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Obituário

Um historiador entre dois mundos

Shozo Motoyama desenvolveu pesquisas de referência sobre história da ciência e imigração japonesa no Brasil

Shozo Motoyama em 2020, no Museu Histórico da Imigração Japonesa no Brasil, em São Paulo

Divulgação / Museu Histórico da Imigração Japonesa no Brasil

Pioneiro em estudos sobre a história das políticas de ciência e tecnologia (C&T) no país e referência em pesquisas sobre a imigração japonesa, o físico e historiador Shozo Motoyama morreu aos 81 anos no dia 26 de janeiro, em decorrência de um mal súbito. Docente aposentado do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), era filho de imigrantes japoneses que se estabeleceram no interior paulista. Deixa a viúva Julia Mizuno Motoyama, dois filhos e três netos.

“Seu pai era professor de matemática e lhe incutiu o gosto pelas ciências naturais, o que o levou a fazer a graduação em física na USP, que concluiu em 1967”, recorda o historiador Gildo Magalhães, diretor do Centro Interunidades de História da Ciência (CHC) da instituição. Em 1971, Motoyama passou a atuar como professor da USP e no ano seguinte defendeu a tese de doutorado “Galileu Galilei ‒ Um estudo sobre a lógica do desenvolvimento científico”, sob orientação do advogado e historiador Eurípedes Simões de Paula (1910-1977). “Inicialmente, ele pensava em se especializar em astrofísica, mas o doutorado lhe valeu o convite para se integrar ao corpo docente de história na FFLCH”, conta Magalhães. Em 1976, obteve o título de livre-docente com “O método na formação da mecânica clássica ‒ Um estudo sobre a lógica do desenvolvimento científico nos séculos XVI e XVII”. Último assistente do físico Mário Schenberg (1914-1990), em entrevista ao Cadernos de História da Ciência , em 2010, Shozo credita a Schenberg o interesse pela filosofia e história que o levariam a mudar sua trajetória de pesquisa para a história da ciência.

“Na nova carreira, Motoyama começou a orientar, de forma pioneira, a pós-graduação em história da ciência. Havia iniciativas isoladas, tanto na USP quanto em outras universidades, mas institucionalmente foi a primeira vez que surgiu em nosso país uma linha de pesquisa inteiramente dedicada à história da ciência e da tecnologia”, destaca. Magalhães conta ainda que, com isso, ele iniciou a formação de um rol de mestres e doutores, incluindo nomes como Ruy Gama (1928-1996), Olival Freire Junior e Francisco Assis de Queiroz. Em 1990, tornou-se o primeiro professor titular em história da ciência, algo inédito no Brasil.

“Motoyama conheceu no Japão e difundiu entre nós as teorias dialéticas sobre o funcionamento da ciência elaboradas pelo físico marxista Mituo Taketani [1911-2000]”, explica Magalhães. Naquele país, desenvolveu pesquisa de pós-doutorado no Laboratório de Ciência e Engenharia da Universidade Waseda e no Laboratório de Raios Cósmicos da Universidade de Tóquio, em 1975. Na volta ao Brasil, coordenou o Núcleo de História da Ciência e Tecnologia no Brasil, apoiado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) entre 1980 e 1983.

“Por sua facilidade em estabelecer contatos com pesquisadores de diferentes linhas de pensamento, Motoyama foi essencial à fundação, em São Paulo, no final de 1983, da Sociedade Brasileira de História da Ciência, a SBHC, da qual foi secretário por vários anos”, conta Magalhães. Em 1988, ele também criou o CHC, que se tornou um polo agregador de professores de várias unidades, como Milton Vargas (1914-2011), da Poli-USP, e Júlio Katinsky, da FAU-USP. Motoyama dirigiu o CHC até aposentar-se, em 2009.

Motoyama escreveu mais de 30 livros sobre a história da ciência e da técnica. Segundo Magalhães, sua produção bibliográfica se intensificou a partir da coordenação conjunta com o ecólogo Mário Guimarães Ferri (1918-1985) da obra editada em três volumes, História das ciências no Brasil (Editora Pedagógica Universitária, 1979-1981). Ele também produziu uma série de livros sobre instituições, incluindo 50 anos do CNPq (FAPESP, 2002), que aborda a história do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico entre 1951 e 2001, a partir do depoimento de 20 de seus ex-presidentes; e Fuvest: 30 anos da Fundação Universitária para o Vestibular (Edusp, 2007). De acordo com Magalhães, as gerações mais novas da graduação em história na USP têm tido contato com a obra de Motoyama por intermédio da coletânea Prelúdio para uma história. Ciência e tecnologia no Brasil (Edusp/FAPESP, 2004). “Motoyama se despediu de nós da maneira característica de sua personalidade tranquila: calmamente, enquanto descansava”, diz.

O engenheiro e físico Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP entre 2005 e 2020, considera Motoyama uma das principais referências em história da ciência e da técnica no Brasil. “Ele liderou, com a física Amélia Hamburguer [1932-2011] e a historiadora Marilda Nagamine, um trabalho sobre a história da FAPESP que muito me ajudou – e ainda me ajuda – a conhecer os debates que contribuíram para a criação da Fundação. Todo pesquisador em São Paulo deveria lê-lo. Sua falta será sentida, como pesquisador, mentor e amigo”, comenta, ao mencionar os livros FAPESP: Uma história de política científica e tecnológica (1999), FAPESP 50 anos: Meio século de ciência (2015), além de Para uma história da FAPESP: Marcos documentais.

O historiador também publicou com Nagamine A engenharia mecânica da Poli/USP e suas contribuições para a sociedade brasileira (Edusp, 2014). O engenheiro naval Ronaldo de Breyne Salvagni, da Escola Politécnica da USP e à época chefe do Departamento de Engenharia Mecânica, além de coordenador do Centro de Engenharia Automotiva, observa que a obra não representa um mero registro factual da história do Departamento de Engenharia Mecânica, na medida em que inclui, também, aspectos únicos obtidos em depoimentos de professores. “O diálogo entre pesquisadores das ciências exatas e humanas nem sempre é fácil, mas no caso do processo de elaboração do livro essa interação correu bem porque Motoyama fez o meio de campo”, recorda Salvagni, ao se lembrar da postura firme e exigente, mas ao mesmo tempo tranquila, do historiador.

O engenheiro civil Vahan Agopyan, reitor da USP, conta que conheceu Motoyama há cerca de 20 anos, quando ele trabalhava na pesquisa para elaboração do livro Escola Politécnica – 100 anos construindo o futuro (Edusp, 2004). “Agradável e simpático, ele deixava as pessoas com quem conversava muito à vontade. Além disso, sua formação em física permitia que explicasse a evolução da ciência e tecnologia do nosso país de uma forma peculiar. Por causa disso, ele era o nosso historiador”, comenta Agopyan.

Orientado por Motoyama no doutorado, o historiador Francisco Assis de Queiroz, do Departamento de História da FFLCH-USP, diz que ele gostava de escutar, “valorizando as diferentes competências que identificava nos alunos”. “Motoyama apreciava trabalhar em equipe, algo menos tradicional nas ciências humanas”, considera. Queiroz destaca que o pesquisador foi um dos responsáveis por consolidar e institucionalizar a história da ciência no Brasil, enfatizando o seu papel como variáveis indispensáveis para o desenvolvimento econômico e social. “Essas reflexões são um legado fundamental para se pensar o papel da C&T, em um momento em que o negacionismo histórico e científico aumenta no mundo todo”, observa.

A trajetória no campo da história da ciência antecedeu seus estudos sobre a imigração japonesa que resultaram em dois livros. Em 2011, publicou Sob o signo do sol levante – Uma história da imigração japonesa no Brasil (1908-1941), volume I; em 2016, Do conflito à integração – Uma história da imigração japonesa no Brasil (1941-2008), volume II, este em parceria com o jornalista Jorge Okubaro. Ambos foram publicados pela editora Paulo’s Comunica e Artes Gráficas.

Dirigiu o Museu Histórico da Imigração Japonesa no Brasil durante dois mandatos, de 1991 a 1997 e de 2008 a 2009, além de ter sido membro-titular da Academia Paulista de História. No museu, fazia parte do Centro de Pesquisas de Imigração e Cultura Japonesa e era coordenador curatorial de uma exposição que estava sendo organizada na instituição. Motoyama também foi presidente do Centro de Estudos Nipo-Brasileiros de 2004 até 2019.

Próxima do historiador em seus últimos anos de vida, Leiko Matsubara Morales, coordenadora da Pós-graduação em Língua, Literatura e Cultura Japonesa no Departamento de Letras Orientais (DLO) da FFLCH-USP, conta que, em suas pesquisas, ele trouxe à luz conflitos que a comunidade japonesa enfrentou no processo de integração na sociedade brasileira, usualmente deixados de fora de narrativas históricas idealizadoras do processo. Outra colaboração fundamental envolve estudos e aulas sobre a modernização do Japão entre o final do século XIX e o começo do XX. “Motoyama enfatizava como o contato com o Ocidente, em especial com a França, colaborou com esse movimento, principalmente a partir da década de 1870”, conta Morales, que o sucedeu na presidência do Centro de Estudos Nipo-Brasileiros.

A pesquisadora explica que parte do ineditismo das pesquisas do historiador está relacionada ao fato de ele trabalhar com fontes em japonês, na medida em que era fluente no idioma. Como professor sênior, dava aulas no Programa de Pós-graduação em Língua, Literatura e Cultura Japonesa, além das atividades de orientação com os alunos. “Ele estava entusiasmado com a orientação de pesquisas sobre a imigração japonesa para o Norte do país, viés pouco estudado na historiografia desse processo, que tende a privilegiar a chegada de japoneses ao Sudeste”, comenta.

Morales conta que há ainda muitos descendentes de japoneses, os nikkei, que não costumam se sentir totalmente integrados à sociedade brasileira, diferentemente de Motoyama, que se considerava plenamente brasileiro. “Por causa do fenótipo, os nipo-brasileiros são considerados japoneses e enfrentam mais dificuldades para se inserir na sociedade local, se comparados a grupos como os italianos ou alemães”, avalia. “Nesse contexto, penso que os interesses de Motoyama sobre a história do Japão representam um movimento de ressignificar suas origens e sua identidade”, reflete.

A pesquisadora diz, por fim, que há cerca de um mês recebeu os originais de um artigo inédito que ele escreveu, intitulado “Imigração japonesa em questão – Surpresas da migração”. Nesse texto, Motoyama procura mostrar como a imigração japonesa alterou a sociedade brasileira em aspectos culturais e econômicos. “Estamos decidindo se ele será publicado na revista Estudos Japoneses ou no livro Estudos nikkei”, conta. “Não temos outro professor de história do Japão e das ciências e tecnologia como Motoyama. Generoso com os outros e rigoroso consigo mesmo, ele ajudou a dar visibilidade ao programa de japonês da USP”, conclui.

Íntegra do texto publicado em versão reduzida na edição impressa, representada no pdf

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