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Obituário

Uma incansável organizadora de arquivos

A historiadora Ana Maria de Almeida Camargo contribuiu para expandir o leque de documentos catalogados

IEA-USP Camargo em 2018, durante seminário no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São PauloIEA-USP

As paredes do apartamento da historiadora Ana Maria de Almeida Camargo, no bairro paulistano dos Jardins, eram cobertas de livros do chão até o teto, a tal ponto que os vizinhos se incomodaram: queixaram-se de que tanto peso bibliográfico poderia comprometer as fundações do edifício. Contrariada, a professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) reagiu à altura.

“Ela ficou possessa. Dizia: ‘São meus livros que dão lastro a esse prédio’”, relata o historiador José Francisco Guelfi Campos, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que foi orientando de Camargo da iniciação científica ao doutorado, todos pela USP. “Por fim, contratou um engenheiro estrutural para fazer um laudo”, completa Campos.

Os livros continuaram em seu lugar. A biblioteca era um dos grandes orgulhos de Camargo, que morreu em São Paulo em 24 de setembro, aos 78 anos, em decorrência de problemas cardíacos. Os primeiros volumes foram herança do pai, advogado com interesse por história. “Ela estudou a biblioteca do pai a ponto de entender quais eram os eixos da coleção e trabalhou para completá-la. Com isso, gostava de contar que triplicou o acervo de livros”, relata Campos.

Além dos livros, a historiadora colecionava objetos de toda natureza, comprados em feiras de antiguidade como a do Bixiga, na região central da capital paulista: cardápios de restaurante, livros de receita, manuais de etiqueta, objetos pessoais de desconhecidos. Esse material, usado principalmente para treinar os estudantes na prática da catalogação e pesquisa em acervos, reflete sua paixão pelo universo dos arquivos.

São numerosas as instituições de memória cujos documentos foram organizados por Camargo ou que recorreram a sua consultoria. Entre os que receberam atenção prolongada constam o Arquivo Histórico de São Paulo, o Arquivo Geral da USP, o Arquivo Público e Histórico de Rio Claro (SP), a Fundação Fernando Henrique Cardoso (Fundação FHC), o Arquivo Histórico de Moçambique, a Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, da USP, a Fundação Bienal de São Paulo, o Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro e, recentemente, o arquivo da atriz Cláudia Wonder (1955-2010) no Museu da Diversidade Sexual, na capital paulista.

Na década de 1980, Camargo fez parte do projeto Brasil: Nunca Mais, que denunciou abusos cometidos pela ditadura militar (1964-1985). Foi também uma das fundadoras da Associação de Arquivistas de São Paulo, conselheira do Conselho Nacional de Arquivos (Conarq) e membro do comitê diretor do Conselho Internacional de Arquivos.

A bibliotecária Johanna Wilhelmina Smit, da Escola de Comunicação e Artes (ECA-USP), ressalta a parceria que Camargo manteve com a historiadora e bibliotecária Heloísa Bellotto (1935-2023) ao longo de quatro décadas (ver Pesquisa FAPESP nº 326). Juntas, desenvolveram a partir de 1986 o curso de especialização arquivística do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB-USP), que foi um dos principais centros de formação na área em São Paulo. Além disso, Camargo, Bellotto e Smit tiveram a iniciativa de criar o Sistema de Arquivos da USP.

O Dicionário de terminologia arquivística (AAB-SP, Secretaria de Estado da Cultura e Departamento de Museus e Arquivos, 1996), escrito por Camargo e Bellotto, tornou-se obra de referência para profissionais do setor em todo o Brasil. “Esse trabalho é um divisor de águas, porque resulta de duas décadas em que elas atuaram juntas, sistematizando o uso dos conceitos que tornam um arquivo inteligível”, avalia a historiadora Silvana Goulart, que realizou uma série de projetos com Camargo. Em 2014, publicaram Centros de memória: Uma proposta de definição (Edições Sesc) e desde o ano passado trabalhavam na criação do Centro de Memória da FAPESP.

Segundo a historiadora Íris Kantor, da USP, Camargo, “juntamente com Bellotto, problematizou o processo de seleção, classificação, descarte, descrição, conservação e acumulação de itens documentais em arquivos públicos ou privados, inaugurando entre nós o que a historiografia internacional denomina archival turn [virada arquivística]”. Para Goulart, a historiadora contribuiu para ampliar a percepção acerca dos itens que podem integrar um arquivo. “Durante muito tempo, praticamente só se levava em conta a documentação oficial. Aos poucos, a historiografia e outras disciplinas começaram a se interessar por todo tipo de documento: cartas, fotografias, diários”, observa.

Quando dirigiu o Arquivo Público e Histórico de Rio Claro, no início dos anos 1980, Camargo chamou a atenção para a importância de se preservar os arquivos pessoais. Segundo Campos, da UFMG, esse foi um dos trabalhos mais determinantes de sua carreira. Isso porque o arquivo da cidade paulista abriga o fundo de Plínio Salgado (1895-1975), líder da Ação Integralista Brasileira.

“O episódio gerou um longo debate, porque Salgado é uma figura controversa”, lembra o historiador. “Mas a polêmica a fez escrever um de seus melhores ensaios: ‘Arquivos não falam’.” O texto, publicado em 2015 como capítulo do livro Arquivos pessoais e cultura (Fundação Casa de Rui Barbosa), organizado por Lucia Maria Velloso de Oliveira e Eliane Vasconcellos, tem apenas três páginas. Como registrou, o arquivo pessoal é um instrumento que oferece ao pesquisador a possibilidade de entender o contexto em que os documentos foram produzidos e a trajetória de determinada personalidade, seja ela controversa ou não.

De acordo com Goulart, esse tipo de acervo é difícil de organizar porque costuma reunir documentos de naturezas muito distintas. “Pode envolver tudo o que a pessoa guardou, de lembranças do seu time do coração até poemas de juventude. É um grande desafio e foi por isso que Ana Maria se apaixonou pelo tema: ela adorava desafios”, diz.

O trabalho de Camargo na Fundação FHC, iniciado há 20 anos, rendeu o livro Tempo e circunstância: A abordagem contextual dos arquivos pessoais: Procedimentos metodológicos adotados na organização dos documentos de Fernando Henrique Cardoso (iFHC, 2007), também escrito em parceria com Goulart. A fundação reúne os acervos de Fernando Henrique não só como presidente da República (1995-2003), mas também como pesquisador e professor universitário. Recentemente, recebeu os arquivos da socióloga Ruth Cardoso (1930-2008), mulher do ex-presidente, e de dois ministros de sua gestão: Sergio Motta (1940-1998), das Comunicações, e Paulo Renato Souza (1945-2011), da Educação.

Nos últimos quatro anos, Camargo ofereceu um curso de atualização sobre Centros de Memória na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin da USP. “O curso formou profissionais de acervos do Brasil inteiro. Sempre teve uma procura enorme, muito pela liderança da professora Ana Maria, que era reconhecida nacionalmente”, declara o sociólogo Alexandre Saes, diretor da biblioteca.

A trajetória da historiadora está vinculada à USP desde a graduação, entre 1963 e 1966. Ela foi uma das assistentes da historiadora Emília Viotti da Costa (1928-2017), aposentada compulsoriamente pelo regime militar em 1968. Camargo se viu então subitamente forçada a substituí-la, tornando-se professora da universidade. Nesse período, continuou lecionando no ensino médio e passou a dirigir, em 1970, a Hemeroteca Júlio de Mesquita, do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (IHGSP).

A hemeroteca foi a base de sua tese de doutorado, também na USP, orientada por Maria Beatriz Marques Nizza da Silva. Em 1976, a Revista de História informou que a banca de defesa havia se espantado com a extensão da pesquisa: quase 2 mil páginas, divididas em 10 volumes, que catalogavam o acervo do IHGSP.

Como historiadora, Camargo dedicou-se ao estudo da imprensa e foi responsável por edições fac-símile de periódicos do século XIX, como a Revista Dramática (Edusp, 2007). “São reproduções extremamente bem cuidadas, que exigiram um enorme trabalho de pesquisa. Ela foi procurar os números que faltavam, para obter a série completa, com a melhor qualidade possível de reprodução”, relata Campos. Camargo herdou também parte da biblioteca do bibliófilo Rubens Borba de Moraes (1899-1986), de quem foi aluna. Juntos organizaram Bibliografia da Impressão Régia do Rio de Janeiro (Edusp/Kosmos, 1993), publicada após a morte de Borba.

Camargo se dedicou ao estudo de um conjunto de publicações denominada “literatura cinzenta” – informação produzida e publicada por diferentes órgãos de governo ou por cidadãos comuns sem objetivos comerciais – no século XIX. “Esses impressos atendiam, em geral, a demandas oficiais, como atos normativos e manifestações diversas do poder público, além de servirem de veículo para expressar opiniões de pessoas e grupos sociais sobre as mais variadas matérias”, afirma Kantor.

De acordo com Smit, a historiadora se definia como “uma obsessiva”. “E era mesmo: acumulava funções, passava a noite trabalhando. Onde quer que a chamassem ou pedissem consultoria, ela aceitava. Era inteiramente dedicada ao trabalho”, resume. Campos, da UFMG, acrescenta que, apesar da rotina intensa, a professora estava sempre disponível. “Ela adorava receber alunos e colegas que tivessem dúvidas ou precisassem consultá-la”, conclui.

Camargo era separada e não deixa filhos.

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