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História

Anos de chumbo on-line

Projeto Memórias Reveladas colocará na internet documentos sobre a repressão na ditadura militar

ARQUIVO NACIONALManifestação contra o regime militarARQUIVO NACIONAL

Uma revolução está acontecendo nos arquivos públicos de todo país desde maio deste ano. Acervos estaduais e federais, universidades, ministérios e entidades de defesa dos direitos humanos estão empenhados em tornar possível no menor espaço de tempo o Projeto Memórias Reveladas, que pretende reunir na internet milhões de documentos produzidos pelos órgãos de repressão de todos os estados brasileiros sobre presos políticos e luta armada durante a ditadura militar (1964-1985). É a primeira vez na história que os arquivos dos estados da federação se unem para uma empreitada de tamanha magnitude. De modo mais amplo, a interação irá possibilitar o cruzamento dos dados que estão sob a guarda do arquivo regional de cada capital.

Em sentido mais restrito, deve redimensionar a pesquisa histórica do período de diversas formas. Como, por exemplo, ampliar o volume de documentos disponíveis para consulta e permitir que parentes de mortos e desaparecidos ou vítimas sobreviventes possam saber o que foi registrado sobre elas e como sua vida foi monitorada pelas forças de repressão. E mais: promoverá um barateamento das pesquisas, uma vez que interessados de todo país não precisarão mais buscar recursos para se deslocar até São Paulo, Rio de Janeiro ou Brasília – onde está armazenado um número maior de documentos. Enfim, será possível consultar nomes arquivados em qualquer parte do país sem sair de casa e fazer uso dos mesmos sem avolumar papéis e reproduções.

À frente da iniciativa está a Casa Civil da Presidência da República, com a coordenação do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. Desde maio, quando foi lançado oficialmente o Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil (1964-1985) – Memórias Reveladas, uma média de cinco novos parceiros tem se juntado à iniciativa de vários pontos do Brasil e até do exterior. Eram mais de 40 até a última semana de setembro. A lista inclui arquivos estaduais, centros de documentação, centros de pesquisas e entidades vinculadas às universidades, Comissão de Anistia, Comissão de Mortos e Desaparecidos e a americana Brown University. Em setembro foi a vez da FAPESP fechar uma parceria com o Arquivo Nacional e o Arquivo Público do Estado de São Paulo para participar do financiamento do trabalho de digitalização dos documentos e da compra de equipamentos.

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Com isso, o trabalho deverá ser retomado em breve – estava parado desde julho, quando foi encerrada a primeira etapa, que começou em novembro passado e durou oito meses, com patrocínio da Petrobras. “A busca pela parceria da FAPESP nasceu da nossa percepção de que um terço dos que desenvolvem o levantamento dos documentos ligados à repressão é de São Paulo, até porque foi o estado onde mais se deu a resistência armada e estudantil ao regime militar”, observa o professor Carlos de Almeida Prado Bacellar, coordenador do Memórias Reveladas pelo Arquivo do Estado de São Paulo. Os detalhes de como o acordo será colocado em prática, acredita ele, devem ser definidos nas próximas semanas.

Bacellar afirma que, “pela tradição da FAPESP, que é bastante atuan­te em pesquisa no Brasil”, foi feito um contato entre a direção do arquivo com o presidente do Conselho Superior da Fundação, Celso Lafer. “Logo finalizamos um compromisso de cooperação que nos deixou muito felizes e certos de que logo retomaremos os trabalhos.” A FAPESP se enquadra como financiadora porque o projeto prevê a organização e tratamento de acervos de diversos fundos documentais sob a guarda de arquivos estaduais e centros de documentação em universidades paulistas.

O Arquivo Público de São Paulo abriga o maior acervo do gênero no país, com aproximadamente 150 mil prontuários, 1,1 milhão de fichas do Deops e 9 mil pastas com dossiês, além de 1.500 pastas de Ordem Política e 2.500 pastas de Ordem Social. Todo esse material data desde a década de 1930, quando foram criados os primeiros órgãos de vigilância e repressão política, durante a Presidência de Getúlio Vargas (1883-1954). Na etapa inicial do Memórias foram microfilmadas 2 mil pastas com dossiês e digitalizadas 340 mil fichas temáticas do Arquivo Geral do Deops, por uma equipe de 25 pessoas. Está previsto o escaneamento de mais 660 mil fichários. “O ideal seria dobrar o número de colaboradores para reduzir o tempo à metade”, sugere Bacellar. Uma necessidade urgente ainda, ressalta, é a aquisição de um equipamento para transformar microfilmes em arquivos digitais, uma vez que existem mais de 1,5 milhão de imagens nessa condição. A máquina custa cerca de € 55 mil ou R$ 150 mil.

Vicente Arruda, coordenador nacional do Memórias Reveladas pelo Arquivo Nacional, define a iniciativa como um projeto de uma geração de brasileiros que lutou contra um regime de opressão. “Não é algo que possa ser dimensionado porque é uma iniciativa que nos leva a descobertas constantes, todos os dias, a todo momento, inclusive por causa de doações de arquivos particulares.” Ele conta que, pela Lei Rouanet, foi possível captar em 2005 R$ 7 milhões de estatais como Petrobras, Eletrobrás, Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal e BNDES. Com a adesão de diversos organismos nos últimos meses, como a FAPESP, não se pode ainda quantificar quanto todas movimentam juntas, mas deve ser uma quantia superior ao que veio das estatais.

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O coordenador acredita que a adesão da FAPESP ajudará a atrair novos colaboradores que atuam como fomentadores de pesquisa. Ou seja, outras fundações estaduais. Faperj (Rio de Janeiro), Facepe (Pernambuco) e Fapemig (Minas Gerais) já foram contatadas pelo Arquivo Nacional. Caso participem do projeto, como sua área de atuação é limitada geograficamente, ajudarão com recursos os arquivos de seus estados, principalmente aqueles que abrigam as fichas dos presos políticos produzidas pelas unidades do Deops. Somente os documentos sigilosos não serão disponibilizados para consulta na rede – os chamados “ultrassecretos”, com sigilo de 10, 15 ou até 30 anos, renováveis pelo mesmo período. Assim, aqueles cujo prazo de sigilo já tenha expirado e os que não possuem nenhuma classificação poderão ser livremente consultados.

Todo esse trabalho de organização dos acervos estaduais está sendo feito dentro da Norma Brasileira de Descrição Arquivística (Nobrad) para que, assim, padronize-se a descrição dos documentos em todo país. “Compreendo o Memórias Reveladas como uma iniciativa similar a outras que estão sendo desenvolvidas em outros países. Por isso existe a intenção de expandir a rede para toda América Latina, vamos tentar fazer uma integração com países que viveram regimes ditatoriais nas últimas décadas.” Ele lembra que os argentinos já demonstraram interesse recentemente. A Rádio Nacional, de Buenos Aires, fez uma reportagem em agosto sobre o projeto.

Arruda explica que, além do objetivo inicial de digitalização das fichas, por intermédio da Rede Nacional de Cooperação e Informação Arquivística, recém-criada por causa do projeto, no futuro, podem-se desenvolver outros projetos nesta rede mundial de computadores. Outra mudança significativa tem sido o fato de que muitos arquivos estaduais estão sendo informatizados para se juntar ao Memórias. “Estamos assistindo à consolidação de uma política pública de valorização do patrimônio documental, que inclui também a formação de técnicos.” Ele lembra ainda que o Arquivo Nacional está lançando uma campanha nacional de divulgação do projeto e para convocar a sociedade a entregar documentos, inclusive agentes da repressão, com a promessa de sigilo total.

O Centro de Referência das Lutas Políticas começou a funcionar com mais de 13 mil páginas de documentos recolhidos pelo Arquivo Nacional. Em 2005 a Casa Civil da Presidência da República determinou que as instituições federais transferissem toda a documentação sobre a ditadura militar para o Arquivo Nacional. A Agência Brasileira de Inteligência (Abin), por exemplo, teve de ceder todos os arquivos do Conselho de Segurança Nacional (CSN), da Comissão Geral de Investigações (CGI) e do Serviço Nacional de Informações (SNI), órgãos encarregados de fazer a vigilância e a repressão política entre as décadas de 1960 e 1980. Desse modo, o Arquivo Nacional aumentou em mais de 10 vezes o seu acervo sobre a ditadura militar. O banco de dados Memórias Reveladas será alimentado on-line pelas instituições parceiras à medida que os documentos forem digitalizados, e não de uma só vez. Também fará parte deste banco de dados a documentação do Arquivo Nacional sobre a ditadura militar.

Na verdade, São Paulo saiu na frente no esforço de disponibilizar seus documentos na rede. Bacellar explica que a ideia de criar um centro de referência virtual sobre repressão política durante a ditadura militar no estado foi colocada em prática desde 2005 e tinha como base o acervo do Deops, que é considerado o mais aberto do país – funciona desde 1991. “Sempre trabalhamos com muito cuidado, afirmamos termo de compromisso e responsabilidade pelo uso de informações pessoais com todos os pesquisadores que nos procuram e nunca tivemos processo.” Com parte do acervo na internet, o usuário precisa se cadastrar pessoalmente e pegar uma senha para acessar os documentos. “Trabalhamos com responsabilidade, dentro do conceito de que não se pode negar acesso público a documentos se uma medida assim acoberta ações irregulares cometidas em nome do Estado. O torturador não pode ser protegido pelo Estado.”

Memória e verdade
O resgate da memória da repressão durante o regime militar tem sido feito em várias frentes por instituições oficiais. Como o projeto Direito à Memória e à Verdade da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, iniciado em 29 de agosto de 2006. “A diferença do nosso é que enquanto o Memórias Reveladas trabalha com a digitalização de arquivos para a internet, nós promovemos eventos, exposições, publicação de livros etc.”, explica Vera Rotta, conselheira de arquivos da secretaria e assessora. “Embora não tenham ligação direta, formal, os dois possuem uma interface, completam-se nesse esforço de resgatar a história daquele período”, acrescenta. Em 2007, por exemplo, foi lançado o livro Direito, memória e verdade, em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

A primeira edição do livro teve tiragem de 3 mil exemplares, distribuídos a comissões de familiares, centros de pesquisa, imprensa, parlamentares e bibliotecas públicas. Vera conta que o volume foi lançado em cerimônia no Palácio do Planalto, com a presença de familiares de vítimas, recebidos antes pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em audiência reservada. Resultou de 11 anos de trabalho da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos – Vera integrou a equipe que sistematizou a histórica documentação. São recuperadas as trajetórias políticas e muitas vezes trágicas de 479 militantes políticos que atuaram em oposição às forças do Estado entre 1961 e 1988.

Uma dos aspectos que chamam a atenção em Direito, memória e verdade para pesquisadores é o fato de trazer a antiga versão para o que supostamente teria ocorrido com os desaparecidos de acordo com os órgãos de repressão e uma nova versão oficial, obtida depois da pesquisa realizada pela comissão. Dos levantamentos feitos, o saldo foi o seguinte: 136 pessoas já tinham suas mortes ou desaparecimentos reconhecidos oficialmente, outras 221 passaram a ter direito a indenização para as famílias após o trabalho da comissão; e 118 tiveram pedidos de reconhecimento oficial negados.

O projeto Direito à Memória e à Verdade também é responsável pela construção de memoriais às vítimas da repressão, como o momumento em frente à reitoria da UFMG aos quatro estudantes mortos nessa universidade; o memorial, em Santa Catarina, em homenagem ao sociólogo Paulo Stuart Wright, ex-militante da Ação Popular (AP); e outro memorial, inaugurado recentemente, para homenagear os cinco estudantes mortos na PUC-SP.

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