As bactérias do gênero Treponema, responsáveis por doenças como a sífilis venérea, estão presentes no Brasil há pelo menos 2 mil anos, de acordo com um artigo publicado por um grupo internacional, com participação de pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), em janeiro na revista Nature. A afirmação é possível graças a análises do DNA retirado de amostras de sepultamentos do sambaqui Jabuticabeira II, um sítio arqueológico localizado no litoral de Santa Catarina. É a confirmação mais antiga da presença de bactérias causadoras de treponematoses, nesse caso da subespécie Treponema pallidum endemicum.
As treponematoses são um grupo de quatro doenças, provocadas por linhagens diferentes de bactérias. Embora todas causem manifestações cutâneas, a pinta, causada por Treponema pallidum carateum, é a única cuja evolução do quadro sem tratamento não atinge os ossos. Já a bejel (T. pallidum endemicum), a bouba (T. pallidum pertenue), que também é conhecida como framboesia, e a sífilis (T. pallidum pallidum) deixam marcas nos ossos que permitem aos bioarqueólogos rastrear a presença dessas doenças em esqueletos encontrados em sítios arqueológicos.
Pesquisadores buscam determinar o caminho evolutivo que levou à dispersão das treponematoses. Para ajudar a responder a questão, ainda em 2012 o médico José Filippini, em sua pesquisa de doutorado defendida no Instituto de Biociências da USP (IB-USP), analisou esqueletos exumados de 45 sambaquis das regiões costeiras do Sul e Sudeste do Brasil datadas entre 8 mil e 500 anos. Ele buscava lesões ósseas sugestivas de três das treponematoses. Dos 768 indivíduos estudados, foram encontrados 22 casos suspeitos em 14 sítios analisados. Nos demais esqueletos, ele não conseguiu precisar o tipo. O resultado, publicado em 2019 na Chungara: Revista de Antropología Chilena, sugere a existência de treponematose na costa brasileira pelo menos 6 mil anos antes do contato europeu.
No entanto, essas análises não permitem concluir com 100% de certeza que se tratava de casos de sífilis adquirida ou mesmo outra treponematose. Uma conclusão mais precisa depende da recuperação do DNA antigo das bactérias nos ossos com suspeita da doença. Foi justamente o que buscou fazer o grupo de pesquisadores no estudo publicado na Nature. A bioantropóloga Sabine Eggers foi professora no IB-USP até 2016 e orientadora de Filippini durante o doutorado. Ao ingressar no Museu de História Natural de Viena, na Áustria, viu a oportunidade de, com os colegas, aprofundar-se na análise genética do Jabuticabeira II.
Localizado em Jaguaruna (SC), é um dos sambaquis mais extensivamente estudados na história da arqueologia brasileira, embora parcialmente destruído há algumas décadas por atividades de mineração. Com datações que mostram uma ocupação contínua por mil anos, abrange uma área de aproximadamente 8,4 hectares, com elevação de aproximadamente 10 metros de altura.
Os pesquisadores reconstruíram quatro genomas antigos de Treponema nas amostras de osso humano de Jabuticabeira II. O DNA encontrado era semelhante ao da bactéria T. pallidum endemicum, causadora da bejel. “Foi um choque. Mesmo 2 mil anos atrás, o ambiente do litoral era úmido e a bejel é típica de regiões áridas. Esperávamos encontrar sífilis ou bouba, não bejel”, afirma Filippini, coautor do artigo deste ano. “Vimos que os treponemas são muito mais flexíveis em sua adaptabilidade do que pensávamos. Fazíamos o diagnóstico pelos ossos pensando também no clima da região na época, mas vimos que não é o melhor parâmetro”, complementa Eggers.
Por análise filogenética, que permite inferir a data da diferenciação evolutiva das espécies a partir do DNA, os pesquisadores puderam apontar que a bejel se diferenciou das outras treponematoses há, no mínimo, 12 mil anos. A data corrobora o resultado de um estudo de 2022 do dentista e arqueólogo Rodrigo Oliveira, também do IB-USP. Enquanto buscava sinais de cáries entre moradores da região de Lagoa Santa, em Minas Gerais, que viveram entre 10 mil e 8 mil anos atrás, deparou com lesões ósseas com indícios de uma possível sífilis venérea em uma criança morta há 9.400 anos, embora ainda careça de confirmação por DNA.
Todas as evidências confirmam que bactérias do gênero Treponema estavam no Brasil bem antes da colonização. O resto da história segue como um mistério. Não se sabe se a sífilis adquirida, doença que ainda hoje causa preocupação no Brasil e no mundo, chegou com os primeiros humanos que adentraram as Américas, entre 23 mil e 15 mil anos atrás, ou se as mutações ocorreram já neste continente, com posterior dispersão para outros cantos do mundo. Estudos realizados em ossos com sinais de treponematose coletados em sítios arqueológicos no México e na Europa, que poderiam ajudar a traçar a trajetória geográfica da doença ao longo do tempo, não permitiram afirmar se as amostras eram pré-colombianas. Novos estudos semelhantes ao realizado com os ossos de Jabuticabeira II serão necessários para traçar a história de como a sífilis e outras treponematoses chegaram à América – ou emergiram dela. “As técnicas de recuperação de DNA desenvolvidas recentemente prometem esclarecer essas dúvidas”, finaliza Eggers.
“O artigo da Nature não traz uma resposta definitiva sobre como ou quando, precisamente, as treponematoses entraram nas Américas. Como nesse estudo estamos falando de esqueletos relativamente recentes, de cerca de 2 mil anos, é possível contar um pouco sobre a evolução das treponematoses na América, mas não em outras áreas”, comenta Oliveira, que não tem relação com o estudo.
O arqueólogo Paulo DeBlasis, do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP, estudou o sambaqui Jabuticabeira II e diz que o achado ajuda a contar a história dos povos sambaquieiros. “Até os anos 2000, acreditava-se que se tratavam de povos pequenos com grande mobilidade. Esse estudo reforça a perspectiva de uma sociedade complexa, territorialmente estável e com considerável densidade demográfica, pois não é tão comum doenças dessa natureza aparecerem e expandirem em grupos de dimensões reduzidas.”
Enquanto bouba e pinta foram consideradas erradicadas do Brasil ainda na metade do século passado, e a bejel ocorre hoje principalmente em países áridos do Mediterrâneo e oeste da África, os casos de sífilis, no Brasil e no mundo, não param de crescer. Atingem cerca de 250 mil brasileiros todos os anos. Foram 99,2 casos para cada 100 mil habitantes em 2022, segundo o Ministério da Saúde.
A Organização Mundial da Saúde estima que 7,1 milhões de adultos entre 15 e 49 anos adquiriram sífilis em 2020 no mundo todo. É a única treponematose capaz de afetar órgãos internos, causando danos ao sistema nervoso e complicações cardiovasculares. Em gestantes, pode atravessar a placenta e causar a sífilis congênita. Apesar de a penicilina ser utilizada com eficácia no tratamento antibiótico desde a década de 1940, o caráter sexual da transmissão e o período assintomático da doença tornam seu controle mais difícil.
Projetos
1. Sambaquis e paisagem: modelando a inter-relação entre processos formativos culturais e naturais no litoral sul de Santa Catarina (nº 2004/11038-0); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Paulo Antônio Dantas de Blasis (USP); Investimento R$ 1.341.927,19.
2. Complexos arqueológicos da costa sul-catarinense: investigações do entorno de sambaquis litorâneos de Santa Catarina com base em métodos geofísicos e geológicos de investigação (nº 12/02678-1); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Paulo Antônio Dantas de Blasis (USP); Investimento R$ 308.431,16
Artigos científicos
MAJANDER, K. et al. Redefining the treponemal history through pre-Columbian genomes from Brazil. Nature. On-line. 24 jan. 2024.
FILIPPINI, J. et al. Estudio regional sistemático de treponematosis en conchales (sambaquis) precolombinos de Brasil. Chungará. v. 51, n. 3, p. 403-25. set. 2019.
OLIVEIRA, R. et al. An Early Holocene case of congenital syphilis in South America. International Journal of Osteoarcheology. v. 33, n. 1, p. 164-9. jan-fev. 2023.