da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, assinado na abertura da conferência. Estabelecia estratégias de combate ao aquecimento global e originou o protocolo de Kyoto, assinado em 1997 por 154 países, com o objetivo de reduzir a emissão de gases poluentes. “Nos países que não assinaram o protocolo de Kyoto as emissões de gases do efeito estufa continuaram subindo”, diz Goldemberg. “O Brasil definiu metas de redução de emissão, mas não estão sendo cumpridas. A eliminação do desmatamento ilegal não ocorreu.” O impasse foi resolvido somente em 2015, com o Acordo de Paris, quando os 195 países que o aprovaram estabeleceram metas voluntárias de redução de emissões.
O segundo acordo internacional foi a Convenção sobre Diversidade Biológica, com metas para a preservação da biodiversidade, também assinada na abertura da conferência (ver Pesquisa FAPESP nºs 118 e 198). Os Estados Unidos assinaram o acordo sobre o clima, mas não sobre biodiversidade. “A recusa, que persiste até hoje, deve-se essencialmente à tendência norte-americana de expandir exageradamente o conceito de propriedade intelectual, rejeitando por tal motivo qualquer restrição à amplidão de patentes farmacêuticas ou de outra natureza, como, por exemplo, a obrigação de pagar compensações a comunidades com conhecimentos tradicionais sobre plantas de propriedades curativas”, comenta Ricupero. Como embaixador em Genebra, na Suíça, no final dos anos 1980, ele participou da elaboração dos dois documentos. “A proximidade da conferência no Rio apressou o encerramento da negociação sobre as convenções, que era discutida havia muitos anos”, conta ele a Pesquisa FAPESP.
O terceiro documento resultante da Rio-92 foi a Agenda 21, com recomendações para implantar a sustentabilidade e preservação dos recursos naturais no século XXI. Designado para coordenar a comissão de finanças logo após a abertura da conferência, Ricupero recorda-se que o capítulo da Agenda 21 do qual ele deveria cuidar não tinha sequer título, diferentemente dos outros, já esboçados, para serem concluídos nos dias seguintes. Depois de uma infrutífera reunião aberta a todos os interessados, ele conduziu outra, apenas com os líderes regionais, que começou às 11h do dia 10, já no final da conferência, para elaborar o capítulo sobre finanças da Agenda 21. Após a conclusão de uma proposta, às 4h do dia seguinte, ele notou que seus cotovelos, depois de 16 horas de fricção na mesa de trabalho, estavam em carne viva e sangravam. “Exceto os países nórdicos, nenhum outro queria se comprometer com o financiamento de projetos ambientais”, comenta. Como ele relata em artigo publicado em abril de 1993 na revista Lua Nova, as promessas chegaram a menos da metade dos US$ 10 bilhões esperados.
A Rio-92 deixou ainda mais claro que quem perde com florestas desmatadas e rios poluídos somos nós mesmos, diz Azambuja
“A Agenda 21 caracterizava-se como um poderoso instrumento de planejamento da gestão dos municípios, estados e dos países”, comenta o engenheiro civil Arlindo Philippi Jr., da Faculdade de Saúde Pública da USP e coautor do livro Curso de gestão ambiental (Manole, 2004). “Os países ricos fizeram quase tudo com o que se comprometeram, enquanto nos periféricos como o Brasil poucas propostas avançaram.”
Philippi Jr. e a bióloga Maria Claudia Mibielli Kohler avaliaram a introdução da Agenda 21 nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Santos e Florianópolis, iniciada em 1992, mas interrompida com as mudanças das equipes dos órgãos públicos, como detalhado em um artigo publicado em 2003 na revista Cadernos de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo. “Se o município de São Paulo tivesse considerado as soluções aprovadas na Agenda 21 no planejamento de suas ações, muitos problemas ambientais, como o impacto das inundações de todo início de ano, talvez já tivessem sido minimizados, ou mesmo resolvidos”, diz ele.
A seu ver, a Rio-92 acelerou a criação de órgãos ambientais nos estados e nos municípios, que constituem o arcabouço do Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama), a partir do qual as políticas públicas podem ser implementadas: “A conferência de 1992 ajudou a impulsionar a resolução de muitos problemas, embora menos do que o esperado, como na área de gestão de resíduos, por falta de comprometimento de lideranças políticas nos três níveis de governo”. Goldemberg observa: “Nenhum agente público pode dizer atualmente que é contra o desenvolvimento sustentável”.
Reavaliada na Rio+20, realizada também na capital fluminense em junho de 2012 (ver Pesquisa FAPESP no 193), a Rio-92 foi a primeira reunião da ONU aberta à participação da sociedade civil. Outras cerca de 1.400 organizações não governamentais e 10 mil pessoas debatiam os principais temas ambientais no Fórum Global, uma conferência paralela. “Esse encontro alternativo deixou claro que o ambiente não era assunto que interessava só aos governos e abriu caminho para a sociedade participar diretamente da tomada de decisões sobre políticas públicas”, comenta Azambuja. “A Rio-92 deixou ainda mais claro que quem perde com florestas desmatadas e rios poluídos somos nós mesmos.”
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