Depois de quase 80 dias com as portas fechadas por causa da pandemia de Covid-19, causada pelo vírus Sars-CoV-2, os shopping centers e o comércio de rua paulistanos ganharam, em meados de junho, sinal verde para reabrir parcialmente. Ou melhor, sinal laranja: é essa a cor correspondente à fase 2 do Plano São Paulo de Reabertura, implementado em 1º de junho pelo governo do estado e que visa à liberação gradual da quarentena. Após muitas idas e vindas, com a retomada seguidamente adiada em função de índices crescentes de procura hospitalar e número de infectados, a capital viu alguns indicadores, como a ocupação de Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) e o total de casos novos, baixarem ou se estabilizarem. Esses são alguns dos aspectos considerados para caracterizar as cinco fases do plano estadual que serve de referência aos municípios paulistas.
Como em outras cidades do Brasil e do exterior, São Paulo viveu forte pressão pelo fim da quarentena vinda tanto da população, ávida por poder retomar suas atividades, quanto de setores produtivos, impactados pela paralisia dos negócios. A vizinha Buenos Aires, capital argentina, também submetida ao regime de fases, permitiu, em junho, que seus habitantes passassem a se exercitar em parques das 20h às 8h. Depois de quase três meses de clausura, o número de praticantes de corrida excedeu em muito as expectativas – e o governo cogitou rever a liberação.
O modelo de fases definido por indicadores sociais e de saúde tem prevalecido mundo afora, tanto para aumentar controles como para flexibilizar as restrições à mobilidade urbana. No Brasil, o Rio Grande do Sul esteve entre os primeiros a adotá-lo, reunindo epidemiologistas e economistas em sua formulação. Traz 11 indicadores de saúde, divididos em dois grupos, um deles para medir a propagação da doença e o outro para a capacidade da rede hospitalar. O plano paulista usa cinco indicadores para mensurar esses dois fatores e ainda prevê um terceiro, a capacidade de testagem e o rastreamento de contatos.
– À procura de atalhos
– Para ganhar tempo
– Andar com as próprias pernas
– Cristiana Toscano: Esforço global inédito
– Ciência contra o vírus
– Convocação extraordinária
– O esforço de cada um
– O desafio de calcular o R
– Delicado retorno
– Violência amplificada
– Mudanças na intensidade das colaborações
Os nove estados do Nordeste adotaram uma matriz de risco que segue lógica parecida, com três estágios para o controle da doença. A escala de cores traz pontuações de 0 a 100, que correspondem à flexibilização (verde, de 0 a 50), ao alerta (amarelo, 51 a 80) e ao trancamento (vermelho, 81 a 100). No cálculo, são considerados a capacidade do sistema de saúde, a velocidade de propagação da epidemia e o distanciamento social, em composição com a disposição geográfica dos municípios.
Abertura precipitada
Estudiosos que acompanham a evolução da pandemia, contudo, temem que a retomada em curso no Brasil, iniciada entre o final de maio e o início de junho, tenha sido feita de forma precipitada, em razão de as curvas epidemiológicas ainda não serem, na época, claramente descendentes. “Somos um dos poucos países que optaram pela flexibilização num cenário de aumento de casos e óbitos. Isso é uma temeridade, pois podemos ter uma aceleração ainda maior da epidemia”, aponta o físico Domingos Alves, do Centro de Informação e Informática em Saúde (Ciis) da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP).
Nota técnica divulgada em junho pelo grupo Covid-19 Brasil, formado por cientistas de várias universidades brasileiras que acompanham a pandemia, criticou o relaxamento do isolamento social no estado de São Paulo. “Embora proponha critérios robustos para o retorno das atividades, o plano faz uma distribuição temerária (e política, sem critérios fundamentados) dos municípios que poderiam se enquadrar em cada fase de abertura”, diz o documento. E continua: “No mês de junho, e possivelmente ainda em julho, teremos o pior cenário do enfrentamento da epidemia no estado”.
Alves, um dos integrantes do Covid-19 Brasil, sustenta que o fim do isolamento só deveria ocorrer após um período sustentável, de duas semanas, em que o número de contaminados, mortes e internações por Covid-19 estivesse estabilizado ou em queda. “Esse é um dos principais critérios que, segundo a OMS [Organização Mundial da Saúde], devem ser seguidos para o relaxamento. Outro é a adesão do país aos protocolos de testagem em massa da população, algo que também não ocorreu por aqui. Nosso sistema de saúde ainda não se mostrou capaz de detectar, testar, isolar e tratar todos os casos, além de rastrear os seus contatos.”
O governo paulista defende os critérios adotados no Plano São Paulo de Reabertura. “Tudo que orientamos no Plano São Paulo foi feito com base na saúde, com planejamento, com a visão de curto e médio prazos, para salvar pessoas”, declarou o governador João Doria durante entrevista do Centro de Contingenciamento do Coronavírus, em 26 de junho.
Na mesma ocasião, o secretário-executivo do centro, João Gabbardo dos Reis, rebateu notícias que faziam uma comparação das curvas móveis de mortalidade dos dias 3 e 13 de junho. “Apressadamente, se faz uma correlação entre um pequeno aumento que teve na média dessa curva móvel com aspectos relacionados à flexibilização. Não existe nenhuma relação de uma coisa com a outra”, afirmou. “São muito precoces essas avaliações feitas em períodos muito pequenos. Precisamos olhar o contexto e o conjunto de informações que estão sendo disponibilizados.”
Segundo a OMS, um modelo para uma retomada segura, que afaste o perigo de uma segunda onda do Sars-CoV-2, também deve prever uma redução dos riscos de surtos em instalações de saúde e asilos. A entidade recomenda, ainda, a adoção de medidas preventivas em locais de trabalho, escolas e lugares onde seja indispensável a presença de pessoas, e que os governos administrem o perigo de importação da doença.
Diretor clínico do Grupo Fleury e professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), o infectologista Celso Granato concorda que a retomada de atividades em São Paulo foi um movimento de risco, mas defende que precisava ser adotada. “Há uma necessidade de voltar a uma vida mais próxima do normal. Nós temos um plano de flexibilização da quarentena no estado; o maior desafio vai ser nossa aderência a ele”, opina. “Para que funcione com segurança, precisamos contar com os melhores dados possíveis sobre novos casos, óbitos e internações. Assim, saberemos se precisaremos dar dois passos para frente ou para trás.” Granato também destaca a importância de continuar com as medidas de atenção, entre elas o uso de máscaras, a lavagem frequente das mãos e o distanciamento físico.
Um dos indicadores centrais a ser monitorado para que um país saiba se a epidemia está controlada e é hora de flexibilizar as regras de confinamento é o número efetivo de reprodução da infecção, conhecido pela sigla Re (lê-se erre e) ou Rt. Ele indica o potencial de contágio do patógeno a cada momento da pandemia. “Qualquer Re acima de 1 significa crescimento exponencial da doença”, explica o médico e pesquisador Ricardo Schnekenberg, doutorando em neurociências clínicas na Universidade de Oxford e membro da equipe do Imperial College, ambos no Reino Unido. “Para a saída da quarentena, o Re deve ser inferior a 1”, destaca. Um dos principais centros globais de estudos de epidemias, o Imperial College tem feito análises sistemáticas da pandemia do novo coronavírus ao redor do mundo e divulgado o número efetivo de reprodução da infecção de várias localidades.
Na Europa, que começou a flexibilizar as medidas de confinamento em maio, o Re tem sido acompanhado de perto para evitar repiques. “A Alemanha tem mantido seu Re entre 0,85 e 0,95. Quando chega perto de 1 eles fecham um pouquinho mais”, comenta Schnekenberg.
O número efetivo de reprodução não é fácil de ser calculado. “O Re leva muitos fatores em consideração e, por isso, nem sempre é um indicador preciso. Quem consegue projetá-lo com qualidade, como o Imperial College, tem feito trabalhos bons. Mas não é muita gente que sabe”, pondera o epidemiologista Paulo Lotufo, da Faculdade de Medicina da USP. No caso brasileiro, ele elege dois indicadores a serem monitorados: o excedente de mortalidade e a oferta assistencial.
O primeiro é uma análise comparativa, a partir dos registros de óbitos nos últimos cinco ou seis anos em certa localidade (cidade, estado, país), levando em conta a média de mortes a cada semana e o desvio padrão para o período. “Quando há uma epidemia com incidência e letalidade altas, vê-se o quanto se excedeu o número de mortes em cada semana ou mês. Neste ano, houve aumento importante das mortes a partir de meados de março. Muito mais do que estava sendo atribuído à Covid-19”, relata. Nessa conta, entram mortes por pneumonia e problemas cardiovasculares. A volta dos índices de mortalidade à curva dos anos anteriores seria o sinal verde para pensar em retomada da vida cotidiana, explica Lotufo.
O utro ponto a ser observado é a oferta de leitos hospitalares. A ocupação das UTIs deve estar entre 75% e 85%. Acima desse índice, há prejuízo no atendimento, em razão de sobrecarga das equipes. O pesquisador alerta também que as previsões sobre o pico da curva, quando ocorre o auge das infecções, são imprecisas. “Numa situação tão mutável, só se sabe disso a posteriori.”
Alves, da FMRP-USP, concorda. “O discurso das autoridades para a retomada das atividades é que havíamos atingido o platô [situação de pico prolongado que demora a cair], mas isso não aconteceu. Retomar as atividades com o crescimento da curva pode trazer mais prejuízos ainda à economia”, ressalta o especialista.
De acordo com o pneumologista Carlos Carvalho, coordenador do Centro de Contingenciamento do Coronavírus do governo paulista, já havia uma expectativa de elevação de mortes em junho, mas elas ficaram abaixo das previsões. “Que os números iriam aumentar, a gente já estava prevendo. Mas, se nós pegarmos a curva de mortalidade do que seria daqui para frente, o número de mortes está dentro da média, mas está próximo do limite inferior da média”, declarou em entrevista ao jornal O Estado de S.Paulo.
Estudo do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da Universidade de Brasília (UnB) mostra que o relaxamento social só deveria ocorrer, de forma gradual, “um mês depois de atingirmos o pico, para não termos uma segunda onda de casos”. Baseado em um modelo matemático chamado Sirasd – acrônimo em inglês para suscetível, infectado, recuperado, assintomático, sintomático e morto (dead) –, o estudo levou em conta o comportamento de dois grupos populacionais durante a pandemia, um composto por pessoas que podem fazer o autoisolamento e o outro formado por trabalhadores da economia informal, que continuaram em atividade.
Além de ser difícil estabelecer o momento do pico da infecção, a saída da quarentena não deverá ser definitiva. Essa é a avaliação da coordenadora do doutorado em saúde global e sustentabilidade da Faculdade de Saúde Pública da USP, Deisy Ventura. Como ainda não há vacina, o que deve demorar a acontecer, e o conhecimento sobre o vírus vem se acumulando pouco a pouco, ela estima que sejam necessários novos períodos de distanciamento social.
Ventura enumera três pontos para o desenho de estratégias de contenção e eventual relaxamento das restrições. O primeiro – e que configura um grande desafio – é que as cidades façam uma avaliação minuciosa das condições locais e da população. “Há um leque de medidas restritivas e de saúde pública possíveis. O debate tem girado em torno de lockdown, mas seria mais correto falar de medidas quarentenárias, com mais ou menos restrições às atividades”, diz.
O segundo ponto é o acompanhamento dos indicadores do número de transmissão de casos e a capacidade do sistema de saúde. A terceira variável está intimamente ligada ao sucesso das medidas restritivas: é a comunicação do risco, fator-chave para ganhar a adesão da população. Clareza na comunicação para que as pessoas não baixem a guarda e atenção às necessidades das diferentes camadas sociais são pontos que integram o documento feito pela OMS após as emergências internacionais relacionadas ao H1N1, em 2009, e ao ebola, em 2014. “Só se pode atenuar medidas quando há confiança nas autoridades”, diz Ventura. “Isso é fundamental para o sucesso do controle da Covid-19.”
Artigo científico
PIRES, M. A. et al. What is the potential for a second peak in the evolution of Sars-CoV-2 in Brazil? Insights from a Sirasd model considering the informal economy. ArXiv. 3 jun. 2020.