Por cerca de 900 anos, entre os séculos IX a.C. e I d.C., os membros da antiga civilização Paracas habitaram uma faixa litorânea entre o vale de Cañete e a bacia do Rio Grande de Nazca, no centro-sul do Peru. Distante 270 quilômetros ao sul de Lima, a área em torno da península de Paracas, com grande potencial pesqueiro, foi o cenário dos achados mais importantes dessa cultura na década de 1920, quando foram descobertos grandes cemitérios. Os Paracas são conhecidos por sua arte têxtil, em especial os mantos, cerâmica polida e técnicas de trepanação craniana para tratar traumatismos encefálicos causados por batalhas e outras doenças neurológicas. Os trabalhos arqueológicos mais antigos costumam descrever os Paracas da península como um povo cuja alimentação se baseava em peixes e frutos do mar e era apenas complementada por cultivos agrícolas.
Um estudo feito por arqueólogos do Brasil e do Peru inverte a visão dominante sobre os hábitos alimentares desse povo, que antecedeu e influenciou a cultura Nazca. “Embora alguns de seus sítios arqueológicos se situassem a apenas 400 metros do Pacífico, os Paracas não tinham uma dieta típica de pescador, mas de agricultores”, afirma o principal autor do trabalho, o peruano Luis Pezo-Lanfranco, que concluiu o mestrado e o doutorado no Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP), onde hoje faz estágio de pós-doutorado. “Eles cultivavam e comiam muito carboidrato, primeiramente tubérculos e legumes e, mais tarde, essencialmente milho.” A participação de alimentos do mar em sua dieta decresceu ao longo do tempo enquanto a de carboidratos aumentou.
Ao lado da compatriota Delia Aponte, da Universidade Nacional Maior de São Marcos, de Lima, e de sua orientadora na pós-graduação, Sabine Eggers, coordenadora do Laboratório de Antropologia Biológica do IB-USP, Pezo-Lanfranco publicou artigo na edição de junho da revista Ñawpa Pacha: Journal of Andean Archaeology sobre a alimentação dos Paracas. O trio analisou a incidência de cáries e a conservação de 690 dentes de 56 indivíduos oriundos de três fases distintas da ocupação na península e em seu entorno: Karwas, de 700 a 550 a.C.; Paracas Cavernas, de 550 a 260 a.C.; e Paracas Necrópolis, de 260 a.C. a 100 d.C. Os pesquisadores constataram a presença de ao menos uma cárie em, no mínimo, 70% dos indivíduos de cada período de ocupação e altos índices de cáries de superfícies lisas ou não retentivas. Esses dados sugerem que os Paracas, ao longo de séculos de ocupação costeira, consumiram regularmente carboidratos fermentáveis, tipo de comida que favorece a incidência de cáries.
Os dentes também se mostraram pouco desgastados, indício de que sua dieta devia ser rica em comidas macias, como cozidos de vegetais. O consumo de peixes e frutos do mar, cujos vestígios são abundantes na região, pode não ter sido tão alto quanto o esperado. Antigas populações litorâneas que comiam grandes quantidades de alimentos de origem marinha, como as dos sambaquis encontrados em partes da costa brasileira, costumam apresentar dentes desgastados pelo constante atrito mecânico com comida envolta por restos de areia e conchas, um padrão distinto do encontrado em Paracas.
A partir de amostras da proteína colágeno e do mineral apatita extraídas de dentes de 11 indivíduos representativos das três fases de ocupação, os arqueólogos ainda analisaram a ocorrência de diferentes formas, os chamados isótopos, de três elementos químicos: carbono, nitrogênio e oxigênio. A concentração dos elementos reflete o caráter da dieta no momento em que os dentes se formaram, durante a infância dos antigos Paracas. Os dados das análises evidenciaram que o peso dos carboidratos era maior do que se pensava e que sua importância aumentou com o passar do tempo, sobretudo entre os séculos V e II a.C.
De onde vinham os legumes, os tubérculos e o milho consumidos cotidianamente? Há duas possibilidades, não excludentes: do cultivo feito por eles mesmos em seu território desértico à beira-mar ou de trocas comerciais com povos que plantavam em áreas mais férteis dos vales andinos vizinhos. “De qualquer forma, o estudo mostra que os Paracas tinham um desenvolvimento agrícola e uma complexidade social mais antiga do que se imaginava, um dado que pode ter repercussões sobre a cronologia de ocupação das regiões vizinhas”, comenta Sabine. Em um primeiro momento, a ideia de que a agricultura pode ter prosperado naquele ponto do atual Peru há mais de 2 mil anos parece um devaneio. Praticamente não chove ali (hoje a média anual é de 2 milímetros), há risco de terremotos e tsunamis e o vento é inclemente. “Mas existem evidências de que no passado o clima era menos seco e o lençol freático se encontrava em um nível mais superficial”, comenta Pezo-Lanfranco. “Isso deve ter permitido o estabelecimento de sistemas de irrigação para o cultivo mediante o aproveitamento de águas superficiais no próprio deserto.”
Projeto
Padrão de subsistência e complexificação social: uma perspectiva bioantropológica comparativa entre populações pré-históricas de ecossistemas litorâneos da América do Sul (nº 2011/50339-9); Modalidade Bolsa no Brasil – Doutorado; Pesquisadora responsável Sabine Eggers (IB-USP); Bolsista Luis Pezo-Lanfranco; Investimento R$ 165.547,00.
Artigo científico
LANFRANCO, L. P. et al. Aproximación a la dieta de las sociedades formativas tardías del litoral de Paracas (costa sur del Perú): evidencias bioarqueológicas e isotópicas. Ñawpa Pacha, Journal of Andean Archaeology. v. 35, n. 1, p. 23-55. jun. 2015.