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Resenha

Leite e subdesenvolvimento

Leite para os trópicos! Consumo, produção e políticas públicas no Brasil, 1889-1964 | Sören Brinkmann | Editora Fiocruz | 270 páginas | R$ 66,00

“Ele não aceita mais desculpas […]. Vai nos deixar ainda sem leite […].” Com essas duras frases, a esposa de Naziazeno Barbosa retransmite a sentença do leiteiro que, tendo seus pagamentos atrasados, ameaçava a entrega do alimento matinal da família. Com o evento, o escritor Dyonélio Machado constrói o enredo do livro Os ratos (1935), angustiante jornada de um funcionário público pelas ruas de Porto Alegre para saldar sua dívida e garantir o leite de seu filho. Como fica explícito pela jornada de Naziazeno, o consumo de leite era um termômetro dos impasses de uma modernização periférica, em que a urbanização trazia as marcas da desigualdade social e, por vezes, da carestia.

Seguindo pela mesma temática, a obra do historiador alemão Sören Brinkmann, Leite para os trópicos!, oferece cuidadoso estudo para uma questão que ainda merece ser mais explorada na historiografia brasileira. Iluminando o que chama de “a questão do leite”, Brinkmann percorre o desafio do abastecimento do produto, especialmente nas cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo, observando as dimensões econômicas e sanitárias da produção e do consumo da bebida. O recorte cronológico da obra abarca a Primeira República (1889-1930) e o período “desenvolvimentista” (1930 a 1964).

A primeira fase foi marcada pelo federalismo e, portanto, pelo papel das regulamentações sanitárias estaduais na definição dos critérios de um “leite higiênico” e também pelas legislações municipais, que definiam os espaços dos vaqueiros e dos produtores de leite in natura nas cidades. Após 1930, uma nova fase é marcada pela atuação do Estado intervencionista, quando emergem as medidas do governo central que buscam estabelecer uma efetiva política alimentar. Na década de 1950, essa política nacional é reforçada por políticas de instituições internacionais, como a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), que chegam na América Latina com projetos de distribuição de alimentos.

Ao elencar os “trópicos” como palco de sua investigação, Brinkmann defende a tese de que foram “múltiplas dificuldades de emular os modelos do hemisfério Norte sob condições de atraso agropecuário e subdesenvolvimento industrial, tão característicos do Brasil e de toda a região da América Latina no século XX”. Enquanto os países industrializados teriam passado por um “aumento explosivo” do consumo de leite a partir dos anos 1920, a dieta de proteína e gorduras animais permaneceu baixa no país até a década de 1960.

Nesse sentido, Brinkmann relaciona as múltiplas razões para o baixo consumo per capita do leite no Brasil, como o baixo poder aquisitivo da população. O autor destaca a existência de conflitos sobre os métodos de produção de leite entre sanitaristas e vaqueiros, explicitando as tensões entre a defesa da qualidade do produto e seu preço para a população.

Evidentemente que a diferença de renda e os aspectos políticos e sociais locais podem explicar a deficiência nutricional do leite na população brasileira. Estudando uma sociedade que acabara de sair da escravidão, com marcadas desigualdades regionais e sociais, não é difícil explicar a ausência de produtos básicos na alimentação de parcela da população. A obra, entretanto, ao enfatizar a dimensão do atraso do abastecimento do leite nos “trópicos”, não pondera como o processo de disseminação de “leite higiênico” e de seu consumo enfrentou desafios inclusive nos países industrializados. Na Grã-Bretanha, por exemplo, somente 1,5% do leite consumido no país em 1926 era pasteurizado.

Como a própria obra descreve, foi no mesmo contexto que o Brasil assimilou o debate internacional com a 1ª Conferência Nacional de Leite e Laticínios, realizada em 1925 no Rio de Janeiro, pautando tanto a questão da saúde animal como os métodos científicos e os processos de tratamento do leite para garantir a nutrição da população. Experiências modernas de processamento da bebida eram conhecidas no país, como o leite condensado, produzido desde 1909 pela Companhia Ararense de Leiteria, empresa comprada pela Nestlé em 1920. Em suma, mais do que aspectos culturais e institucionais, a ampliação do consumo de leite no Brasil foi vítima das contradições impostas pelo próprio subdesenvolvimento latino-americano.

O economista Alexandre Macchione Saes é professor da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da Universidade de São Paulo (FEA-USP) e diretor da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM-USP).

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