A pandemia de Covid-19 e a consequente necessidade de distanciamento social para combater a disseminação do vírus Sars-CoV-2 têm agravado o panorama de violência contra a mulher. No Brasil, entre março e abril, os casos de feminicídio cresceram 22,2% em 12 estados, em comparação com o mesmo período do ano passado, de acordo com relatório produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), a partir de solicitação do Banco Mundial. Publicado no começo de junho, o estudo intitulado “Violência doméstica durante a pandemia de Covid-19” mostra que, no Acre, o aumento desses crimes foi de 300%, seguido pelo Maranhão (166,6%) e Mato Grosso (150%). Exacerbada no âmbito da atual crise sanitária, grande parte dessas agressões já ocorria dentro de casa, indicam pesquisas sobre o tema. Com o confinamento, mulheres e crianças que vivem com familiares violentos acabaram expostas a uma situação de maior vulnerabilidade.
O problema não é específico do Brasil. Em todos os continentes, países vêm registrando aumento nos números envolvendo algum tipo de violência contra a mulher. O Fundo de População da Organização das Nações Unidas (ONU) estima em 20% a expansão média de casos, em países que adotaram medidas de isolamento social. Na Argentina, o número de mulheres mortas foi o maior em uma década, com mais de 50 feminicídios registrados nos últimos dois meses. Na Rússia, denúncias telefônicas e pedidos de ajuda para situações de violência doméstica cresceram 70%, no mesmo período. “Muitas vezes as mulheres só identificam que correm perigo no último momento. Temos escutado com frequência a expressão: ‘Se sair o vírus pega, se ficar o marido mata’”, relata Ivete Boulos, coordenadora do Núcleo de Assistência à Vítima de Violência Sexual (Navis) do Hospital das Clínicas (HC) da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP).
Apesar do agravamento agora evidenciado, a violência contra mulheres, adolescentes e crianças, incluindo a violência sexual, não decorre do confinamento, enfatiza a infectologista do HC. “São situações que já existiam antes da pandemia e foram acentuadas com as tensões geradas pelo isolamento social, pela perda de emprego, sobrecarga de trabalho doméstico, convivência em tempo integral sob o comportamento controlador do agressor, entre outras razões”, observa.
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Dados recentes levantados por projetos como o Monitor da Violência já vinham captando movimento de ascensão nos casos de feminicídio no período anterior à pandemia. Elaborado pelo Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP) em parceria com o FBSP e o portal G1, o levantamento constatou que no Brasil esses assassinatos cresceram 7,3% em 2019, em comparação com o ano anterior, e custaram a vida de 1,3 mil mulheres.
Segundo dados da 13a edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, produzido pelo FBSP, em 2018 foram 1.206 os casos de feminicídio no Brasil – um crescimento de 11,3% em relação a 2017. O anuário também revelou a ocorrência de mais de 66 mil casos de agressões sexuais no período, um aumento de 4,1% se comparado com 2017. No contexto global, o relatório da ONU divulgado em abril constatou que nos 12 meses anteriores à pandemia 243 milhões de meninas e mulheres entre 15 a 49 anos foram vítimas de violência sexual ou física.
Os ataques normalmente se dão no âmbito de relações afetivas, sendo o agressor muitas vezes marido da vítima ou pai de seus filhos, conforme estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em 2019, o qual identificou que, no Brasil, 43,1% dos casos de violência contra a mulher ocorrem dentro de casa, 32,2% envolvem pessoas conhecidas e 25,9% o companheiro ou ex-companheiro. No estado de São Paulo, levantamento do Instituto Sou da Paz, feito com base em dados da Secretaria de Segurança Pública e das corregedorias das polícias Civil e Militar, mostrou que em 2019 sete em cada 10 vítimas de feminicídio foram mortas dentro de casa. Ou seja, 125 assassinatos ocorreram nos lares das próprias vítimas. Se comparado a 2018, o aumento foi de 40%. A análise do instituto revelou também que em 80% dos casos a vítima conhecia o autor do crime. Dados do 13o anuário do FBSP indicam ainda que a grande maioria dos estupros é cometida contra meninas de até 13 anos.
Guita Grin Debert, do Departamento de Antropologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), relata que os altos índices de violência registrados dentro de casa evidenciam realidade observada há muito por antropólogos e sociólogos. “A família não é apenas um lugar de afeto, mas também de conflitos, tanto de geração como de gênero”, avalia. Debert, que desenvolve projetos de pesquisa envolvendo a temática de gênero há mais de 20 anos, lembra ainda que as últimas décadas foram marcadas por mudanças radicais na condição feminina. “Hoje cerca de 20% das famílias brasileiras são chefiadas por mulheres, o que representa uma intensa transformação se comparada com a realidade dos anos 1960, quando era necessária autorização do marido para trabalhar fora de casa. Em poucos anos as mulheres têm desafiado o modelo tradicional de feminilidade, que não combina mais com os papéis que atualmente desempenham na sociedade”, observa.
Negras foram 61% das vítimas de feminicídio no Brasil em 2018
Na avaliação de quem estuda o tema, tal processo de conquista de direitos segue desencadeando reações conservadoras, sendo a violência a mais extrema delas. Segundo Heloísa Buarque de Almeida, do Departamento de Antropologia da USP, a partir dos anos 1970, quando mulheres da classe média ingressaram massivamente no mercado de trabalho, os índices de violência também passaram a registrar crescimento. “Quanto mais as mulheres tentam superar as relações desiguais, quanto menos aceitam a autoridade masculina, deixando de cumprir os papéis que lhes foram atribuídos em relação aos cuidados com a casa e a família, mais violência elas sofrem”, observa a antropóloga, que concluiu no final de 2019 o projeto de pesquisa sobre violência sexual e o processo de construção de direitos.
Estudiosos como a antropóloga Beatriz Accioly Lins, pesquisadora do Núcleo de Estudos sobre Marcadores Sociais da Diferença (Numas) da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, que trabalham com o repertório das teorias de gênero e sexualidade, entendem o aumento da violência contra a mulher como uma tentativa de controlar sua crescente autonomia, tanto em relação à sexualidade e ao corpo quanto a questões financeiras. “A partir do momento em que elas começam a contestar atitudes anteriormente consideradas naturais, como situações de assédio, por exemplo, as reações têm se tornado mais virulentas”, afirma Lins, que em tese de doutorado defendida em 2019 analisou violência de gênero na internet.
Linoca Souza
Designação dos assassinatos motivados pelo fato de a vítima ser do gênero feminino, o feminicídio é um problema grave em toda a América Latina. Segundo dados da ONU, a região abriga 14 dos 25 países com as mais altas taxas de feminicídio do mundo. No Brasil, o feminicídio passou a ser categoria penal em 2015, com a aprovação da Lei nº 13.104. Conhecida como Lei do Feminicídio, ela mudou a classificação de casos que anteriormente eram investigados como assassinatos de mulheres. Mariângela Gama de Magalhães Gomes, do Departamento de Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia da Faculdade de Direito (FD) da USP, explica que com a nova lei o feminicídio se tornou circunstância qualificadora, podendo aumentar a pena do agressor. “Quando um crime é classificado como assassinato, a condenação varia de 6 a 20 anos de prisão, mas quando é considerado assassinato qualificado, ou seja, quando o juiz entende que ele foi perpetrado por motivo fútil, por meio de tortura ou outro ato considerado agravante, como é o caso do assassinato motivado por razões de gênero, a pena pode chegar a 30 anos”, detalha. Para Gomes, que coordena projeto de extensão que visa informar vítimas de violência de gênero sobre os direitos previstos na Lei Maria da Penha, além de enquadrar com mais adequação os crimes de feminicídio, a nova legislação tem dado visibilidade para a violência contra a mulher e facilitado o mapeamento de casos.
A Lei do Feminicídio foi aprovada como parte de um processo de transformação do sistema legislativo, explica Gomes. Segundo a pesquisadora, até o início deste século não eram poucos os tribunais brasileiros que absolviam agressores quando entendiam que eles atuavam “em legítima defesa da honra”, em situações nas quais se acreditava que os acusados estavam sendo traídos ou humilhados pelas mulheres. “Historicamente, a ideia da supremacia masculina no âmbito familiar perpassou o sistema legislativo brasileiro desde o início, prejudicando as mulheres não somente no julgamento de crimes cometidos contra elas como também em ações de divórcio e guarda dos filhos”, observa.
Um marco recente desse processo de transformação envolve a aprovação, em 1995, da Lei dos Juizados Especiais Criminais (no 9.099), criados para dar celeridade ao julgamento de crimes com penas de até dois anos, com foco em disputas envolvendo problemas de trânsito ou entre vizinhos. “No começo dos anos 2000, constatou-se que mais de 70% dos casos encaminhados aos juizados especiais envolviam violência contra a mulher”, informa Maria Filomena Gregori, do Departamento de Antropologia da Unicamp. Segundo ela, as condenações previstas pela lei incluíam, principalmente, penas comunitárias, inadequadas para lidar com agressão física. “Acontecia, por exemplo, de mulheres chefes de família denunciarem a violência de seus maridos e a condenação prever a doação de cestas básicas, que acabavam sendo pagas pela própria vítima”, detalha Gregori, que pesquisa a violência contra a mulher desde a década de 1980. De acordo com a legislação, a prerrogativa de iniciar uma ação judicial era da mulher agredida. “A Lei no 9.099 acabou por criar dificuldades de combate aos crimes, pois as vítimas começaram a desistir de denunciar seus agressores, na medida em que muitas vezes as penalidades acabavam por recair sobre elas, como no caso da doação de cestas básicas. Essas situações motivaram discussões a respeito de como a violência contra a mulher deveria ser processada”, conta.
A partir de recomendações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e com o objetivo de atualizar sua legislação, em 2006 o Congresso Nacional aprovou a Lei Maria da Penha. “Foi a primeira vez que a expressão violência de gênero foi utilizada na formulação de uma lei”, informa Gomes, da FD-USP, lembrando que com a nova lei a abertura de processo não depende mais exclusivamente da vontade das vítimas. Hoje, qualquer testemunha de uma agressão pode registrar um boletim de ocorrência e solicitar apuração do caso. “A entrada em vigor da lei motivou uma ampla discussão na sociedade e nos meios de comunicação. Muitas mulheres que sofriam violência em relacionamentos abusivos passaram a ter consciência da situação e as denúncias aumentaram”, informa a pesquisadora.
Gregori reconhece os avanços proporcionados pela Lei Maria da Penha, mas chama a atenção para o fato de ela apresentar um problema de fundo ao conceituar as agressões contra a mulher de violência doméstica e normalmente circunscrever esse tipo de ataque ao contexto de relações conjugais heterossexuais. “A violência que também é motivada por questões de gênero e sexualidade, mas que afeta transexuais, por exemplo, não é contemplada pela legislação”, observa.
A ferramenta chatbot Maia, sigla de Minha Amiga Inteligência Artificial, foi criada em março pelo Ministério Público de São Paulo, a partir de cartilha informativa sobre violência contra a mulher, desenvolvida no âmbito da campanha Namoro Legal. No contexto da pandemia, já foi acessada por mais de mil mulheres e contribuiu para identificar aspectos abusivos em relacionamentos, esclarecer dúvidas e fornecer orientações sobre como proceder no caso de agressões.
Se por um lado os registros oficiais evidenciam a expansão da violência ocorrida em âmbito doméstico, Gregori enfatiza a necessidade de analisar um fenômeno recente, que diz respeito às crescentes manifestações públicas de violência contra a mulher, e inclui abusos em trotes universitários e ações de cyberbullying. Pasinato também chama a atenção para ocorrências que extravasam a esfera doméstica, como assassinatos de meninas por facções criminosas no Ceará. “Muitas delas têm a morte decretada pela internet porque namoram integrantes de grupos rivais”, informa. Em sua tese de doutorado, defendida na FFLCH-USP, Lins estudou o vazamento de nudes, fenômeno também conhecido como pornografia de vingança. “As mudanças tecnológicas da última década afetaram o exercício da sexualidade. Com o surgimento de aplicativos de relacionamento, afetivos ou sexuais, disseminou-se a utilização de imagens do próprio corpo como forma de sedução ou paquera”, observa. De acordo com a antropóloga, uma nova manifestação da violência contra a mulher envolve a circulação dessas imagens sem prévia autorização. A antropóloga faz um paralelo desse tipo de agressão com situações de assédio sexual, caracterizadas pelo não consentimento de uma das partes. “Não se pode esquecer que no espaço virtual, na internet, as pessoas têm os mesmos direitos e deveres daqueles que valem para fora dela.”
Em 2018, o país registrou mais de 66 mil casos de violência sexual. Entre as vítimas, 53% tinham menos de 13 anos
Entre outros aspectos, lidar com a violência contra a mulher demanda preparo específico da polícia. “Sem qualificação, muitos policiais menosprezam a gravidade das ocorrências e as mulheres acabam por desistir de registrar boletim de ocorrência contra seus parceiros”, observa a psicóloga Juliana Martins, coordenadora institucional do FBSP. Recentemente, estados como Piauí, Maranhão, Paraíba e o Distrito Federal adotaram medidas para melhorar a compreensão de questões de gênero dentro das instituições policiais, com a finalidade de aperfeiçoar a investigação e o registro de crimes. Em 2018, a Academia de Polícia do Estado de São Paulo elaborou um manual para auxiliar policiais a desenvolver um olhar sensível às questões de gênero. “A apuração de feminicídios requer uma competência que nem todas as delegacias detêm. É preciso, por exemplo, identificar se a mulher foi morta pela sua condição de mulher, em que medida isso a deixou mais vulnerável e se havia um histórico de agressões”, informa a socióloga Giane Silvestre, pesquisadora de pós-doutorado no NEV-USP. Ela lembra ainda que nem sempre a via judicial constitui a opção mais imediata para situações de agressão. “Muitas vezes as mulheres são ainda mais atacadas quando o parceiro descobre a tentativa de denúncia. O sistema de Justiça também deve contar com ampla estrutura de acolhimento às vítimas, com psicólogos e assistentes sociais, para ajudá-las a sair de relacionamentos abusivos”, defende.
Em relação ao contexto atual de pandemia, a criação de sistemas on-line para recebimento de denúncias, serviços de alerta em farmácias e supermercados, abrigos temporários para as vítimas e restrições à venda de bebidas alcoólicas são algumas recomendações da ONU para combater a atual escalada de agressões. “É importante lembrar que as mulheres podem estar isoladas, mas não estão sozinhas”, finaliza Boulos.
Violência contra a mulher
Qualquer ato ou conduta baseado no gênero que cause morte, sofrimento físico, sexual, psicológico, moral ou danos patrimoniais à mulher, tanto na esfera pública quanto na privada.
Violência sexual
Quaisquer atos sexuais ou tentativas de realizar um ato sexual, comentários ou investidas sexuais não consentidos, atos para comercializar ou de outra forma controlar a sexualidade de uma pessoa pelo uso da coerção, realizados por qualquer pessoa, independentemente de sua relação com a vítima, em qualquer ambiente, incluindo, sem estar limitados, a residência e o trabalho. Abrange toda ação praticada em contexto de relação de poder, quando o abusador obriga outra pessoa à prática sexual ou sexualizada contra a sua vontade, por meio da força física, de influência psicológica (intimidação, aliciamento, indução da vontade, sedução) ou do uso de armas e drogas.
FONTES ONU/OMS
Projetos
1. Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP (nº 13/07923-7); Modalidade Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid); Pesquisador responsável Sergio França Adorno de Abreu (USP); Investimento R$ 23.268.665,90.
2. Significados de violência sexual: as mídias e a disputa pública por construção de direitos (nº 17/02720-1); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Heloisa Buarque de Almeida (USP); Investimento R$ 33.481,14.
3. Por uma Lei Maria da Penha da internet? Gênero, sexualidade, violência e internet nos debates sobre pornografia de vingança (nº 15/03866-4); Modalidade Bolsas no Brasil – Doutorado; Pesquisadora responsável Heloisa Buarque de Almeida (USP); Bolsista Beatriz Accioly Lins de Almeida; Investimento R$ 263.635,36.
4. Violência, gênero e limites da sexualidade: da consolidação de direitos aos abusos e intolerância em público (nº 16/11231-1); Modalidade Bolsas no exterior – Pesquisa; Pesquisadora responsável Maria Filomena Gregori; Investimento R$ 34.344,64.
Relatórios
Violência Doméstica durante a Pandemia de Covid-19 (ed. 2). Fórum Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo. mai. 2020.
Anuário Brasileiro de Segurança Pública (13a edição). Fórum Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo. 2019.
CERQUEIRA, D. et al. Participação no Mercado de Trabalho e Violência Doméstica contra as Mulheres no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), 2019.