Imprimir Republicar

Muito além do brado retumbante

Atuais estudos sobre a Independência ressaltam processo diversificado de construção do país

Ilustração: Júlia Cherem Rodrigues

Gerações de brasileiros se acostumaram com a ideia de que seu país nasceu “no grito”. Ou seja, que o gesto inaugural do Brasil independente foi um brado retumbante emitido pelo príncipe herdeiro do trono português, às margens plácidas de um riacho em São Paulo. Fixado na célebre tela de Pedro Américo (1843-1905), exposta no Museu Paulista durante mais de um século, o “grito do Ipiranga” foi o eixo em torno do qual giraram tanto a narrativa oficial sobre a Independência quanto a recepção majoritária do episódio pelo público em geral.

Parte importante da historiografia atual ressalta a complexidade de um processo que foi longo, descontínuo e progressivo. Esteve inserido em um período de grande agitação política, da Revolução Francesa de 1789 às demais chamadas revoluções atlânticas, que adicionaram uma série de ex-colônias das potências europeias à lista de nações soberanas. Episódios decisivos, como a transferência da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro, em 1808, e a elevação da antiga colônia sul-americana à condição de reino, unido a Portugal e Algarves, em 1815, não são meros momentos que conduzem naturalmente à Independência. E mesmo depois do episódio às margens do Ipiranga, a Independência não era fato consumado. Até o fim do ano seguinte, haveria guerras em províncias como Bahia, Piauí, Maranhão, Pará e a Cisplatina (atual Uruguai).

“Há muito a historiografia trabalha a Independência com um período alargado, incluindo a invasão francesa em Portugal e a vinda da Corte para o Brasil. Alguns estudos recuam ainda mais. Considero relevante estudar o processo a partir de 1780, um momento em que a política colonial mudou no âmbito do Império português”, diz a historiadora Cecilia Helena de Salles Oliveira, do Museu Paulista da Universidade de São Paulo (MP-USP). “Além disso, 1822 não foi o desfecho do processo. Faltava definir a Constituição e persistiam conflitos como a Confederação do Equador e a guerra da Cisplatina. Tudo isso só se concluiu em 1831.”

Essa ampliação de perspectiva não ocorreu do dia para a noite. Em sucessivas ondas, ao longo do último século, a interpretação da Independência foi incorporando aspectos cada vez mais amplos, dos determinantes sociais e econômicos à participação de camadas populares, em paralelo às disputas e aos acordos entre as elites. Essa história foi abordada, entre outras obras, no livro coletivo A Independência brasileira: Novas dimensões (2006), organizado por Jurandir Malerba, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Os ensaios reunidos ali mostram como se passou das narrativas políticas do século XIX, representadas por nomes como o de Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878), visconde de Porto Seguro e autor da primeira História geral do Brasil (1854-1857), à perspectiva ampliada de um processo múltiplo e inserido nos movimentos de sua época. O Dicionário da Independência, organizado por Oliveira e Pimenta, tem entre seus objetivos apresentar o estado da arte sobre o tema na atualidade.

A vertente mais tradicional dos estudos sobre a Independência é a da história política do processo, segundo o historiador João Paulo Pimenta, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Trata-se de investigações sobre a criação das instituições, os projetos políticos que orientavam os principais agentes, a atuação da imprensa e da sociedade civil, a organização da economia no apagar das luzes da colonização. Livros clássicos sobre a Independência, como Independência: Revolução e contra-revolução (1975), de José Honório Rodrigues, A construção da ordem: A elite política imperial (1980), de José Murilo de Carvalho, e A Independência política do Brasil (1986), de Fernando Novais e Carlos Guilherme Mota, contêm predominantemente estudos sobre esses temas, que continuam a ser revisitados e renovados.

As bases e os impasses econômicos do processo se tornaram um vasto manancial de estudos e publicações nas últimas décadas, com trabalhos como o da historiadora Wilma Peres Costa, do Departamento de História da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que investiga a formação do Estado fiscal no Brasil, ou seja, do sistema de finanças públicas baseado no recolhimento de impostos. Em Cidadãos e contribuintes: Estudos de história fiscal, 2020, que reúne seus principais artigos publicados desde a década de 1990, Costa expõe um paradoxo. O Brasil era liderado por grandes proprietários de terra que dominavam a maior parte da renda gerada no país. Assim, precisavam tributar a si próprios. Todavia, buscavam ao mesmo tempo evitar o peso dos tributos. O paradoxo marcou o Império ao menos até a década de 1860, segundo a pesquisadora (ver Pesquisa FAPESP n° 309).

A abordagem do processo brasileiro como parte de um conjunto de revoluções na Europa e nas Américas inspira os estudos que se dedicam a entender a relação do Brasil com os países vizinhos. Pimenta é autor de A Independência do Brasil e a experiência hispano-americana (1808–1822), que mostra como a circulação de ideias e as trocas entre países da América Latina influenciaram os eventos do Brasil. Para o historiador, as independências formam um conjunto coeso, porém marcado por particularidades, de acordo com a situação de cada país. Para o Brasil, o fato de ter sido um dos últimos a se emancipar no continente, após o período da presença da família real, fez com que os artífices da Independência pudessem aprender com as experiências dos vizinhos.

O papel da imprensa, em particular, é objeto de importantes estudos das últimas décadas. Da extinção, em 1796, da Real Mesa Censória (rebatizada como Real Comissão Geral sobre o Exame e Censura de Livros em 1787), que mantinha um garrote no pescoço de jornalistas e editores, e, em 1808, de eventos como a permissão de imprimir livros no Brasil. Em 1821, Portugal adotou sua primeira lei de imprensa, eliminando a censura prévia. A primeira Constituição, em 1824, também rejeitou a censura e previu uma lei de imprensa.

Ilustração: Júlia Cherem RodriguesA circulação de jornais, livros e panfletos no tempo da Independência é trabalhada por Isabel Lustosa, da Fundação Casa de Rui Barbosa, no artigo “Imprensa, censura e propaganda no contexto da Independência do Brasil”, 2010. Lustosa, também autora de uma biografia do diplomata e jornalista Hipólito da Costa, fundador do primeiro Correio Braziliense em 1808 e considerado por alguns como patrono da imprensa brasileira, mostra como grande parte dos embates entre as principais lideranças da Independência, como José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), Joaquim Gonçalves Ledo (1781-1847) e José da Silva Lisboa, o visconde de Cairu (1756-1835), se deu nas páginas dos jornais, a partir de 1821 (ver Pesquisa FAPESP n° 313).

Já em Às armas, cidadãos: Panfletos manuscritos da Independência do Brasil (1820-1823), José Murilo de Carvalho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Lúcia Bastos, da Universidade Federal Fluminense (UFF) e Marcello Basile, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), mostram como os “papelinhos”, panfletos políticos colados a paredes e postes das cidades do Brasil e de Portugal, influenciaram os espíritos agitados da política da época.

Outra vertente de estudos em expansão, segundo Pimenta e Oliveira, é a que busca responder à seguinte questão: como a mudança política foi vivida por grupos sociais como os indígenas, as mulheres ou a vasta população escravizada ou liberta? O sugestivo título de um artigo de Lúcia Bastos resume o sentido desses estudos: “Os esquecidos no processo de Independência: Uma história a se fazer”, 2020. Bastos mostra como a Independência tinha sentido diferente para cada grupo social. Segundo ela, o estudo de panfletos, cartas e outros documentos do dia a dia ajuda a enxergar as expectativas que negros, mulheres ou pobres tinham em relação à mudança política.

Um dos principais pesquisadores estrangeiros da transição do Brasil também se debruça sobre a experiência da população geral. Trata-se do historiador Hendrik Kraay, da Universidade de Calgary, Canadá. No livro Política racial, Estado e Forças Armadas na época da Independência: Bahia, 1790-1850, de 2011, Kraay mostra como a participação popular nas guerras pela Independência, que se estenderam no território baiano até 1823, foi motivada por um desejo de liberdade que não coincidia com a maneira como as elites entendiam esse conceito. Nas forças atuantes nas guerras de independência na Bahia, escravizados eram recrutados sem garantia de libertação. Ainda assim, ressalva o pesquisador, a data em que os portugueses foram definitivamente expulsos de Salvador, 2 de julho de 1823, passou a ser considerada uma versão local e popular do 7 de setembro.

Para a população submetida ao trabalho forçado, em particular, a separação de Portugal foi um divisor de águas, envolvendo esperanças de liberdade, como mostra Kraay, mas também uma profunda decepção. O período das revoluções atlânticas era o momento da primeira revolução industrial na Europa, o que implicou um rápido aumento da demanda por matérias-primas e, nos países produtores dessas mercadorias, levou à expansão e à racionalização, em vez do abandono, do trabalho escravo. Conhecido como “segunda escravidão”, conforme estudos de historiadores como Tâmis Parron, do Instituto de História da Universidade Federal Fluminense (UFF), e Rafael Marquese, da FFLCH-USP, o fenômeno foi particularmente forte no Brasil, em Cuba (ainda colônia espanhola) e no sul dos Estados Unidos (ver Pesquisa FAPESP n° 304).

Há um bom tempo, a historiografia da Independência tem expandido seu foco, deixando de se concentrar no que ocorria no Rio de Janeiro e seu entorno. Em 1823, por exemplo, enquanto na capital eram esboçados os artigos que deveriam compor a primeira Constituição do Brasil independente, nas províncias de norte a sul a separação de Portugal era vivida de maneira diferente. Essa dimensão regional e local do processo de divisão do Império português é assunto de diversos trabalhos recentes. Em vários estados do Norte e Nordeste, os combates entre forças políticas identificadas como “brasileiras” e “portuguesas” (tais nacionalidades ainda não tinham se separado por completo) se estenderam até 1823. A Bahia foi o principal palco das guerras de Independência, com episódios célebres como a Batalha de Pirajá, em 8 de novembro de 1822. Outros territórios também testemunharam confrontos decisivos, como a Batalha do Jenipapo, de 13 de março de 1823, disputada no Piauí.

Em livros como A Independência do Brasil na Bahia (1977), o historiador Luís Henrique Dias Tavares (1926-2020) relata o importante papel das batalhas disputadas naquela província para a consolidação do Brasil independente. O ponto de vista da população em geral é abordado, mais recentemente, por Sergio Guerra Filho, do Centro de Artes, Humanidades e Letras da Universidade Federal do Recôncavo Baiano (CAHL-UFRB), tanto em sua dissertação de mestrado, “O povo e a guerra: Participação das camadas populares nas lutas pela Independência do Brasil na Bahia” (2004), quanto na tese de doutorado, “O antilusitanismo na Bahia do Primeiro Reinado” (2015). O historiador da UFRB argumenta que a guerra na Bahia é o ponto de convergência entre dois temas historiográficos contemporâneos: a realidade do processo nas províncias e a atuação da população. Naquele estado, a mobilização de pessoas comuns foi decisiva para expulsar as tropas portuguesas.

Em 2014, Evaldo Cabral de Mello contou parte da história do que se passou em Pernambuco em A outra Independência: O federalismo pernambucano de 1817 a 1824. Esse estado foi um importante epicentro de confrontos com o novo polo de poder monárquico no Rio de Janeiro, tendo constituído uma república em 1817 e dado início à Confederação do Equador em 1824. O historiador Flávio José Gomes Cabral, da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), também investiga esse período de agitação social e política em artigos como “Instabilidades políticas em Pernambuco no tempo da Independência do Brasil (1817-1822)”.

Cabral sublinha que Pernambuco era uma das províncias mais ricas da Colônia e Recife um de seus principais portos. Os insurgentes, contrariados com os impostos que custeavam a Corte no Rio, aspiravam a um regime republicano inspirado nos Estados Unidos. Assim, as sucessivas lutas que conduziram miravam não apenas o jugo português, mas também a nova monarquia que se instalava mais ao sul.

Artigos científicos
BASTOS, L. Os esquecidos no processo de Independência: Uma história a se fazer. Almanack, v. 1, n. 25, 2020.
CABRAL, F. J. G. Instabilidades políticas em Pernambuco no tempo da Independência do Brasil (1817-1822). Anos 90, n. 27, 2020.
LUSTOSA, I. Imprensa, censura e propaganda no contexto da Independência do Brasil. Estudios: Revista de Investigaciones Literarias y Culturales. v. 18, n. 3, 2010.
OLIVEIRA, C. H. de S. Memória, historiografia e política: A Independência do Brasil, 200 anos depois. Revista Estudos Avançados, v. 36, n. 105, 2022

Livros
CARVALHO, J. M et al. (orgs.). Às armas, cidadãos! Panfletos manuscritos da Independência do Brasil (1820-1823). São Paulo, Belo Horizonte: Cia das Letras, Editora UFMG, 2012.
COSTA, W. P. Cidadãos & contribuintes. Estudos de história fiscal. São Paulo: Alameda, 2020.
KRAAY, H. Política racial, Estado e Forças Armadas na época da Independência: Bahia, 1790-1850. São Paulo: Hucitec, 2011.
MALERBA, J. (org.). A Independência brasileira: Novas dimensões. Rio de Janeiro: FGV, 2006.
MELLO, Evaldo Cabral de. A outra Independência: O federalismo pernambucano de 1817 a 1824. São Paulo: Editora 34, 2004.
PIMENTA, J. P. A Independência do Brasil e a experiência hispano-americana (1808-1822). São Paulo: Hucitec, 2015.

Republicar