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Geologia

Simulações computacionais tentam explicar origem das serras do Mar e da Mantiqueira

Estudo de geofísicos das USP sugere que as cadeias de montanhas se formaram em razão de processos locais, sem influência dos Andes

A formação da serra do Mar foi emulada com o auxílio de um software criado na USP

Fabio Colombini

Modelos computacionais foram capazes de reproduzir o surgimento de duas importantes cadeias montanhosas da região Sudeste. Segundo estudo de pesquisadores do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP), as serras do Mar e da Mantiqueira surgiram como consequência de processos locais, combinando características da estrutura física da Terra e processos de erosão que ocorreram por dezenas de milhões de anos. Por volta de 60 milhões de anos atrás, teria ocorrido o estabelecimento do Rifte Continental do Sudeste do Brasil (RCSB), uma depressão alongada delimitada por falhas, resultando na formação de várias bacias sedimentares, como as de Taubaté e de São Paulo. A formação dessas bacias separou duas grandes escarpas, a serra do Mar, próxima à costa, e a da Mantiqueira, no interior do continente, que, grosso modo, correm em paralelo. O processo é descrito em detalhes em artigo publicado em janeiro deste ano no periódico científico Tectonics.

O processo de formação das duas serras foi emulado por meio de um software, denominado Mandyoc, desenvolvido pelos geofísicos Victor Sacek, do IAG, e Rafael Monteiro da Silva, orientado por ele no doutorado, que assinam o artigo. Até o trabalho da dupla, os estudos geológicos com o objetivo de explicar a formação do RCSB não descreviam processos físicos que validassem as hipóteses. “Nosso trabalho simulou a formação da margem continental sudeste brasileira desde a separação da América do Sul e da África por meio de códigos computacionais”, explica Silva.  Com essa abordagem, os pesquisadores encontraram evidências de que movimentos tectônicos originados na própria região teriam sido suficientes para criar uma falha, uma ruptura, na crosta terrestre superior e provocar o surgimento do RCSB. “A formação desse rifte tem origens locais. Não é preciso invocar, por exemplo, o tectonismo dos Andes, ocorrido a milhares de quilômetros de distância, para explicá-lo”, afirma o geofísico.

Os resultados do trabalho se apoiam na modelagem numérica e na observação de três características geológicas da margem continental do Sudeste brasileiro: o grau de acoplamento entre a crosta (fina camada sólida superficial da Terra) e o manto (grossa camada viscosa, situada imediatamente abaixo da crosta); a magnitude e a extensão da erosão costeira; e a preexistência de zonas de fraqueza na crosta continental. Para realizar centenas de simulações – cada uma delas com duração de três dias a uma semana, dependendo do número de equações simultâneas –, o grupo, que conta com financiamento da FAPESP, contratou máquinas no Google Cloud Platform. “Foram várias dezenas de milhares de horas de simulação numérica rodando em dezenas de núcleos de processamento ao mesmo tempo”, detalha Sacek.

O ponto de partida para calcular a interação entre esses três fatores numa escala de tempo geológico, da ordem de dezenas de milhões de anos, foi a separação entre os continentes africano e sul-americano, que teve início por volta de 140-130 milhões de anos atrás. Essa viagem simulada no tempo sugeriu a presença de uma crosta inferior com viscosidade relativamente baixa, característica que teria facilitado o desacoplamento da crosta superior e contribuído para o surgimento de falhas geológicas. “Para ilustrar a interação entre a parte superior e a inferior da crosta, costumamos propor a imagem de um sanduíche com pasta de amendoim. Se o recheio for menos viscoso, maior é a mobilidade e menor o acoplamento entre os ‘pães’. Geologicamente falando, é um cenário que potencializa o surgimento de falhas e regiões mais suscetíveis a deformações”, explica Sacek.

O grupo liderado pelo geofísico da USP até tentou usar programas criados no exterior para simular a formação do RCSB, mas não encontrou nada pronto com as características que procurava. Uma das exigências era de que o software comportasse ferramentas capazes de resolver algumas equações que regem o comportamento físico das rochas no tempo geológico. A alternativa foi desenvolver um programa próprio, o Mandyoc, forma abreviada de Mantle Dynamics Simulator Code. “O grande desafio para o software era dar conta de simular conjuntamente dois processos: a dinâmica interna da Terra, numa escala de centenas de quilômetros de profundidade, e a ocorrência de erosão e sedimentação, fenômenos mais superficiais da crosta”, diz Silva.

“O programa é uma ferramenta matematicamente robusta, que permite testar numericamente diferentes hipóteses”, comenta o geólogo Claudio Riccomini, do Instituto de Geociências da USP (IG-USP), que não participa dos estudos de Sacek e Silva. Os geofísicos Jamison Assunção, aluno de doutorado do IAG, e Agustina Pesce, da Universidade Nacional de San Juan, na Argentina, também participaram da criação do Mandyoc.

Os autores do trabalho pretendem usar o software para modelar o processo de deformação do Rifte Continental do Sudeste do Brasil em um período mais específico do tempo geológico, os últimos 36 milhões de anos. “Esse conjunto de eventos é relevante em termos aplicados, por exemplo, para a prospecção de petróleo, pois deve ter alcançado a porção marinha adjacente à costa do Sudeste do Brasil, nas bacias de Santos e Campos”, explica Riccomini. O Mandyoc é um programa baseado em código livre e está disponível para download gratuito na plataforma colaborativa Github. Ainda neste ano, os geofísicos do IAG devem publicar um trabalho científico com uma descrição completa das funcionalidades do programa.

Projetos
1. Evolução da bacia hidrográfica do rio Amazonas: Soerguimento dos Andes, clima e outros processos geodinâmicos (nº 17/24870-5); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Victor Sacek (USP); Investimento R$ 142.098,05.
2. Evolução do campo de esforços na litosfera: Uma abordagem numérica (nº 17/10554-4); Modalidade Bolsa de Doutorado; Pesquisador responsável Victor Sacek (USP); Bolsista Rafael Monteiro da Silva; Investimento R$ 179.976,72.

Artigo científico
SILVA, R. M. & SACEK, V. Influence of surface processes on postrift faulting during divergent margins evolution. Tectonics. 19 jan. 2022.

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