Além de combater revoltas internas e invasões estrangeiras, fundar vilas e ampliar o povoamento para o interior, os vice-reis, que governaram o Brasil entre 1640 e 1808, deveriam criar instituições e promover levantamentos geográficos, mineralógicos e botânicos que facilitassem a gestão do território e trouxessem mais riquezas para o governo português. O 4º vice-rei, Vasco Meneses (1673-1741), patrocinou a Academia Brasílica dos Esquecidos, a primeira sociedade literária da Colônia, que funcionou durante um ano, de 1724 a 1725. O 12º, Luís de Vasconcelos e Sousa (1742-1809), criou no centro da cidade do Rio de Janeiro, em 1784, o Gabinete de História Natural do Brasil, mais conhecido como Casa dos Pássaros, que reunia animais brasileiros para serem expostos ou enviados ao Real Museu da Ajuda e a propriedades rurais, chamadas de quintas, em Portugal – foi o embrião do Museu Nacional, formalizado em 1818 com o nome de Museu Real.
Ao vir para o Brasil em 1808, a Corte portuguesa trouxe suas instituições científicas e culturais que estimularam o conhecimento do território e a circulação de informações, por meio dos jornais que começavam a ser impressos no Rio de Janeiro. “Criar instituições de ciência era parte da estratégia de dom João VI para transformar a cidade do Rio em sede da Corte”, observa a historiadora da ciência Maria Amélia Mascarenhas Dantes, professora aposentada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).
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A historiadora da FFLCH Íris Kantor observa que as pesquisas mais recentes validam os estudos pioneiros da historiadora Maria Odila Leite Silva Dias, professora aposentada da USP. Em um deles, publicado em 1968 na Revista IHGB (Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro), Dias comenta: “O papel da política de Estado nesse movimento de estudiosos, dedicados em sua maioria às ciências naturais, merece realce particular por suas múltiplas implicações, tanto na orientação dos estudos como na mentalidade dos principais políticos da Independência”.
Nesse trabalho, ela observa o pragmatismo do governo português ao promover levantamentos botânicos e minerais – incentivados desde o fim do século XVIII pelo secretário de Estado do reino português Sebastião José de Carvalho e Melo, o marquês de Pombal (1699-1782), com o objetivo de encontrar produtos comercializáveis. “A ciência atrelada à prática era o padrão do Iluminismo seguido pelos países da Europa”, reitera a geóloga Silvia Figueirôa, da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (FE-Unicamp), em alusão ao movimento cultural liderado pela França no século XVIII.
Em 1818, ao conceber o Museu Real, a Corte pretendia “propagar os conhecimentos e estudos das ciências naturais no reino do Brasil, que encerra em si milhares de objetos dignos de observação e exame, e que podem ser empregados em benefício do comércio, da indústria e das artes”, como expresso no decreto de sua criação.
O poder dos mapas
“A ciência, especialmente a cartografia, fazia parte da estratégia de sobrevivência do Império português no contexto de uma forte concorrência interimperial ”, comenta Kantor, uma das curadoras de uma exposição de mapas antigos no Museu Naval do Rio de Janeiro (ver reportagem). “Os mapas ajudaram a construir o imaginário do Brasil e a ideia de um território coeso e integrado. Eram também um instrumento de gestão e manejo das populações, ao indicar os lugares onde as mercadorias poderiam ser tributadas.”
Segundo ela, Portugal apoiou atividades e instituições científicas para “criar uma imagem positiva da colonização, amenizando as acusações de violência contra os indígenas feitas por outras nações europeias, e para mostrar seu domínio efetivo sobre o território”, diz. É o caso do mapa Nova Lusitânia, concluído em 1798 pelo astrônomo e capitão de fragata mineiro Antonio Pires da Silva Pontes Leme (1750-1805).
Adotando a ilha do Ferro, nas Canárias, como longitude 0, já que o meridiano de Greenwich seria reconhecido como padrão internacional somente em 1884, esse mapa detalha as redes de rios, ilhas, serras, povoados, aldeias indígenas, fortes, rotas terrestres e minas de ouro do Brasil. Com a historiadora Beatriz Bueno, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP, ela localizou documentos indicando que diplomatas portugueses apresentaram o Nova Lusitânia a colegas de Londres com o propósito de atestar a soberania portuguesa e afugentar interessados em explorar as riquezas do Brasil.
A historiadora Lorelai Kury, da Casa de Oswaldo Cruz da Fundação Oswaldo Cruz (COC-Fiocruz), do Rio de Janeiro, conta que o imperador dom Pedro I (1798-1834), diferentemente de sua mulher, a imperatriz Leopoldina (1797-1826), admirava pouco a ciência, mas não deixava de valorizá-la. Segundo Kury, essa foi uma das razões de ter escolhido como tutor para seu filho, em 1831, o futuro imperador Pedro II (1825-1891), José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), ministro do Império, naturalista e mineralogista.
Cientistas autodidatas
“Até a segunda metade do século XIX, quando começaram a se impor como produtoras de ciência, as instituições tiveram pouca força, se comparadas à dos indivíduos que produziam conhecimento científico”, ressalta Kury. Havia dois grupos de cientistas: alguns poucos profissionais, contratados pelo governo ou pelas instituições, e os amadores, geralmente autodidatas, que tinham de ganhar a vida com outra profissão ou não precisavam trabalhar. “Era assim também em outros países”, comenta Figueirôa. “O químico Antoine Lavoisier [1743-1794] foi guilhotinado porque era cobrador de impostos do Antigo Regime.”
Entre os funcionários da Coroa portuguesa no Brasil estavam, por exemplo, três geólogos alemães, Wilhelm Ludwig von Eschwege (1777-1855), Wilhelm Christian Gotthelf von Feldner (1772-1822) e Friedrich Ludwig Wilhelm Varnhagen (1782-1842). Eram inspetores de minas e fizeram levantamentos mineralógicos no país durante mais de uma década, até 1821 (ver Pesquisa FAPESP no 317).
Entre os amadores havia muitos religiosos. Em 1783, José Mariano da Conceição Veloso (1742-1811), mais conhecido como Frei Veloso, saiu para as matas próximas ao Rio de Janeiro, à frente de uma expedição que durou quatro anos e resultou no livro Flora fluminensis, publicado postumamente em 11 volumes de 1825 a 1831, com a descrição de 1.626 espécies de plantas agrupadas em 396 gêneros (ver Pesquisa FAPESP nos 172 e 289). De 1824 a 1829, o frade carmelita e botânico pernambucano Leandro do Santíssimo Sacramento (1778-1829), que estudou filosofia na Universidade de Coimbra, em Portugal, foi diretor do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, o segundo do Brasil, criado em 1808 – o primeiro foi o de Belém, no Pará, em 1796, instituído por meio de uma carta régia da rainha Maria I (1734-1816), ambos com o propósito de aclimatar espécies exóticas de plantas, para cultivo no Brasil, ou nativas, para produção comercial.
Em uma categoria intermediária – autodidata, mas sendo remunerado pelo trabalho – estava o taxidermista catarinense Francisco Xavier Cardoso Caldeira (?-1810), que dirigiu a Casa dos Pássaros por 20 anos. Em um artigo publicado em 2018 na revista Filosofia e História da Biologia, três pesquisadores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) – Bruno Absolon, Francisco Figueiredo e Valéria Gallo – contam que ele dormia ali mesmo e dispunha de uma equipe de três serventes, dois auxiliares e dois caçadores, que reforçavam o acervo atirando em aves em um lago defronte ao museu, que depois eram recolhidas e empalhadas. O museu fechou em 1813 e o que sobreviveu do acervo de quase mil animais permaneceu no Arsenal de Guerra até 1818, quando foi transferido para o então recém-criado Museu Real (ver Pesquisa FAPESP no 272).
O governo português convocava especialistas para encontrar minas de salitre, mineral usado na fabricação de pólvora, e plantas com valor comercial. É o caso do mineiro José Vieira Couto (1752-1827), formado em matemática em Coimbra, contratado pela Coroa para identificar fontes de minérios que pudessem ser exploradas e lembrado em um artigo de Dantes publicado em 2005 na revista Ciência e Cultura.
Os primeiros médicos nativos
Instalada no Rio, a Corte tratou também de aumentar o número de especialistas da área médica, até então formados apenas na Europa, criando a Escola de Cirurgia da Bahia, em Salvador, e a Escola Anatômica, Cirúrgica e Médica do Rio de Janeiro, ambas em 1808 (ver cronologia abaixo). Desse modo, organizou a prática da medicina, até então exercida por barbeiros, sangradores, práticos e curandeiros, observou o historiador Flávio Coelho Edler, da COC-Fiocruz, em um artigo de 2009 na revista Acervo. Nessa época ainda havia concorrência entre os especialistas: os médicos, cuja formação era apoiada pelo governo, tinham de disputar clientes com os benzedores, que ofereciam proteção contra praticamente qualquer doença. “A maioria das pessoas preferia os curandeiros porque faziam mais sentido para o mundo delas”, diz ele. Em 1832, um decreto transformou as duas escolas médicas em faculdades de Medicina do Rio de Janeiro e da Bahia, extinguiu o curso de cirurgia e ofereceu a possibilidade de os estudantes se formarem em três áreas – medicina, farmácia ou partos –, seguindo o modelo francês de ensino médico.