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COVID-19

Vetos presidenciais reduzem efeito da nova legislação sobre quebra de patentes

Congresso Nacional ainda vai apreciar rejeição de trechos do projeto de lei que permite o licenciamento compulsório de vacinas e medicamentos em cenários de crise nacional e internacional

O conhecimento sobre como fármacos são feitos é essencial para a produção local

Maksim Goncharenok / Pexels

A Presidência da República sancionou, na primeira quinta-feira de setembro (2), uma alteração na Lei de Propriedade Industrial (nº 9.279/96). A partir desta data, entrou em vigor a Lei nº 14.200/21, que abre possibilidade para uma eventual quebra de patente de imunizantes, medicamentos e outros inventos que possam auxiliar em situações emergenciais ou de calamidade pública, como a atual pandemia da Covid-19.

A sanção é resultado do Projeto de Lei n° 12/2021, de autoria do senador Paulo Paim (PT/RS), aprovado pelo Congresso Nacional no último dia 11 de agosto (ver Pesquisa FAPESP no 303). “Com a nova lei, o Brasil tem todas as condições para decretar a licença compulsória de medicamentos quando for necessário e urgente”, declarou Paim a Pesquisa FAPESP. Licença compulsória, no caso, é o termo técnico para o que popularmente se conhece como quebra de patente. “Segundo especialistas, a nova lei é um dos instrumentos mais avançados do mundo nesse sentido. Um exemplo disso é o fato de ela assegurar um valor mínimo inicial a ser pago ao detentor da patente, ou do pedido dela, de 1,5% do valor do produto licenciado compulsoriamente”, completa o senador.

Outra novidade é a possibilidade de o Congresso Nacional declarar estado de calamidade pública e realizar o pedido de licença compulsória por lei. “Com a nova legislação, o Brasil poderá se somar a outras nações num movimento mundial de colaboração entre países e laboratórios, em coordenação com a Organização Mundial da Saúde [OMS], que vem atuando para estimular e aumentar as produções locais de imunizantes”, comenta a farmacologista Soraya Soubhi Smaili, ex-reitora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Em nota, a Secretaria-geral da Presidência da República ressalta que “esse licenciamento compulsório não será aplicado, no momento atual, para o enfrentamento da pandemia do coronavírus, uma vez que as vacinas estão sendo devidamente fornecidas pelos parceiros internacionais”. O comunicado ressalva, no entanto, que se no futuro houver um desabastecimento do mercado local “há a previsão legal para a possibilidade de aplicação da medida, em um caso extremo”.

Vetos polêmicos
A maior controvérsia em relação à nova lei tem a ver com os vetos presidenciais a artigos que tratavam da obrigatoriedade de transferência de conhecimento e fornecimento de insumos por parte das empresas que tiverem suas patentes licenciadas.

Smaili argumenta que os vetos atingem o coração da própria lei, impedindo a abertura da metodologia de produção de vacinas ou de medicamentos no país. “Como é possível estabelecer uma produção local de vacinas sem que se tenha a informação sobre como ela é feita? No caso da vacina de Oxford, por exemplo, a Fiocruz [Fundação Oswaldo Cruz] firmou um contrato de transferência de tecnologia para produzi-la aqui no Brasil. A lei fica inócua dessa maneira. Acredito que o Congresso Nacional possa derrubar esses vetos.” O Parlamento tem 30 dias corridos, a partir da sanção, para analisar o veto.

Paim afirma que a transferência de tecnologia em casos de licenciamento compulsório já está prevista internacionalmente pelo Tratado sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (Trips), estabelecido desde 1995 pela Organização Mundial do Comércio (OMC). “Além disso, também foi vetada a possibilidade de que a licença compulsória seja estabelecida por iniciativa do Congresso Nacional em caso de omissão ou de demora do Executivo”, lamenta o senador.

Representantes da indústria farmacêutica, por sua vez, enxergam a questão de maneira oposta. Para Nelson Mussolini, presidente-executivo do Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos (Sindusfarma), os vetos foram acertados. “Os dispositivos vetados feriam os direitos de empresas nacionais e internacionais detentoras de patentes de medicamentos e vacinas ao obrigá-las a efetuar a transferência de know-how”, afirma “E afrontavam os direitos das indústrias farmoquímicas e dos fabricantes de materiais biológicos ao obrigá-los a fornecer os insumos de medicamentos e vacinas.”

Elizabeth de Carvalhaes, presidente-executiva da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma), complementa a argumentação de Mussolini: “Se o Congresso derrubar os vetos presidenciais, isso pode gerar insegurança jurídica e desestímulo para futuros investimentos e parcerias comerciais estratégicas, como as já realizadas entre laboratórios farmacêuticos internacionais e institutos públicos de pesquisa e farmacêuticas brasileiras”.

Smaili, contudo, lembra que vacinas com as quais o Brasil já tem acordo com seus fabricantes de transferência de tecnologia, como é o caso da maioria das que estão sendo aplicadas em território nacional, não entram no rol das que podem ter o licenciamento compulsório requisitado. “A lei é uma carta na manga na mesa de negociações do país com os fabricantes, a fim de garantir as melhores condições comerciais e de abastecimento.”

A ex-reitora da Unifesp ressalta a importância de seguir atualizando a legislação, cuja primeira versão data dos anos 1990. “Um ponto que considero ter ficado pendente é a revisão da lei, que depois de 25 anos está defasada em muitos aspectos, já que o mundo mudou bastante. Vacinas e medicamentos, especialmente em uma situação de emergência, são considerados hoje bens públicos, em vez de propriedade intelectual e comercial.”

Smaili, uma das coordenadoras do Centro de Saúde Global da Unifesp, núcleo cujo objetivo é contribuir com o estabelecimento de ações e políticas públicas necessárias para mitigar o impacto global de infecções emergentes, avalia que o momento é oportuno para o Brasil se engajar na chamada diplomacia da saúde. “Temos muito a contribuir com a comunidade internacional para ampliar o acesso aos bens públicos da saúde.”

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